
Jean Wyllys
Durante um debate organizado pelo jornal O Globo para analisar o resultado das eleições, para o qual fui convidado, o deputado estadual tucano Luiz Paulo Corrêa da Rocha afirmou que os governos do PT “dividiram o país” e que, portanto, é responsabilidade da presidenta Dilma, no seu segundo mandato, “voltar a uni-lo”. Esta retórica – reproduzida em análises do resultado do segundo turno das eleições publicadas nos principais jornais do país – não é original do Brasil: está presente nos discursos da direita em todos os países da América Latina cujos governos, mesmo sem questionar as bases do modelo econômico neoliberal, desenvolveram políticas mais ou menos intensas de redistribuição da renda e melhoraram a qualidade de vida dos mais pobres, ou ampliaram os direitos de diferentes parcelas da população antes excluídas; todos esses governos são acusados por suas respectivas oposições à direita de “dividirem” seus respectivos países.
Essa retórica é, além de ressentida, arrogante – na medida em que age como se a totalidade dos eleitores não tivesse memória histórica nem acesso à informação – e desonesta quando busca esconder o fato de que todos esses países já estavam divididos há séculos. Foi o que respondi ao deputado tucano!
Sim, o Brasil está dividido. Em primeiro lugar, pela divisão de classes própria do capitalismo, que, em sua versão brasileira, está marcado pela herança escravocrata que nos dividiu – a princípio literalmente e, depois, metaforicamente – em “casa grande e a senzala”. Ora, segundo o censo do IBGE de 2010, os 10% mais ricos da população ganharam, nesse ano, 44,5% do total de rendimentos; enquanto os 10% mais pobres receberam menos de 1,1%. Esses números significam que quem está na faixa mais pobre precisaria poupar a totalidade de seus recursos durante três anos e três meses para acumular a renda média mensal dos brasileiros que pertencem à faixa mais rica.
E esses dois “brasis” – o da casa grande e o da senzala – correspondem também a outras divisões igualmente históricas: o país branco e o preto; o país do sul-sudeste e o do norte-nordeste; o país do asfalto e o da favela; o dos jardins e do periferia; o país da empregada doméstica e o da patroa. A geografia de nossas cidades — “cidades partidas”, para usar a expressão de Zuenir Ventura em livro nada recente e anterior à emergência do PT ao governo federal — está marcada por uma divisão tão evidente quanto naturalizada. No Rio de Janeiro, por exemplo, essa divisão tem uma expressão horizontal – materializada no túnel Rebouças que divide a cidade em zonas sul e norte (“Só falta reunir a zona norte à zona sul; iluminar a vida já que a morte cai do azul”, cantou Lulu Santos muito antes de o PT pensar em fazer um presidente da república) – e outra vertical, em que a favela no morro é uma outra cidade dentro da cidade, com diferentes investimentos e serviços públicos e até leis (“Um dia desses eu tive um sonho em que havia começado a grande guerra entre o morro e a cidade”, cantava Alceu Valença em plena era Fernando Henrique Cardoso). (mais…)
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