por Isabel Harari e Stefano Wrobleski, em A Pública
“Cacique das minhas bolas” escreve um usuário do Facebook sobre Ilson Soares, o Sabiá, cacique da Tekoha Y’Hovy, aldeia próxima à cidade de Guaíra, no oeste paranaense. O comentário refere-se a uma foto publicada na página da Organização Nacional de Garantia ao Direito de Propriedade (Ongdip), associação de proprietários rurais da região, que retrata Ilson em uma manifestação pela demarcação das terras Guarani em novembro de 2014. Sobre outra imagem, de uma indígena Guarani fumando o petyngua, tradicional cachimbo de madeira, um usuário comenta “paraguaios vagabundos”; ao ver a mulher vestida outro usuário questiona “O que essa roupa estampada tem de índia?”.
É a materialização das tensões que imperam nos municípios de Guaíra e Terra Roxa, no oeste paranaense, desde 2009, quando a ocupação de terras consideradas tradicionais pelos Guarani levou a pequena população local, que, somada, alcança os 47 mil habitantes, a responder com violência e preconceito.
Com 53% de toda a terra ocupada por lavouras temporárias – sobretudo soja e milho, segundo o Censo Agropecuário de 2006 do IBGE –, o pouco da Mata Atlântica ainda preservada na região é disputada entre os fazendeiros e quase 1800 índios que lutam pela demarcação de suas terras após um longo processo de violações aos seus direitos que incluiu o esbulho de terras, remoções forçadas e a consequente desagregação social. Apenas na última década, eles voltaram a se organizar.
Desde pelo menos 2004 os Ava-Guarani e os Guarani Mbya passaram a “retomar” áreas que os anciãos indicam terem sido habitadas tradicionalmente antes das expulsões sistemáticas que culminaram com a construção de Itaipu. Na época, muitos fugiram para o Mato Grosso do Sul, São Paulo, outras regiões do Paraná e o Paraguai – a partir daí são pejorativamente taxados de “estrangeiros” ou “paraguaios”.
“Antigamente eles matavam a tiros, a bala. Hoje eles matam com decretos e portarias”, diz Ilson, cuja aldeia é uma das treze retomadas a partir de 2009, a menos de três quilômetros do centro de Guaíra. “Nestes últimos anos a violência tem aumentado. A discriminação aumentou. Até agora existe um clima de insegurança em Guaíra. A gente percebe que as pessoas têm muito mais preconceito que antigamente”, completa.
Em uma carta de repúdio à violência, as lideranças da Tekoha Y’Hovy descrevem haver “um discurso de ódio, discriminação e racismo contra o nosso povo Avá-Guarani que tem sido impactante para os jovens, crianças e também adultos, nos trazendo insegurança, fazendo com que nosso povo fique acuado sem saída e vendo todos os dias que as pessoas nos olham com repúdio, como se fossemos pragas, como se não fossemos seres humanos”.
Cercada por lotes de casas à venda e plantações de milho e soja das várias propriedades de médio porte do município, a Y’Hovy abriga 30 famílias que cultivam feijão, mandioca e milho. Diariamente, a vice-cacique Paulina Martines guia as atividades na opy, a casa de reza. Já na escola improvisada Paulina ensina as crianças e adolescentes o guarani: “Praticar a nossa religião e frequentar a casa de reza todos os dias vai fortalecer ainda mais o nosso ser, a nossa cultura, e mais do que isso, a gente vai estar seguindo o ensinamento queNhanderu [deus guarani] deixou para o povo indígena”.
Paulina mantém a aliança entre a luta espiritual e a defesa da terra. Já tarde da noite, antes dos cantos e rezas na opy, pede que cada criança e adolescente vá ao centro da casa e, em guarani, discorra sobre as perspectivas do processo de demarcação das terras indígenas em 2015. Os xondaros e xondarias – guerreiros e guerreiras – em idades de cinco a dezesseis anos, fumam o cachimbo petyngua e falam, alguns tímidos e outros mais animados.
Violência Brutal
Mas, do lado de fora da pequena aldeia, as mesmas crianças costumam enfrentar um ambiente hostil. Nas escolas, elas sofrem com xingamentos dos jovens não indígenas. Muitas são chamadas de “invasoras” pelos colegas. “É uma xenofobia ao contrário”, arremata Ferdinando Nesso, coordenador técnico local da Funai em Guaíra. “Os índios vieram para cá muito antes e agora são chamados de ‘invasores’”.
O cacique Ilson conta que, hoje, quando um índio entra em mercado é sempre observado por seguranças. “Não sei se é por medo que o indígena vá furtar alguma coisa ou porque talvez o indígena possa praticar algum tipo de violência, ou talvez contaminar as mercadorias”, ironiza. Na cidade, diversos indígenas relataram ainda terem que pagar um valor maior que o cobrado aos não-índios pelo mesmo produto. “Esses dias, precisei comprar uma peça para minha moto que havia quebrado. O homem que estava na minha frente na fila pagou 35 reais, mas o dono da loja queria me cobrar 72. Eu não pago!”, indigna-se Inácio Martins, cacique da aldeia de Marangatu.
