Escravos Ngolas, Benguelas, Congos e Nganguelas chegaram ao Uruguai a partir do século XVII. Com outros africanos cativos, criaram um ritmo que ainda hoje agita as ruas da capital Montevideu. Deram-lhe um nome kimbundo: candombe. História desconhecida dos povos de Angola no outro lado do grande oceano.
Pedro Cardoso, em Buala. Fotografias de Candombe TV/Maxi López
“Ta-ta-ta, tata! Ta-ta-ta, tata…” O som seco de um batuque ecoa nas ruas de fim de tarde do Barrio Sur de Montevideu. Um homem sentado à soleira da porta de um casarão velho deste antigo bairro de escravos africanos, marca o ritmo com uma baqueta, no costado de madeira do seu tambor solitário. “Ta-ta-ta, tata…”
A rua está deserta mas o silêncio está por acabar. A resposta logo vem, de longe: ” Ta-ta-ta, tata!!”. De outro norte do bairro, grita mais um batuque. E outro. E mais outro ainda: “Ta-ta-ta, tata!!”. Tambores em crescendo. Os vizinhos debruçam-se sobre janelas e varandas. Todos sabem: começou a llamada (chamada). E, mais tarde ou mais cedo, o velho solitário sentado à porta da sua casa estará rodeado de tamborileros (percussionistas) vindos de todos os lados. Convocados pelo batuque que ecoou no silêncio do Barrio Sur, reúnem-se em batidas diferentes que se entrelaçam num ritmo único.
“É o candombe, senhores!”, anuncia Lalo Baraibar à Austral, numa entrevista telefónica a partir de Montevideu. Apaixonado por esta tradição de raiz africana, conta: “candombe é isso mesmo: quando uma, duas, três pessoas começam a tocar os tambores e começam a chegar mais tamborileros das ruas vizinhas. Juntam-se de forma espontânea, no que conhecemos como llamadas”. Desta forma, cumprem-se mais de 200 anos de tradição, que começou bem lá atrás, no tempo dos escravos.
Batucada de areia
Montevideu transformou-se num porto negreiro a partir da segunda metade do século XVIII. À capital da então chamada “Banda Oriental” chegaram, entre 1752 e 1843, de 50 a 60 mil africanos, conta o académico Oscar Montaño ao portal “Multicuralismo en Uruguay”.
Congos, Ngolas, Benguelas, também Nganguelas, Quissamas, Cabindas, entre outros, enchiam o porto na boca do Rio del Plata. A maior parte esperava novo embarque para Buenos Aires, Peru ou Bolívia. Os que ficaram por Montevideu foram poucos, mas suficientes para transfigurar a cidade. Em 1790, conta o historiador Poncio Torrado em “La Esclavitud en Uruguay”, somavam já cerca de cinco mil, mais de metade da população da cidade colonial.
A partir de 1760, ano em que os escravos passaram a gozar de uma inédita folga aos domingos, os baldios de areia junto à muralha de Montevideu transformaram-se em terra ritual. Ao sair da casa dos seus “amos”, os africanos convocavam-se uns aos outros ao som de batuques, que ecoavam pelas ruas da cidade. Descreve o cronista da época Isidoro de María, citado pelo Portal Candombe, que “cabindas, benguelas […] reuniam-se para os seus cantos e bailes, entoando os seus cadenciados yé yé, yé, Calunga yé, eeé llumbá”.
Com o passar do tempo, os diferentes toques de batuque dos africanos em Montevideu acabariam por fundir-se num toque colectivo ao qual se chamou “candombe”. Uma palavra que muitos especialistas actuais associam ao termo kimbundo “kandombe” – negrito. No Portal Candombe, o historiador uruguaio Oscar Montaño apresenta uma hipótese: “é um aporte benguela do povo Ndombe, mais numeroso e notório entre as etnias africanas que chegaram a Montevideu”.
Com um nome influenciado pelos povos (hoje) angolanos, o candombe virou força vital entre os africanos cativos. Desde então, os tambores nunca mais se calaram em Montevideu.
Salve Baltazar!
À medida que os escravos da cidade se organizavam, as batucadas deixaram a areia das muralhas e passaram a ecoar nas “Salas de Nações”, organizações que reuniam africanos da mesma origem. Os encontros davam-se a cada domingo e duravam “até ao cair do sol”, conta o cronista Agustin Beraza, citado pelo académico Gustavo Goldman no livro “Candombe”. Velas, flores e vestimentas ao estilo europeu faziam parte deste ritual presidido por reis e rainhas eleitos entre os escravos.
