“Certamente o Comitê Olímpico Internacional – COI tem conhecimento sobre o que está acontecendo no Rio de Janeiro. Mas entende que a questão das remoções não é um problema dele”, diz o pesquisador
“A luta da comunidade da Vila Autódromo é a mais emblemática da resistência popular aos megaeventos”, diz Gerardo Silva à IHU On-Line. De acordo com ele, embora as pessoas vivam na Vila há mais de 40 anos, ela “constitui quase uma obsessão para a prefeitura do Rio de Janeiro desde a década de 90”.
Na entrevista a seguir, concedida por e-mail, o professor de Planejamento e Gestão do Território da Universidade Federal do ABC – UFABC informa que as remoções foram justificadas por conta de ações sociais, ambientais, de segurança para os jogos, “todas sem fundamento algum, a não ser satisfazer os interesses imobiliários da Barra da Tijuca”.
Segundo Silva, com a realização das Olimpíadas, a pressão aumentou e novas famílias serão removidas. “Marcaram as casas para remoção sem comunicar as pessoas, ofereceram indenizações irrisórias, prometeram moradias ainda por construir, dividiram a comunidade. Alguns decidiram sair, mas outros ainda resistem, com muita determinação e coragem, e com o apoio de diversos setores da sociedade civil. Agora a nova justificativa é uma obra viária que nem sequer estava nos planos originais da Prefeitura para o projeto olímpico”, pontua.
Gerardo Silva é graduado em Geografia pela Universidad Nacional de Mar del Plata, Argentina, mestre em Planejamento Urbano e Regional pela Universidade Federal do Rio de Janeiro e doutor em Sociologia pelo Instituto Universitário de Pesquisas do Rio de Janeiro/UCAM. Atualmente é professor adjunto da área de Planejamento e Gestão do Território da Universidade Federal do ABC – UFABC. Confira a entrevista.
IHU On-Line – Antes da Copa do Mundo, foram feitas denúncias de remoções realizadas por conta do evento. O mesmo se repete agora, por conta das Olimpíadas do próximo ano? Desde quando as remoções estão sendo feitas?
Gerardo Silva – Os impactos da Copa do Mundo e das Olimpíadas se superpõem no caso do Rio de Janeiro. As remoções estão sendo feitas desde 2009, de acordo com os primeiros relatos dos moradores. Na maioria dos casos, tais remoções foram e estão sendo feitas de maneira violenta e autoritária, sem consideração alguma pela situação das famílias que habitam essas comunidades desde muito tempo. Diversos testemunhos dessa política de remoção forçada podem ser encontrados nos vídeos realizados pela relatoria da Plataforma Dhesca Brasil sobre direito à cidade, em 2011, e também em diversos relatórios do Comitê Popular da Copa e das Olimpíadas, uma das articulações mais importantes de movimentos sociais contra os megaeventos.
IHU On-Line – Em que locais do Rio de Janeiro e São Paulo têm ocorrido remoções por conta das Olimpíadas? É possível estimar quantas famílias foram e serão removidas por causa do evento esportivo?
Gerardo Silva – Desconheço se em São Paulo estão sendo realizadas remoções por causa dos Jogos Olímpicos, mas sei que elas foram feitas para a Copa do Mundo. No caso do Rio de Janeiro, as remoções aconteceram em diferentes partes da cidade, tais como Barra da Tijuca, Recreio dos Bandeirantes, Jacarepaguá, Botafogo, Vila Isabel, Madureira e no Centro (onde a questão principal são as ocupações de prédios abandonados), entre outros locais. De acordo com o dossiê do Comitê Popular da Copa e das Olimpíadas, até 2011 teriam sido removidas 1.860 famílias, e outras 5.325 estavam ameaçadas de remoção. Ao todo, o Comitê calculava em 7.185 o número de famílias a serem removidas por causa dos megaeventos, o que representaria mais de 32.000 pessoas se multiplicarmos o número de famílias pelo número médio de integrantes do grupo familiar nas comunidades (4,5, segundo o IBGE). Mas eu acredito que esse número seja ainda conservador.
