Um genocídio planejado pelo Estado brasileiro? Entrevista com Cleber Buzzato

Há uma conjugação político-econômica, envolvendo os três poderes, numa mesma direção, que pode vir a exterminar os povos indígenas do Brasil.

Luciana Gaffrée, Rel-UITA

Presente no Fórum Permanente para Questões Indígenas da Organização das Nações Unidas, que teve sua abertura no dia 20 de abril, em Nova York (EUA), Cleber Buzatto, secretário executivo do Cimi, em entrevista para A Rel, nos fala das graves decisões políticas tomadas pelo Supremo Tribunal Federal; do perigo do extermínio de vários povos indígenas; e da importância de internacionalizar essas denúncias, onde a Rel-UITA entra como um importante agente e parceiro.

O governo brasileiro está alinhado à agenda da ONU para 2015, com relação aos direitos dos povos indígenas?

Na abertura do Fórum Permanente para Questões Indígenas da ONU, o vice-secretário geral da entidade afirmou que “garantir o bem-estar dos indígenas deve ser crucial na nova agenda global”, porém avaliamos não ser essa a linha adotada pelo Estado brasileiro, com seus ataques sistemáticos e violentos aos direitos dos povos indígenas, ignorando totalmente a situação atual de vida das comunidades e lideranças.

Ficou claro neste Fórum que o processo em curso no Brasil vai justamente na contramão da diretriz defendida pela ONU.

Você se refere ao Supremo Tribunal Federal?

Exatamente. Porque as decisões recentes, tomadas pela 2ª Turma do Supremo Tribunal Federal, são o resultado de um processo que envolve os diferentes poderes do Estado brasileiro.

Processo esse cujos maiores propulsores são exatamente os setores econômicos antagônicos e inimigos históricos dos povos indígenas, isto é, as mineradoras, os latifúndios, o agronegócio, as empreiteiras e todos esses grandes grupos econômicos.

Esses setores se fortaleceram muito nos últimos anos, por uma série de motivos, entre eles o financiamento privado e empresarial das campanhas eleitorais, garantindo uma maior presença no poder, em especial no Congresso Nacional.

Governo e os latifúndios são as duas caras de uma mesma moeda?

Uma mesma moeda que se chama “commodities”, já que o Brasil é dependente sobremaneira da exploração, produção e exportação de matérias primas, principalmente minerais e produtos agrícolas.

Isso favorece principalmente os latifúndios.

Por exemplo, a aprovação do Novo Código Florestal foi a primeira grande vítima desses setores. Hoje são os povos indígenas o grande alvo.

E essa articulação poderosa atinge o Supremo Tribunal Federal (STF)?

Exatamente. E como resultado, temos as últimas três decisões recentes, onde os ministros interpretaram que as terras Guyra Roka (MS), do povo Guarani Kaiowa; Porquinhos (MA), dos Canela Apanyekrá; e Limão Verde (MS), dos Terena, não seriam terras indígenas.

São três decisões muito ruins e preocupantes, porque anulam atos administrativos do Poder Executivo, já em fase adiantada, pois já estavam com as portarias declaratórias.

E o que é muito ilustrativo é o caso da anulação da portaria declaratória da terra do povo Terena, Limão Verde (MS), por já estar registrada em nome da União, e na posse pacífica e consolidada, portanto no pleno exercício do direito do Povo Terena ao usufruto permanente da terra.

Mas, como o STF conseguiu reinterpretar o que já estava decidido?

O STF usou de uma nova interpretação para o conceito de terra tradicionalmente ocupada, consignado no artigo 231 da Constituição Federal.

Essa nova interpretação é enormemente restritiva já no chamado “marco temporal”, por considerar que, para haver a posse da terra tradicional, eles deviam estar ocupando a área em 5 de outubro de 1988, data da promulgação da Constituição.

E no caso dos povos indígenas que não estivessem de posse de suas terras em 5 de outubro de 1988?

Nesses casos, os povos indígenas deveriam comprovar o chamado esbulho renitente, ou seja, não estarem no local, não por vontade própria, mas por impossibilidade, porque caso tentassem retornar sofreriam violência.

Comprovado o esbulho, o direito àquelas terras permaneceria vigente.

Isso não se cumpriu?

Não, porque, nestes três últimos julgamentos, o STF utilizou uma reinterpretação muito restritiva do conceito de esbulho renitente.

O ministro Gilmar Mendes e o ministro Teori Zavascki estão dizendo que só se caracterizaria o renitente esbulho se os povos provassem estarem na época disputando a posse das suas terras.

Para isso o STF só dá duas opções válidas para essa disputa. Teriam que estar disputando a terra judicialmente, com uma ação judicial requerendo a posse, ou em conflito de fato.

Ou seja, disputando na flecha, na pedra, enfim, guerreando com os fazendeiros em 1988. Ora! Isso é totalmente avesso aos fatos e ao direito da época!

Por quê?