Nestas reuniões massivas, recordavam as suas origens, alternando-as com novos elementos captados no contexto em que viviam. Foi assim que desenvolveram um complexo sincretismo religioso que misturava Kalunga e Nzambi com figuras católicas impostas pela Igreja e as suas confrarias. Entre os santos venerados pelos africanos, um deles sintetizava, mais que nenhum outro, a sua condição: São Baltazar, o rei-mago negro.
A devoção era frenética. Durante a primeira metade do século XIX, Montevideu habituou-se a acordar especialmente ofegante, sempre que o calendário marcava 6 de Janeiro. A cada dia dos Reis, milhares de africanos invadiam religiosamente as ruas da capital uruguaia em frenética batucada em honra a São Baltazar. O candombe vivia o seu apogeu.
As cerimónias começavam “quase com a alva, com o soar dos tambores nas salas Mina, Congo, Angola e Banguela “, conta o jornal El Ferro-carril em 6 de Janeiro de 1882, num artigo reproduzido por Gustavo Goldman em “Candombe”. Às “8 ou 9 da manhã, formava-se uma comitiva encabeçada pelo rei dos Congos ou pelo rei dos Angolas , seguidos por delegados de outras nações”, descreve Vicente Rossi em “Cosas de Negros”. Este cortejo real saí, então, em visitas de cortesia às autoridades políticas, militares e religiosas de Montevideu.
Só por volta das 14 horas, os africanos tomavam de assalto os arredores de Montevideu, dando início à verdadeira festa. Ecoavam tambores, “kissanjes, marimbas, apitos” e “um coro de milhares de vozes descomunais”, conta o Ferro-carril. Todos participavam, “desde os morenos de cem anos […] até à negrita pequena ”.
Apesar da força destes festejos, o tempo não corria a favor de São Baltazar. A morte dos anciãos que chegaram como escravos a Montevideu, e a influência do crescente “sector negro crioulo”, avesso a “coisas de África”, confluiu no fechar de portas das Salas de Nações por finais do século XIX, conta Gustavo Goldman. Com estas organizações, desapareceram também os grandes cortejos do dia dos Reis. Nas primeiros décadas do século XX, o candombe passou a ser uma mero apontamento nos desfiles de carnaval, levado às rua por grupos chamados “comparsas”. Terminava, assim, a era dos Reis africanos em Montevideu.
Candombe de todos nós
No Barrio Sur da capital uruguaia há desenhos de África e de batuques nas paredes. Numa esquina da Rua Ilha das Flores, palco tradicional do candombe de Montevideu, um graffiti reafirma: “o batuque tem memória, alma do batucador e alma dos seus antepassados”. Estamos num lugar sagrado.
A alma persiste, mas a memória tem espaços em branco. Como diz Lobo Nuñez, figura mítica do candombe de Montevideu, os escravos “foram vítimas de tráfico ilegal, e no contrabando nunca nada fica registado”. “A primeira coisa a desaparecer foi o lugar de onde viemos”, comenta no documentário “Pequeños Universos”.
A falta de referências ainda hoje cria desequilíbrios identitários entre os afro-uruguaios. “Uma parte sente-se primeiro africana e depois uruguaia; outra parte evita ser negra a todo o custo “, baliza Oscar Montaño numa entrevista a “Multicuralismo en Uruguay” . Mary Portocasas, pintora afro-uruguaia, atribui essa atitude ao “racismo que ainda hoje se vive no país”, mas dá um giro inesperado: “essa discriminação acabou por criar uma grande força de resistência que, no caso do candombe, não o deixou morrer”. E acrescenta: “Cada comparsa (grupo de candomberos) que sai hoje à rua, representa um triunfo de todos os antepassados caídos na escravatura”.
A prová-lo, está a própria História. “Pelo menos até à década de 1960 e 1970 […] as negras que dançavam eram consideradas prostitutas e os negros que tocavam eram vistos como bêbados”, comenta Oscar Montaño. Vivia-se, então, o período final dos conventillos, conjuntos habitacionais onde viviam os afro-descendentes. Durante esse período de aparente silêncio, o candombe evoluiu, criando as variações que o conformam actualmente. No conventillo Gaboto, desenvolveu-se o toque Cordón; no Medio Mundo, Barrio Sur, o toque Cuarém; e no Barrio Reus al Sur, em Palermo, distinguiu-se o toque Ansina.
