“A redução da maioridade penal é expressão do denominado populismo penal: o legislador adota práticas penais que lhe rendem voto, mas que não reduzem o crime”, adverte o advogado
“Qual dado, número ou estudo demonstra que essa alteração legislativa vai produzir o efeito de redução da violência esperado pela sociedade?”, pergunta André Mendes em entrevista concedida à IHU On-Line por e-mail, ao comentar o Projeto de Lei – PL que propõe a redução da maioridade penal. A polêmica PEC 171/1993, que sugere a redução da idade penal de 18 para 16 anos, deverá ser votada na Câmara dos Deputados no final deste mês.
Contrário à aprovação do PL, Mendes lembra que, embora a responsabilidade penal inicie aos 18 anos, “a responsabilidade legal de um jovem que comete crime começa aos 12 anos”. A partir dessa idade, explica, jovens infratores são submetidos a medidas socioeducativas e alguns são privados da liberdade. Na avaliação dele, “pensar que a pena de prisão para adultos gerará melhores resultados que a medida socioeducativa é algo que não corresponde à realidade. O cárcere produz desintegração social. Vai piorar o jovem que for submetido a esse sistema”.
O advogado explica ainda que a proposta de alteração constitucional, caso a PEC 171/1993 seja aprovada, é “uma forma de supressão de direitos e, como tal, inconstitucional”, porque “o Brasil é signatário da Convenção sobre os Direitos da Criança” desde os anos 1990. “Penso que uma alteração na Constituição para redução da maioridade penal estaria em dissonância com essas conquistas”, frisa.
André Pacheco Teixeira Mendes é doutorando, mestre e bacharel em Direito pela PUC-RJ; é formado pela Escola da Magistratura do Estado do Rio de Janeiro – Emerj. Associado ao Instituto Brasileiro de Ciências Criminais e coordenador do Núcleo de Prática Jurídica – NPJ da Graduação da FGV Direito Rio. Confira a entrevista.
IHU On-Line – Em que contexto se retoma a discussão sobre a redução da maioridade penal no país?
André Pacheco Teixeira Mendes – O Brasil vive um momento de tensões políticas. Há muitas disputas institucionais em jogo. Diferentes setores da sociedade mostram descontentamento com os poderes da República. No meio desse acirramento de ânimos, é retomada a discussão acerca da redução da maioridade penal, muito impulsionada por um Congresso que dá sinais de conservadorismo e retrocesso. Tensões e acirramentos são parte da dinâmica democrática, mas é preciso ter atenção para não deixar que ânimos exaltados prejudiquem um debate transparente e consciencioso, como deve ser com tema de tamanha relevância, que é a idade da responsabilidade penal.
Como em diversos países ao redor do mundo, temas ligados aoendurecimento da lei penal são discutidos no contexto de episódios de crimes praticados com violência que geram grande repercussão na mídia. O parlamentar em geral é afetado pelo clamor e revolta gerados por esses fatos e tende a tomar medidas para dar uma satisfação para a sociedade.
Invariavelmente, essa medida é uma proposta de lei penal mais severa. E, invariavelmente, essas proposições vêm desacompanhadas de dados e estudos que demonstrem a necessidade da alteração legislativa.
IHU On-Line – Como tem se dado a discussão sobre a redução da maioridade penal no país? Que pontos devem ser considerados diante dessa discussão?
André Pacheco Teixeira Mendes – Discussões sobre o Direito penal costumam mexer com o sentimento das pessoas, particularmente quando envolvem a chamada criminalidade de sangue. Muitas vezes se torna um debate acalorado, principalmente quando ouvidas as vítimas de crimes violentos. É preciso deixar claras duas premissas: primeiro, todos nós queremos menos crimes e mais segurança; segundo, todas as vítimas merecem solidariedade. Mas é necessário que se compatibilize a demanda por mais segurança e proteção das vítimas com a eficiência do sistema penal e a preservação de direitos e garantias fundamentais existentes em nosso país. Essa compatibilização é um desafio de democracias constitucionais como a brasileira. E essa harmonização só virá com estudos estatísticos, análises de dados e informações transparentes. Aqui a mídia desempenha papel central.
