Nicole Froio – Rio On Watch
Depois de décadas de luta pelo direito de permanecer nas suas terras herdadas, o Quilombo Sacopã foi reconhecido pelo governo federal na terça-feira passada, 23 de setembro. Sacopã é o primeiro quilombo urbano a ser reconhecido pelo governo federal no estado do Rio e está localizado na Lagoa, um dos bairros mais caros da cidade.
Luiz Pinto, líder da comunidade e presidente da Associação de Comunidades Remanescentes de Quilombo do Rio de Janeiro (ACQUILERJ), recebeu o documento que garante a propriedade de uma parcela de 7.000 m2 e comemorou com sua comunidade e com membros de mais de 20 quilombos que vieram para testemunhar o evento histórico.
O quilombo Cruzeirinho, da cidade de Natividade, também recebeu o seu Relatório Técnico de Identificação e Delimitação (RTID), que é o primeiro passo para adquirir o título de terra.
A comunidade do Quilombo Sacopã existe na região há mais de um século, mas tem sofrido inúmeras tentativas de remoção e de aquisição. Em 1999, a comunidade ganhou oficialmente o status como quilombo, em conformidade com a Constituição Brasileira de 1988, que determinou que os descendentes de escravos receberiam, como forma de reparação, o direito à terra que historicamente ocupam.
Depois de adquirir o status de quilombo, as 28 pessoas que moram no Sacopã tiveram de esperar 15 anos para receber a propriedade oficial de sua casa e o reconhecimento federal. Houve conflitos constantes entre os moradores do quilombo e os moradores dos condomínios à sua volta.
A cerimônia foi realizada no espaço para eventos da comunidade e incluiu apresentações culturais do grupo afro-brasileiro Afoxé Filhos de Gandhy.
“O estigma da segregação racial ainda impregna uma parte da sociedade brasileira. Mas hoje está sendo provado que, mesmo com a força da especulação imobiliária, com o seu poder econômico e seu poder de influência sobre o judiciário podre–eles perderam”, disse Luiz a uma multidão antes de receber o documento. “Hoje, com entusiasmo, eu posso te dizer que eu nasci nesta terra, eu dei meus primeiros passos aqui. Hoje eu tenho 72 anos e posso dizer que é um dia histórico para o nosso país”.
“Hoje, temos a certeza de que o caminho que tomamos, o meu povo, está dando certo e não há nada melhor do que este quilombo, cercado por condomínios de luxo de classe alta. Nós resistimos e vencemos. Hoje é o dia no qual posso afirmar: Aqui eu nasci, aqui eu me criei e aqui morrerei.”
Em nota à imprensa, o Instituto de Colonização e Reforma Agrária (Incra) disse: “O reconhecimento [do Quilombo Sacopã] é o último passo antes da titulação definitiva, quando a propriedade da terra será registrada em nome da comunidade, que por sua vez não será capaz de vender, alugar ou livrar-se da área. Esse reconhecimento significa que o território quilombola recebeu sua delimitação definitiva, o que dá segurança judicial definitiva para a comunidade, uma vez que todas as fases de contestação já expiraram”.
Feijoada e Patrimônio
O quilombo serviu feijoada aos seus convidados: o prato apropriado já que o Quilombo Sacopã foi proibido pelo ex-prefeito César Maia de hospedar seus eventos culturais semanais de feijoada e samba. Isso interrompeu o direito da comunidade de expressar sua cultura afro-brasileira e de gerar renda para se sustentar.
“O César Maia veio aqui e colocou uma grossa corrente em nosso forno”, disse Sérgio Pinto, sobrinho de Luiz e morador do quilombo. “Esse portão lá? Ele colocou um cadeado nele, nenhum carro podia entrar ou sair. Tivemos de pular o muro. Os motoristas de táxi queriam comer aqui, que é como nós fazíamos dinheiro. Depois de algum tempo, o César Maia chegou a pedir desculpas como candidato a algum cargo no governo”.
Enquanto as mulheres cozinhavam o prato de carne de porco e feijão na cozinha, Sérgio falou de como estava feliz com a vitória do quilombo.
“Eu trabalho como guarda noturno e eu ficava checando o meu relógio o tempo todo, porque eu estava tão ansioso por hoje”, disse ele. “Eu acho que eu sou o mais feliz aqui, mas a vitória é realmente do meu tio. Eu cansei de vê-lo preso, detido pelos pulsos, como se ele fosse um ladrão. Como se fôssemos criminosos”.
“Eles tentaram nos remover várias vezes, alguns moradores [dos prédios de luxo ao redor do quilombo] vieram aqui e jogaram dinheiro na mesa. Teve um que deu um cheque em branco para o meu tio e disse ‘preenche aí’ e chamou o meu tio de idiota [quando ele se recusou]“.
Sérgio também revelou que ele está planejando engajar a nova geração de sua família para se certificar de que eles vão proteger o legado de seu tio.
“Eu sou o sobrinho mais velho, então eu vi a luta por toda a minha vida”, disse ele. “Estou reunindo os mais jovens, porque eu quero que eles preservem este lugar como nós fizemos. Eles viram a luta, mas eles não sentiram na pele o que é ser removido. Então eles têm de honrar o legado do meu tio”.
Rural x Urbano
As representantes do quilombo Cruzeirinho Juanice Ribeiro Ferreira dos Santos e Mariley Barbosa de Souza viajaram durante a noite por seis horas para receber um documento que vai ajudá-las a obter o título da sua casa. O seu quilombo rural é o lar de cerca de 200 pessoas que se instalaram em torno de uma igreja no nordeste do Rio de Janeiro após a abolição da escravatura.
Ao contrário das lutas do Sacopã, Juanice diz que a jornada de seis anos de Cruzeirinho para o reconhecimento tem sido rápida em comparação com a maioria dos quilombos. Isso pode ser atribuído ao fato do Sacopã ser não apenas um quilombo urbano, mas ser também localizado em um bairro rico que tem continuamente tentado interferir no processo de reconhecimento. De acordo com Juanice, Cruzeirinho não está no caminho de ninguém e ninguém tentou expulsá-los.
Mesmo assim, eles buscam o reconhecimento como quilombo porque acreditam que isso vai melhorar a sua comunidade.
“Para nós, esta é mais uma vitória, sabe? É um documento que iremos utilizar para iniciar um processo e para obter mais recursos para melhorar a nossa comunidade”, disse Juanice.
Mariley acrescentou: “Nós pensamos que se formos reconhecidos oficialmente, teremos mais ajuda com serviços básicos e dinheiro para a merenda escolar”.
A celebração agridoce
Apesar de ter sido um evento feliz, houve espaço para chamadas de mais resistência da parte dos outros quilombos que lutam por títulos. Luiz, que passou 50 anos lutando por essa vitória, estava feliz, mas decepcionado com quanto tempo todo o processo levou: “Estou muito feliz, sim. Mas isso é algo que poderia ter sido feito com muito mais rapidez, já que é um direito constitucional. Quer dizer, eu estou feliz porque aconteceu, mas eu ainda estou em negação por ter levado todo esse tempo”.
De acordo com o Incra, existem atualmente nove comunidades quilombolas no processo de titulação no Estado do Rio.