Nas décadas de 1970 e 1980, estes redutos foram demolidos. Um tiro que saiu totalmente pela culatra, como conta Lalo Baraibar: “As autoridades pensavam que, ao destruir os conventillos, iam acabar com o candombe. Mas aconteceu exactamente o contrário: o candombe espalhou-se por toda a cidade, acabando por crescer muitíssimo nos últimos 20 anos. Passou de ser uma coisa de negros, para ser coisa de todos os uruguaios”.
E de todos nós. Em 2009, a Unesco reconheceu esta tradição como Património Cultural Imaterial da Humanidade. Mais um “triunfo do colectivo afro-uruguaio”, considera Oscar Montaño, “que, ao longo de 200 anos tem sabido preservar este legado que tem África como mãe”, escreve o historiador em Portal Candombe.
As comparsas criadas no final do século XIX, em substituição das Salas de Nações, são, ainda hoje, o núcleo central desta tradição que sofreu uma mutação impressionante. “O candombe virou moda, e já não importa se és negro ou branco para poder alinhar numa comparsa, o importante é que sintas essa unidade colectiva em torno do tambor “, assegura Lailo Baraibar.
Neste furacão de ritmo e tradição, o olho continua a ser, tal qual como no tempo dos primeiros escravos, as llamadas. Em desfiles organizados ao longo de todo o ano, dezenas de comparsas alinham-se em filas de batuques, conhecidas como cuerdas. Cada cuerda conta obrigatoriamente com três tipos de tambores – chico, repique e piano . Cada um batuca um palavreado diferente, formando o que Lobo Nuñez chama de “idioma da llamada”. Nestes diálogos de tambores afinados ao calor das fogueiras, os candomberos percorrem os bairros Sur, Palermo e Cordón, animados pela cerveja que corre, solta, de mão em mão.
O sentimento que se cria nestas reuniões massivas, garantem , é indescritível. Maxi López, um dos grandes fotógrafos uruguaios do candombe, conta à Austral que, durante as llamadas, “o sangue arde, acontecem coisas mágicas “. Ao mesmo tempo, comenta o candombero Juan Forgetto, uruguaio residente em Buenos Aires, “através do som dos tambores, partilhamos alegrias e tristezas”, o que gera “uma frequência inexplicável “. “Com o som dos tambores, quando se atinge a harmonia total no toque, escuta-se uma voz humana grave vocabulizar, são os nossos antepassados!”, assegura Maxi López.
A vibração dos tambores, entretanto fundida com outros ritmos em projectos experimentais, é apenas uma parte de todo o espectáculo do candombe. Mais que ritmo, “as llamadas são um impressionante desfile de colorido e dança”, descreve Mary Portocasas. O trabalho amplo desta pintora sobre o candombe retrata os personagens principais dos desfiles: as mama viejas, rainhas das comparsas; os escoberos, com os seus bastões, que orientam o desfile, ao estilo dos comandantes dos carnavais de Luanda; e o gramillero, homem que representa a sabedoria africana ancestral e que desfila curvado e com umas invariáveis barbas brancas postiças.
Atrás destes personagens míticos, vêm uma série de guerreiros africanos, mamãs mais-velhas a fazer lembrar as bessanganas da Nguimbi, e um sem fim de símbolos – máscaras ancestrais, meias-luas e estrelas. Frenética, cada comparsa dança e agita as suas bandeiras e baluartes, à medida que desfilam, entre todos eles, as vendettes, moças que parecem saídas do Sambódromo do Rio de Janeiro. Trajes minúsculos, corpos esculturais e plumas por todos os lados.
Embora o candombe de Montevideu seja o mais conhecido mundialmente, e os uruguaios assegurem que esta expressão nasceu no seu país, também há candombe na Argentina e no Brasil. E todos são diferentes. Como comenta Norberto Pablo Cirio à Austral, “só na Argentina há quatro tipos de candombe, contando com o porteño [de Buenos Aires]”. O antropólogo argentino refuta ainda a ideia algo generalizada que também o Paraguai é terra candombera. “O que existe é música afro-paraguaia com outros nomes; reduzir tudo a candombe como género único é empobrecer a realidade”, aponta.
A discussão académica sobre um hipotético ponto zero do candombe está ao rubro. E promete continuar.