As pessoas têm que poder acessar esses dados e compreender se essa mudança proposta será eficaz. Por isso, um dos pontos centrais a serem considerados nessa discussão é: qual dado, número ou estudo demonstra que essa alteração legislativa vai produzir o efeito de redução da violência esperado pela sociedade? Cito outro ponto importante: embora a responsabilidade penal se inicie aos 18 anos, a responsabilidade legal de um jovem que comete crime começa aos 12 anos. Não há impunidade. O que há é uma resposta estatal específica que recebe o nome de medida socioeducativa. Embora não seja uma resposta do Estado por via de uma pena de prisão, como é no direito penal, o jovem em conflito com a lei submetido à medida socioeducativa experimenta, na prática, privação da liberdade em algumas hipóteses.
Se essa restrição é por pouco ou muito tempo, é outra questão. Mas é falsa a premissa da impunidade. Pensar que a pena de prisão para adultos gerará melhores resultados que a medida socioeducativa é algo que não corresponde à realidade. O cárcere produz desintegração social. Vai piorar o jovem que for submetido a esse sistema. Faz sentido adotarmos essa medida de política criminal?
IHU On-Line – A mudança do artigo 228 da Constituição de 1988 é inconstitucional ou não?
André Pacheco Teixeira Mendes – É um tema que apresenta certa controvérsia. Divide opiniões. A idade de 18 anos para a responsabilidade penal constituiria cláusula pétrea, sendo portanto imutável? Particularmente, eu vejo essa proposta de alteração constitucional como uma forma de supressão de direitos e, como tal, inconstitucional. O Brasil é signatário da Convenção sobre os Direitos da Criança, internalizada no Brasil por meio do Decreto nº 99.710 de 21 de novembro de 1990. A Convenção define como criança todo ser humano com menos de dezoito anos de idade. Penso que uma alteração na Constituição para redução da maioridade penal estaria em dissonância com essas conquistas.
De todo modo, caso fosse ultrapassada essa questão constitucional, estou de acordo que a definição de idade é uma questão de política criminal: o que queremos fazer com nossos jovens em conflito com a lei?
IHU On-Line – Quais são os pontos mais polêmicos da PEC 171?
André Pacheco Teixeira Mendes – A PEC nº 171/93 tem dois artigos: o primeiro reduz a idade de imputabilidade penal de 18 para 16 anos; o segundo corresponde a uma cláusula padrão de entrada em vigor da norma a partir da data de publicação. Logo, o ponto polêmico é propriamente a redução da idade e os impactos que ela pode trazer, como, por exemplo, o agravamento do problema da superlotação carcerária. De acordo com o Relatório Novo Diagnóstico de Pessoas Presas no Brasil, divulgado pelo Conselho Nacional de Justiça em junho de 2014, o Brasil conta atualmente com 711.463 pessoas presas, considerando aquelas que cumprem pena em regime domiciliar. Isso coloca nosso país em 3º lugar no ranking mundial de população prisional. Perdemos apenas para os EUA e a China.
Temos um déficit de 354.244 vagas no sistema prisional. Vamos encarcerar mais gente? E colocar onde? Dizer que novos estabelecimentos penais serão construídos é algo improvável. Seria necessária a construção de centenas de presídios para suprir o déficit atual de vagas. Isso seria uma irracionalidade. Não faz sentido.
IHU On-Line – Como o senhor interpreta o argumento de que a redução da maioridade penal pode contribuir para resolver problemas de segurança pública?