Ilson também relatou à Pública diversos episódios de ameaças e tentativas de intimidação: “Já pararam uma senhora guarani que estava a caminho na aldeia pra avisar que a gente está em perigo. O mesmo foi feito com um grupo de crianças que voltavam da escola”. Ele conta que já foi perseguido por um carro quando voltava de bicicleta para a aldeia: “Ele me acompanhou em baixa velocidade por alguns metros. Quando a gente entrou na rotatória, consegui desviar”.
O preconceito já levou a casos de violência física. Em agosto de 2013, uma adolescente indígena, estagiária da Funai, foi sequestrada à luz do dia no caminho para o trabalho. Agredida e abusada sexualmente dentro de um carro com vidros escuros, ela foi liberada três horas depois no meio de um matagal com um recado: “fala pra Funai que a gente vai acabar com eles”. Ela não conseguiu identificar os agressores e ninguém chegou a ser punido.
Também em 2013, Bernardino D’avalo Goularte, um jovem guarani, foi assassinado a tiros próximo à aldeia Tekoha Porã, que fica em uma área urbanizada de Guaíra. Na ocasião, a polícia disse se tratar de uma briga de bar, mas indígenas alegam que os tiros foram disparados a esmo. Além dele, três crianças foram atingidas de raspão.
“Houve várias tentativas de atropelamentos. Alguns até foram atropelados e encaminhados pro hospital, mas não denunciavam o ocorrido” diz um trecho de outra carta dos Guarani. Segundo Ilson, uma senhora indígena foi atropelada em frente a rodoviária por um carro a 120 quilômetros por hora; o condutor fugiu a pé deixando o veículo em cima do corpo.
“O que Guaíra vem fazendo com a população guarani é uma das coisas mais absurdas e mais deprimentes que uma sociedade pode manifestar. Isso é um crime contra essas comunidades”, avalia o historiador Clovis Brighenti.
Para o cacique Ilson, a insegurança fundiária é o principal motivo para a situação de violência vivida em Guaíra e Terra Roxa, e a demarcação das terras é a única solução para apaziguar os conflitos.
“Lá na nossa região vai dar conflito, vai dar morte”
Quando os Guarani começaram o processo de retomada em 2009, os produtores das terras ocupadas entraram com pedidos de reintegração de posse. Os processos tramitam na Justiça, mas até agora, com os recursos impetrados pelo Ministério Público Federal (MPF), as dez aldeias mais recentes puderam permanecer.
A partir de 2012 os produtores rurais da região passaram a organizar uma forte campanha contra as ocupações indígenas: “O Brasil que produz merece respeito” é o slogan estampado em adesivos colados nos carros e folhetos distribuídos pela cidade. No ano seguinte, criaram a Organização Nacional de Garantia ao Direito de Propriedade (Ongdip), que tem organizado debates e manifestações, além de mobilizar políticos da região contra as demandas dos Guarani.
No mesmo ano, prefeitos e vice-prefeitos de onze municípios da região realizaram um encontro no município de Marechal Cândido Rondon com parlamentares estaduais e do Congresso Nacional, além de representações patronais, para elaborar uma carta a esferas do Poder Executivo e Legislativo. Com o auditório lotado de agricultores da região, a carta demonstrava “preocupação com a possibilidade da demarcação de reserva indígena no oeste do Paraná” e reforçava a visão de que os índios seriam “estrangeiros” na terra.
“É importante lembrar que esta região foi libertada da exploração estrangeira justamente pela ocupação dos colonos a partir da década de 40, após adquirirem terras que foram distribuídas pelo governo às colonizadoras”, diz o documento. “Chama a atenção o fato de que até bem pouco tempo, praticamente não existiam indígenas nesta região. Além disso, é público e notório que índios estão migrando de outras regiões do país e até do Paraguai para iniciar este suposto movimento visando a demarcação de uma área indígena em terras produtivas do extremo Oeste do Paraná”, prossegue.
O deputado federal Dilceu Sperafico (PP-PR), membro da Frente Parlamentar da Agropecuária, a bancada ruralista, é um dos signatários que levou a carta para leitura no plenário da Câmara dos Deputados. À Pública, o parlamentar disse que a Funai “fica fomentando invasões de áreas e tentando demarcar a todo custo áreas que já são tituladas há cinquenta anos na nossa região”. Na sua visão “a finalidade da Funai não é só demarcar áreas indígenas. É dar bem-estar, acompanhar e inserir, na medida do possível, o índio à sociedade”.
“Não somos em hipótese alguma contra os indígenas”, afirma Dilceu. Ele também defende que as ocupações recentes de terras são feitas por indígenas que “estão vindo do Paraguai, da Bolívia, do Mato Grosso, de todo lugar, pra lá” e por isso “a solução seria demarcar onde não haja conflitos e tenha áreas disponíveis. Ou, se [a Funai] quer determinada área que seja uma propriedade, tem que indenizar, se o proprietário tiver interesse”.