IHU On-Line – Qual tem sido a justificativa para as remoções?
Gerardo Silva – As principais justificativas têm a ver com a realização das obras necessárias para equipar a cidade e levar a cabo os eventos; mas têm também a ver com valorização imobiliária e expulsão dos pobres para as periferias (o que, aliás, não representa nenhuma novidade nas cidades brasileiras). O caso da Barra da Tijuca no Rio de Janeiro é emblemático. Fronteira de especulação imobiliária de longa data e lugar privilegiado para a realização dos jogos olímpicos, está sendo objeto de uma verdadeira operação de remoção em massa.
IHU On-Line – Para que lugar as pessoas estão sendo transferidas? Como são as moradias para onde elas são removidas?
Gerardo Silva – No caso das famílias que foram transferidas, elas passam a ocupar apartamentos do programa Minha Casa, Minha Vida, do governo federal, localizados em lugares distantes e periféricos da cidade. Um elemento paradoxal desta situação, para dizer o mínimo, é que muitas das remoções estão sendo feitas para melhorar a mobilidade urbana nas áreas privilegiadas pelos jogos, mas as pessoas removidas não encontram nenhuma melhoria na mobilidade das áreas para onde estão sendo transferidas; pelo contrário, passam a sobrecarregar um sistema de transporte já saturado e deteriorado pela falta de investimentos e planejamento. Ou seja, de uma situação de centralidade passam a uma situação de isolamento. Tudo isso sem contar o fato de que as milícias tomaram conta desses complexos habitacionais e controlam não apenas a provisão de serviços básicos, como também as próprias formas de socialização que, como sabemos, por enorme experiência acumulada, são extremamente importantes nesse tipo de situações.
IHU On-Line – Qual a atual situação dos moradores da Associação de Moradores e Pescadores da Vila Autódromo – AMPVA?
Gerardo Silva – A luta da comunidade da Vila Autódromo é a mais emblemática da resistência popular aos megaeventos. Localizada há mais de 40 anos em área próxima ao antigo autódromo de Jacarepaguá, ela constitui quase uma obsessão para a prefeitura do Rio de Janeiro desde a década de 90. Diferentes justificativas foram elencadas para sua remoção: sociais, ambientais, de segurança para os jogos, etc., todas elas sem fundamento algum, a não ser satisfazer os interesses imobiliários dessa região da Barra da Tijuca. E digo isto sem exagero.
Basta observar as imagens das transformações recentes da Av. Embaixador Abelardo Bueno. Evidentemente, com a realização das Olimpíadas, a pressão aumentou. Marcaram as casas para remoção sem comunicar as pessoas, ofereceram indenizações irrisórias, prometeram moradias ainda por construir, dividiram a comunidade. Alguns decidiram sair, mas outros ainda resistem, com muita determinação e coragem, e com o apoio de diversos setores da sociedade civil. Agora a nova justificativa é uma obra viária que nem sequer estava nos planos originais da Prefeitura para o projeto olímpico. Haja paciência!
IHU On-Line – Há alguma forma de barrar essas remoções?
Gerardo Silva – É muito difícil. Sobretudo quando a realização da Copa do Mundo e dos Jogos Olímpicos se transforma em uma questão de Estado. Aí vale tudo. Houve, e ainda há, resistências por parte das comunidades e das pessoas mais engajadas politicamente que enxergam o grau de violência e arbitrariedade a que são submetidas essas famílias. Por outra parte, elas entraram na pauta de reivindicações do movimento de junho de 2013, e foram objeto de luta — e repressão — durante a Copa das Confederações e na Copa do Mundo. Também o Núcleo de Terras e Habitação da Defensoria Pública do Estado do Rio de Janeiro, a relatoria especial da ONU e o Comitê Popular da Copa e das Olimpíadas envidaram esforços, seja para impedir as remoções, seja para denunciar os abusos cometidos.
