Jovem escravizado trabalhou em pastelaria por dois anos sem receber salário ou poder sair do local. Fiscalização investiga se caso está ligado a rede internacional de tráfico de pessoas
Por Stefano Wrobleski – Repórter Brasil
Um adolescente chinês de 17 anos foi resgatado de trabalho em condições análogas às de escravos no município fluminense de Mangaratiba, a 100 quilômetros da capital Rio de Janeiro. Desde que chegou ao Brasil, há dois anos, ele trabalhou diariamente em uma pastelaria sem descanso ou qualquer salário. “A gente faz nossas compras em um estabelecimento e, muitas vezes, não percebe que há trabalhadores sendo escravizados na nossa frente”, resumiu a auditora do trabalho Marcia Albernaz de Miranda, que participou do resgate. A violação foi descoberta depois de a vítima fugir e ser acolhida pelo Conselho Tutelar local. A comunicação com o jovem, que por viver isolado não sabia falar português, só foi possível com ajuda de uma ferramenta de tradução de idiomas pela internet. Os agentes da fiscalização consideraram que o adolescente foi vítima também de tráfico de pessoas.
A locomoção da vítima foi restringida, segundo a fiscalização, porque seu passaporte ficou retido com os responsáveis pelo estabelecimento. Encerrado o expediente às 22 horas, o rapaz ia para o andar de cima, onde ficava seu alojamento e de outros cinco chineses adultos que também trabalhavam na pastelaria. Apertado e sem janelas, o local foi considerado em condições degradantes, o que colaborou para a caracterização de trabalho escravo segundo o artigo 149 do Código Penal. O trabalho desses adultos, no entanto, não foi classificado como em condições análogas às de escravos pela fiscal, que não considerou que eles estivessem sujeitos às mesmas outras infrações cometidas contra o adolescente.
O jovem libertado contou à fiscalização ter chegado ao Brasil em 2012, de avião. Sua passagem foi paga pela mãe e a viagem foi feita com cinco conterrâneos desconhecidos de sua cidade natal. No Rio de Janeiro, o grupo foi recepcionado por um homem, que os levou até uma casa. O dono da pastelaria chegou logo depois e levou a vítima para o local onde ela trabalhou até fugir. O adolescente ainda relatou nunca mais ter tido contato com os demais chineses.
As características do caso fizeram a fiscalização autuar o dono da pastelaria por tráfico de pessoas, além de trabalho escravo. “O tráfico de pessoas não está ligado necessariamente à participação no processo de translado das pessoas. Para ser autuado, basta ter acolhido a vítima para, em combinação com outras características como as desse caso, ser caracterizado”, explicou Marcia. A fiscalização, que investiga casos semelhantes na região, apura ainda se o caso está relacionado à atuação de uma rede de tráfico de pessoas que alicia trabalhadores chineses.
Resgate
Com apenas R$ 100 no bolso, o rapaz fugiu sozinho à noite, quando todos estavam dormindo. Sem que ninguém visse, teve de pegar as chaves do local, que ficavam guardadas no quarto da família dona da pastelaria. Sem saber para onde ir e sem falar português, a vítima começou a caminhar pela estrada em direção ao município vizinho de Itaguaí. Andou cerca de 20 quilômetros madrugada adentro, ao longo de quatro horas, até ser abordado por dois policiais militares, que o encaminharam ao Conselho Tutelar do município.
Por causa das dificuldades de comunicação, os conselheiros buscaram outros chineses que vivem na região, mas ninguém conseguiu ajudar porque a vítima faz parte dos 30% de chineses que, de acordo com o governo da China, não falam mandarim (o idioma oficial do país). Só na província de Guangdong, de onde o jovem veio, são faladas outras seis línguas além do mandarim.
Sem ninguém que pudesse ajudar com a tradução, os servidores recorreram a ferramentas de tradução pela internet. Só então a Superintendência Regional do Trabalho e Emprego (SRTE) do Rio de Janeiro (a divisão do Ministério do Trabalho e Emprego responsável pelo estado) pôde ser chamada para investigar o caso. “Como o trabalhador foi encontrado por servidores públicos [os policiais militares], foi possível caracterizar o flagrante e acolher a vítima”, explicou Marcia.
Como consequência da operação, o Ministério Público do Trabalho (MPT) propôs um Termo de Ajuste de Conduta (TAC) à pastelaria, que se comprometeu com uma série de medidas para regularizar as condições dos alojamentos e a manter os demais trabalhadores em um hotel até que as obras estejam prontas. De acordo com o procurador Marcelo José Fernandes da Silva, do MPT, o dono do local deve, ainda, pagar todos os salários devidos à vítima de trabalho escravo, além das verbas rescisórias. Além disso, o empregador não deverá mais contratar adolescentes menores de 16 anos, a não ser na condição de aprendiz, ou reter os documentos de seus empregados.