Quanto vale um morto ou sobre quantos corpos se ergue o ‘desenvolvimento’?, por Oiara Bonilla

Pássaro morto no mar de petróleo causado pelo naufrágio do Erika, da Total, em dezembro de 1999, nas costas da Bretanha. Foto: Le Figaro
Pássaro morto no mar de petróleo causado pelo naufrágio do Erika, da Total, em dezembro de 1999, nas costas da Bretanha. Foto: Le Figaro

Por Oiara Bonilla, para Combate Racismo Ambiental

então também percebi que, num país,
uma coisa é o governo, outra coisa é o povo

(Ondjaki)

“Não se ergue uma barragem em cima de um cadáver!” afirmou o ecologista francês Noël Mamère no mês passado, logo após a morte de um jovem militante no canteiro de obras da futura barragem de Sivens, na região do Tarn, sudoeste da França. Interessante pensar quanto vale uma vida aqui e alhures quando o que está em jogo é um projeto desenvolvimentista de Estado, envolvendo interesses econômicos (de empreiteiras e grandes produtores rurais) e políticos (locais e nacionais).

Na noite do dia 25 de outubro de 2014, Rémi Fraisse, 21 anos, estudante de botânica da Universidade de Toulouse, foi atingido por uma granada de gás lacrimogênio, arma de efeito moral  que teve efeito mortal, lançada pela polícia enviada pelo governo para desocupar o canteiro de obras da barragem. A ordem era expulsar os cerca de 200 manifestantes que há meses acampavam no canteiro.

O projeto da barragem de Sivens tem mais de 25 anos e foi recentemente desengavetado para irrigar as plantações de grandes produtores de cereais da região, e a pedido do Conselho Regional do Tarn (instância administrativa supra departamental francesa) que em uma tragicômica preocupação ambiental afirma querer se “antecipar às mudanças climáticas futuras e a consequente falta d´água na região”. A barragem está voltada, em suma, às demandas das grandes plantações de milho e à manutenção artificial do nível das águas do rio Tescou (afluente do rio Tarn), independentemente da estação do ano.

Além de alagar a última ‘zona úmida’ da bacia deste rio e uma Zona Natural de Interesse Ecológico de Fauna e Flora (ZNIEFF) que abriga 94 espécies animais e mais de 300 espécies de plantas, a barragem será financiada inteiramente por dinheiro público para benefício quase que exclusivo de uns 20 produtores rurais. As organizações que combatem o projeto (Collectif pour la Sauvegarde de la Zone Humide du Testet e Collectif Tant qu’il y aura des bouilles il n’y aura pas de barrage) e outros aliados políticos (o Partido Ecologista e outros à esquerda do Partido Socialista, intelectuais e artistas) afirmam que seu processo de elaboração foi manipulado e anti-democrático, além do que a barragem reforça a adesão do governo socialista ao modelo produtivista da monocultura extensiva.

* * *

A França acordou no dia 26 de outubro chocada com a notícia da morte do jovem Rémi e com as imagens do assalto ao canteiro pela polícia. As ruas do país foram tomadas por manifestantes, em maioria de esquerda (entenda-se, à esquerda do Partido Socialista), que denunciavam a violência do Estado e a morte de um inocente. E foi essa morte que finalmente chamou a atenção da mídia e da opinião pública sobre a barragem e o que ela representa, ampliando o debate e obrigando os políticos a se posicionar e a repensar o projeto (sem contudo abandoná-lo). Em paralelo, observou-se na impressa e nos discursos oficiais uma operação de demonização dos militantes, sendo descritos então como “jihadistas verdes” e vândalos.

Difícil não lembrar aqui, em escala outra e bem maior, do contexto brasileiro e do preço que se paga em vidas humanas, populações e ecossistemas inteiros para garantir a construção de barragens, usinas, portos, estradas e estádios de futebol em nome do desenvolvimento da nação e de um suposto interesse coletivo, nacional. Difícil não lembrar da truculência policial empregada em desocupações (como aconteceu em Pinheirinho, na aldeia Maracanã, em canteiros de obras como o da usina hidrelétrica de Belo Monte) e em reintegrações de posse concedidas a latifundiários.

A respeito do último, lembremos da Fazenda Buriti e da morte de Oziel Terena pela Polícia Federal. De todos os índios assassinados nas terras confiscadas pelo latifúndio e mortos nas estradas do Mato Grosso do Sul. Lembremos de Adenilson Munduruku e da absolvição sumária do delegado acusado de sua morte, no Pará. Lembremos também de todos os operários mortos nos canteiros das usinas de Belo Monte, Jirau, Santo Antonio, na bacia amazônica, dos quais simplesmente nunca ouvimos falar. Só em Jirau, já foram mais de 40. E dos que perderam a vida nas obras dos estádios da Copa, em todo o País, dos quais tampouco sabemos os nomes, pois hoje só são lembrados por suas famílias. Sobre quantos mortos se ergue o desenvolvimento? Que preço ainda estamos dispostos a pagar sob pretexto de que “não há alternativas” ao capitalismo e ao desenvolvimentismo?

* * *

Voltando à França, no dia 1 de novembro, o jornalista Daniel Mermet, demitido há uns meses da rádio nacional pública France Inter, onde animava um programa muito crítico à política econômica liberal socialista (Là-bas si j’y suis), abriu o show de uma banda de música militante (Les Ogres de Barback) com um discurso em homenagem a Rémi Fraisse. Nele, contrapôs a morte recente do grande magnata francês do petróleo  (da empresa Total) num acidente aéreo na Rússia, que fora cercada de homenagens oficiais e midiáticas, à do jovem manifestante morto pela polícia no canteiro da barragem, acusado rapidamente de extremismo e vandalismo:

“No enterro do patrão da Total, rei do petróleo, havia pássaros. Foi pouco dito isso: havia pássaros. Pássaros enlutados. Gaivotas. Pássaros marinhos, todos de preto. A cor preta da maré negra. O negro do Erika. Do naufrágio pelo qual a Total foi condenada. Eram pássaros do partido do Rémi, partido dos “jihadistas verdes”! (…)

Passada a fase do respeito aos mortos, as duas figuras, em poucos dias, tornaram-se símbolos da nossa época. Dois símbolos irreconciliáveis. É preciso escolher seu lado: o do assassinato ou o do acidente aéreo. A oligarquia escolheu! O governo escolheu! O cinismo, a violência, o desprezo e tudo o que enoja (…).

Então, escolha o seu lado, camarada. O vento começa a soprar, não há mais arranjos possíveis.

Corra, camarada! Os pássaros negros morrendo olham para você.
Corra, camarada! O velho mundo ficou pra trás!”

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