Porque até 5 de outubro de 1988 os povos indígenas eram tutelados, não eram considerados plenamente capazes. Portanto, eles não eram considerados aptos para o ingresso no Poder Judiciário.

Quem poderia fazer isto no lugar deles, seria o Estado, que nessa época estava formatado pela Ditadura Militar, e exatamente catapultava os processos de retirada e de expulsão dos povos de suas terras, para que os fazendeiros tomassem suas terras para si.

E eles também não podiam guerrear! Porque seriam dizimados! Fica assim evidente que essa interpretação anula qualquer possibilidade de que os povos alijados de suas terras possam recuperá-las.

O que as três comunidades disseram?

Não puderam dizer nada, porque nenhuma das três comunidades foi sequer ouvida em quaisquer das fases do processo judicial que resultou nessa decisão.

O poder judiciário, em muitos casos, desconhece o direito dos povos de se representarem, de serem sujeitos de direito, inclusive para se manifestarem nos processos judiciais.

O artigo 232 da Constituição é muito claro nesse sentido, onde é explícito o direito das comunidades de ingressarem nos julgamentos, na defesa dos seus interesses.

Qual será o próximo passo?

As comunidades, insatisfeitas com essas decisões da 2ª Turma, estão sendo assessoradas pelos advogados do Conselho Indigenista Missionário (Cimi).

Já foram apresentados recursos pedindo a anulação de todo o processo judicial, uma vez que as comunidades indígenas não foram ouvidas no processo, e esse é um direito que necessariamente devia ter sido respeitado.

Mas, o governo homologou três novas áreas no Amazonas.

Sim, é certo. Mas isso se deve ao fato de o Poder Executivo não querer se envolver nas demarcações mais conflituosas do país, onde está a maior demanda dos povos indígenas.

É por isso que o governo homologou três áreas no Amazonas, para não enfrentar nenhum dos processos que envolvem conflitos, como no caso de Mato Grosso do Sul e do extremo sul da Bahia.

O que acontecerá com os povos indígenas, se essa direção não for desviada?

Se houver realmente a consolidação desse processo antiindigenista, por meio das decisões do STF, e da aprovação da PEC 215, a consequência prática será exatamente um processo agudo de novas expulsões dos povos de seus territórios e uma consequente imigração forçada para as periferias urbanas ou para a beira das estradas.

Em abril agora, o ministro Gilmar Mendes anulou o decreto da Presidenta que desapropriava terras para entregar ao Povo Tuxa de Rodelas na Bahia. Ou seja, mais do mesmo?

Essa anulação é parte dessa articulação antiindigenista. A Presidenta da República tinha decretado, em março de 2014, a desapropriação de uma área para a instalação do Povo Tuxa de Rodelas, já que o território tradicional desse povo tinha sido alagado por uma hidrelétrica.

Gilmar Mendes anulou esse ato do Executivo, alegando que a lei para a aplicação desse decreto só poderia beneficiar comunidades agrícolas, cooperativas, e para produção, e que os povos indígenas não se enquadram no conceito de população beneficiada pelo ato.

Então, por um lado o STF diz que não existem mais terras tradicionais e por outro diz que o governo não pode desapropriar áreas para fins sociais e nelas instalar os povos indígenas.

Portanto, a consolidação dessas decisões deixa, como único espaço para os povos, o olho da rua, a beira das estradas, ou as periferias urbanas.

Um genocídio planificado pelo Estado brasileiro?

Não existem meras coincidências. Não é possível que essa articulação tão perfeita entre todos os âmbitos do Estado sejam meras coincidências.

Em minha avaliação, dá para caracterizar perfeitamente como um processo potencial de genocídio.

Os povos indígenas alguma vez foram sujeitos de direito no Brasil?

Com o lampejo da Constituição de 1988, muitos povos conseguiram conquistar sua condição de sujeitos de direito, e alguns inclusive suas terras ou parte delas ao menos.A questão é que esse processo, ainda incipiente, está ameaçado de extinção.

Qual é a posição do Cimi?

Para nós, o governo se tornou refém dos interesses político-econômicos dos setores já mencionados, absolutamente todos inimigos históricos dos povos indígenas.

Porém, há indicadores de que esse processo é articulado dentro dos espaços de poder público, ou seja, o governo não é só refém, mas também é ator no processo de ataque aos povos indígenas no país.

Que importância tem a parceria do Cimicom a Rel-UITA?

Para nós, a parceria com a Rel-UITA é fundamental, porque precisamos divulgar para o máximo de países e de organismos, buscando pressionar o governo brasileiro, e com isso contamos com a colaboração da Rel-UITA.

Estávamos inclusive comentando aqui na ONU com as lideranças presentes, da importância da colaboração de vocês para a divulgação internacional da nossa luta.

Imagem: Cleber Buzatto: “Há forças políticas que jantam nos salões do Planalto e que defendem a tese segundo a qual os povos indígenas não precisam de terras” (Foto: CIMI)

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