André Pacheco Teixeira Mendes – Não vi até agora nenhum dado, número ou estudo capaz de lastrear esse argumento. Se pegarmos os dados disponíveis do Departamento Penitenciário Nacional – DEPEN de 2006 a 2013, veremos que os crimes violentos tiveram aumento no número de pessoas presas: homicídio, latrocínio, roubo. O número de pessoas sendo punidas por esses crimes só faz aumentar, sem que necessariamente os índices de criminalidade melhorem. Essa relação entre mais punição e mais segurança não se confirma pelos dados.
IHU On-Line – Entre suas declarações contrárias à redução da maioridade penal, o senhor afirma que “sozinho, o Direito Penal não tem esse poder de transformar a realidade”. Que outras propostas poderiam ajudar a resolver o problema da segurança e da iniciação de jovens menores de idade no crime, e quais instituições deveriam estar envolvidas nesse processo?
André Pacheco Teixeira Mendes – Muitos jovens em conflito com a lei se encontram em situação de evasão escolar, não têm perspectiva de educação, cultura e lazer. Muitos têm uma história de abandono social e afetivo. Por isso, penso que nesse ponto há um certo consenso: é preciso investimento massivo do poder público em educação. Uma educação capaz de produzir perspectiva de futuro, inclusão e visibilidade sociais. Ausência de perspectiva, exclusão e invisibilidade sociais geram tensões que muitas vezes levam pessoas a transgressões.
A discussão em torno da redução da maioridade penal costuma estar associada a crimes violentos. Mais do que isso, em geral, os autores desses fatos são jovens já envolvidos com outras transgressões, e muitas vezes jovens de baixa renda. A punição penal não vai alterar esse quadro. Políticas públicas de educação, saúde, cultura, lazer têm mais chances.
Sendo assim, acredito em responsabilidades partilhadas entre diversas instituições. O poder público tem que fazer a parte dele com investimento e execução de políticas públicas voltadas aos jovens. Empresas também podem contribuir com ações de responsabilidade social. Há também muitas iniciativas do terceiro setor, por parte de organizações sociais e mesmo empreendedores.
IHU On-Line – Que procedimento deve ser feito com jovens infratores menores de 18 anos? Que medidas têm sido adotadas hoje?
André Pacheco Teixeira Mendes – Para o jovem a partir dos 12 e menor de 18 anos que praticar um ato infracional (correspondente a um crime), o Estatuto da Criança e do Adolescente – ECA prevê como medidas socioeducativas: advertência; obrigação de reparar o dano; prestação de serviços à comunidade; liberdade assistida; inserção em regime de semiliberdade; internação em estabelecimento educacional. Muitos dos estabelecimentos destinados a esses jovens já sofrem também com a superlotação. Além disso, as facções criminosas também já chegaram a alguns desses estabelecimentos, produzindo estigmatização de jovens. De todo modo, a reincidência do jovem em conflito com a lei é menor do que a do adulto, submetido a um sistema ainda mais estigmatizante e desintegrador, que é o nosso sistema penitenciário.
IHU On-Line – Como interpreta os dados das pesquisas que indicam que a maioria da população brasileira é favorável à redução da maioridade penal?
André Pacheco Teixeira Mendes – Não me surpreende. Posições severas em matéria penal são frequentes na população em geral. Muitas vezes imbuídas por sentimentos de justiça, por vezes infladas por narrativas da mídia que colocam verdadeiras lentes de aumento em episódios de violência. É um fenômeno comum em outros países também. Sendo assim, é muito importante que as pessoas possam acessar dados, números e reflexões que tragam diferentes olhares, diferentes visões sobre o tema. A redução da maioridade penal é uma medida simples para um problema complexo.
IHU On-Line – Deseja acrescentar algo?
André Pacheco Teixeira Mendes – A redução da maioridade penal é expressão do denominado populismo penal: o legislador adota práticas penais que lhe rendem voto, mas que não reduzem o crime. Ou seja, simplesmente aumentar a pena de um crime, criar um crime novo, punir a pessoa mais jovem não melhorará os índices de criminalidade, nem deixará as pessoas mais seguras. O jovem sairá pior do que entrou. Perderemos todos nós.