O deputado ainda argumenta que, além da Funai, ONGs internacionais “têm interesses de todo lado” na questão: “Tem gente que vive disso, é o ganha pão deles ficar trabalhando para uma ONG”. Se não houver uma solução, ele vaticina: “Lá na nossa região vai dar conflito, vai dar morte”.
A reportagem tentou, ao longo de uma semana, ouvir representantes da Ongdip, mas o presidente e o vice-presidente estavam viajando e não retornaram os contatos.
Qual o valor da terra?
Clovis Brighenti, que atua com populações indígenas desde 1988, resume o impasse: “Para o agronegócio, a terra é uma mercadoria. A terra é um dos bens mais valiosos e, hoje, a terra tem um valor econômico expressivo. Mas a população indígena – os Guarani, especialmente – ocupam o espaço de outra maneira. Eles querem a terra pra poder viver sobre ela. É um espaço sagrado. Para o mercado, não. Então o mercado jamais vai aceitar que a terra seja – na visão dele – ociosa”.
Para o historiador, os indígenas são vistos como “estorvos” pela população. “É uma sociedade com uma única língua, com um único pensamento, com um único modo de produção, e quem não se enquadra está fora. Os militares no Brasil tiveram a proeza de fazer essa castração total, de impedir qualquer diferença, diferença biológica, diferença cultural”.
Apesar de terem direito constitucional a uma educação escolar diferenciada, na região apenas a aldeia de Marangatu, existente desde 2004 em uma área de preservação do Lago de Itaipu, tem uma escola em condições adequadas. Com áreas em disputa judicial, o poder público tem sido pressionado pelo MPF a garantir condições mínimas de sobrevivência aos indígenas. Em junho de 2013, uma série de procedimentos instaurados pelo órgão exigiu a instalação de água e luz nas aldeias. Até então, das treze ocupações só uma tinha fornecimento adequado de água. Nenhuma delas contava com luz elétrica para todos – seis ficavam completamente no escuro durante a noite.
Os procedimentos do MPF também resultaram em investigações por conta de publicações recentes na internet contra os indígenas. Há um inquérito policial e cinco ações penais movidas na Justiça contra pessoas acusadas de postar conteúdo racista em redes sociais e blogs. As postagens foram removidas por conta do processo, mas ainda assim conteúdo de cunho racista e violento pode ser encontrado na página da Ongdip. Além disso, a polícia ainda investiga denúncia contra uma cooperativa da região, de demissão em massa de indígenas motivada por discriminação social. O inquérito corre em sigilo.
Antropólogos hostilizados
Além dos indígenas, funcionários e especialistas que atuam com os Guarani sofrem retaliações dos cidadãos de Guaíra, onde estão dez das treze aldeias ainda não demarcadas. Diogo Oliveira, antropólogo da Funai que trabalhou na região entre 2012 e 2014, conta que, no período, o clima era de “hostilidade e tensão”: “Eu era hostilizado nas ruas e sempre havia uma insegurança em permanecer na área”. Ele lembra que, certa vez, quando estava saindo de um restaurante, um carro que não conhecia se aproximou e seu motorista abaixou o vidro e disse: “isso vai acabar”. Com a atuação do MPF, que estabeleceu uma unidade em Guaíra em 2012, a situação ficou mais tranquila: “Hoje os indígenas conseguiram um pouco mais de reconhecimento, mas situações de preconceito e de violência permanecem”, diz Diogo.
Camilla Sales, antropóloga integrante do grupo de trabalho designado pela Funai para avaliar a presença indígena na região, afirmou à reportagem que um comerciante local chegou a ser constrangido a deixar de atendê-la. Camila comprava com frequência alimentos em quantidade para os indígenas, e já era conhecida na cidade pela sua atuação. Depois de algum tempo, ela conta, o dono do comércio se negou a vender a ela. Disse ter recebido a ligação de um funcionário de uma agência bancária da cidade questionando “de que lado” ele estava, e alertando que ele não devia mais comercializar com a antropóloga. Pesquisadores do Centro de Trabalho Indigenista (CTI) ouvidos pela Pública também contaram que, depois de reconhecidos, uma agência local de aluguel de carros deixou de atendê-los. Hoje, é preciso alugar carros em outro município para conseguir se deslocar entre as aldeias.
A vice-cacique Paulina atenta para o fato de Guaíra ser uma cidade essencialmente indígena, mas que assim trata os Guarani como se “não fossem seres humanos”: “Guaíra era a maior concentração das famílias guarani naquele tempo. A cidade hoje, o centro da cidade, está exatamente em cima da maior aldeia que tinha”. Ela reconta o que lembram os anciãos: o nome da cidade advém do nome de um dos caciques que ali vivia, Guavirá.
E faz questão de manter viva a história do nome escolhido para o complexo hidrelétrico de Itaipu. Trata-se de uma referência a duas palavras em guarani, ita e ipu, o que significa “pedra que faz barulho” ou “pedra que tem som”. “Tiveram a coragem de usar a palavra guarani pra ser o nome da represa deles. Isso eu acho uma violência enorme”.
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