Sem dúvida, essas resistências tiveram o grande mérito de chamar a atenção e trazer o problema para o debate público, coisa que os principais meios de comunicação não estavam dispostos a fazer. Contudo, elas não foram suficientes para deter as remoções. Existe um empenho institucional tão forte e articulado em torno aos megaeventos que nenhuma resistência parece suficiente, inclusive a repercusão negativa na imprensa internacional.
IHU On-Line – Como tem se dado a discussão e qual tem sido a repercussão sobre as remoções que estão ocorrendo por conta dos jogos olímpicos?
Gerardo Silva – Muita gente tem se mobilizado por causa das remoções. As mesmas têm sido noticiadas em jornais internacionais de prestígio, e a situação é conhecida nos meios acadêmicos das universidades estrangeiras. Também no Brasil, é claro. Porém, essa repercussão é continuamente neutralizada pela força da mídia local, que tem muito a ganhar com a realização dos megaeventos. Em todo caso, as críticas serão feitas a posteriori e de maneira parcial, como começa a ser percebido no debate sobre o legado da Copa do Mundo de Futebol.
IHU On-Line – Como o Informe da Relatoria Especial da ONU trata da questão das remoções no Rio de Janeiro?
Gerardo Silva – O informe da Relatoria Especial da ONU, apresentado antes da Copa do Mundo, foi realmente importante para a compreensão dos efeitos perversos associados aos megaeventos em diferentes partes do mundo e também no Brasil. Teve também uma repercussão muito grande pelo fato de ter sido elaborado no âmbito de uma instituição de prestígio como a ONU. Além de alertar sobre os impactos negativos vinculados a esses megaeventos, mostrando exemplos e revelando detalhes bastante sórdidos das experiências em outras partes do mundo, como Atenas, Beijing e África do Sul (Copa do Mundo), o relatório dá a entender, a meu ver, que deveríamos começar a pensar que o problema não é a sua forma de organização — mais ou menos adequada às dificuldades e/ou especificidades de cada país —, mas a própria organização, isto é, a necessidade de aceitar incondicionalmente o pacote de imposições draconianas por parte das entidades promotoras e seus patrocinadores, que vem junto com os megaeventos, e para os quais a principal preocupação são os negócios, sem importar muito os contextos nos quais são realizados.
IHU On-Line – Quais são as orientações do Comitê Olímpico Internacional – COI em relação às cidades que irão sediar os jogos olímpicos? O Comitê tem conhecimento sobre as remoções que estão acontecendo no Rio de Janeiro?
Gerardo Silva – Certamente o Comitê Olímpico Internacional – COI tem conhecimento sobre o que está acontecendo no Rio de Janeiro. Mas entende que a questão das remoções não é um problema dele. Até porque as obras são financiadas com dinheiro público. Princípios mais ou menos genéricos como “fair play”, convivência pacífica entre os povos e luta contra o racismo e a discriminação, entre outros, que a instituição defende no âmbito do esporte, não se aplicam evidentemente nem às remoções nem às cidades onde os jogos são realizados.
IHU On-Line – Qual tem sido o papel do Núcleo de Terras e Habitação da Defensoria Pública do Estado do Rio de Janeiro?
Gerardo Silva – O papel do Núcleo de Terras e Habitação – NUTH foi fundamental na defesa dos moradores das comunidades contra as remoções. O grau de comprometimento e o esforço realizado foram muito além do que a média habitual do sistema jurídico institucional de proteção às pessoas mais desfavorecidas. Eu diria que eles se engajaram politicamente, no sentido mais nobre que essa afirmação possa ter. E, sobretudo, foram bem-sucedidos na sua estratégia de obstaculizar ao máximo as remoções e expor sua arbitrariedade ante a opinião pública nacional e internacional. Foi também um enorme ganho de experiência para todos os profissionais que participaram ou fizeram parte do processo, a maioria deles muito jovens, diga-se de passagem. Não foi por acaso que a própria Defensoria Pública do Estado mudou completamente o rumo do trabaho do Núcleo com a nova gestão eleita em 2011, desestruturando-o e esvaziando-o dos profissionais mais comprometidos. Foi uma grande derrota na luta contra as remoções no Rio de Janeiro.