Sem analisar diferença de voto entre negros e brancos, campanha de 2014 deu cobertura política ao racismo

Quadro de Abdias do Nascimento
Quadro de Abdias do Nascimento

Blog do Plínio Fraga

Havia uma novidade na eleição de 2014, que se perdeu em meio a discussões menos importantes e mais estridentes. Pela primeira vez, a soma de eleitores que se declaravam negros/pretos/pardos superava em 15,7 milhões aqueles eleitores que se declaravam brancos. Atingiam 55% do eleitorado. Assim como também havia, pela primeira vez, 6 milhões de mulheres a mais, formando 52% dos votantes.

Era uma chance de discutir e agrupar posições a respeito das políticas públicas sobre raça e gênero. A imprensa perdeu essa oportunidade. Não por incompetência ou por ingenuidade, mas por método.

A pesquisa da véspera da eleição do Ibope apresentou Dilma Rousseff (PT) com 55% dos votos entre os negros e Aécio Neves (PSDB) com 37%. A petista tinha seis pontos acima da média no eleitorado total. O tucano tinha cinco pontos a menos. Entre os brancos, as variações se invertiam. Aécio tinha 50%, sete pontos a mais do que sua média nacional. Dilma tinha 41%, oito pontos a menos. 

Marina Silva (PSB) foi a única dos 11 candidatos a presidente que se declarou como negra ao registrar sua candidatura. Não foi o suficiente para realçar ou abrir o tema racial na campanha eleitoral. Se dependesse do eleitorado negro, teria ido ao segundo turno. A faixa em que perdeu mais votos foi entre os brancos e os homens.

Um dos maiores símbolos do combate à discriminação racial no Brasil, o ativista Abdias do Nascimento completaria 100 anos em 2014. Morto três anos atrás, Abdias tinha inteligência, talento, obstinação em nível raro de tão elevado. Pintor, dramaturgo, escritor, poeta,  fundador do Teatro Experimental do Negro em 1944, deputado e senador. Como parlamentar, foi um dos primeiros a apresentar projetos de ações afirmativas para negros, como o que previa a criação de uma cota de 20% para mulheres negras e de 20% para homens negros na seleção de candidatos ao serviço público. Por duas vezes foi preso na ditadura do Estado Novo (1937-45) ao protestar contra a discriminação. Após o golpe de 64, exilou-se nos Estados Unidos por 13 anos. Em 1981, ao votlar ao Brasil, foi um dos fundadores do PDT. Chegou ao Congresso por duas vezes, sempre como suplente que assume a vaga na ausência do titular do mandato.

Em uma conversa pouco antes de sua morte, na sede do instituto que comandava no Catete, provoquei-o sobre a argumentação daqules que questionam a chamada racialização do debate político. Sendo o Brasil miscigenado, não faria sentido enxergar divisão racial aqui. Sentado em sua cadeira de balanço, apoiado na bengala, mas lúcido como sempre, respondeu: “Isto é a cretinice brasileira, a falta de caráter, a sem-vergonhice brasileira. Isso vem de longe. Este discurso é para ajudar o Brasil a continuar racista. A continuar a ter a cobertura moral para o racismo. Eles querem até isto.”

A cobertura moral para o racismo se estrutura em pontos que parecem banais, mas que projetam a imensa sombra sobre o tema. Os dois principais instituto de pesquisas perguntaram em todas as pesquisas a cor com a qual os eleitores se declaravam.

A abordagem racial é vista com reparos por analistas de mídia e por parcela dos acadêmicos. A argumentação seria de que as mazelas sociais podem ser debatidas e enfrentadas a partir de corte de problemas estabelecidos a partir das diversas faixas de renda e escolaridade. Mas o estrato de declaração de cor não deve ser desprezado. As estatísticas mostram por quê. Já as citei aqui: um trabalhador negro no Brasil ganha, em média, pouco mais da metade do rendimento recebido pelos trabalhadores de cor branca. De cada dez empregadas domésticas no país, seis são negras. Os negros apresentam esperança de vida semelhante à que os brancos tinham 15 anos atrás. A taxa de homicídio entre os negros é o dobro da entre os brancos. Os pretos e os pardos, após os indígenas, são aqueles com a maior taxa de mortalidade infantil.

Como dizia Abdias Nascimento, existe a cobertura moral para o racismo. Assim como a cobertura política, tão eficiente e silenciosa, como se mostrou nesta eleição.

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