Rogério Daflon, do Canal Ibase
O tema dos direitos humanos deveria estar inserido em todas as discussões sobre o país. Mas o que foi assunto central nas conferências de 1968, em Teerã, e 1993, em Viena, tem sido posto de lado diante de modelos de desenvolvimento em que o interesse econômico tenta pautar as relações. Nesta entrevista, o professor Pedro Cláudio Cunca Bocayuva. do Núcleo de Estudos de Políticas Públicas em Direitos Humano (NEEP-DH), da UFRJ, diz por que os direitos humanos não podem ser excluídos da agenda das ações de governo. Cunca vai coordenar um curso inédito de especialização de Políticas Públicas e Cultura de Direitos dentro do núcleo.
CANAL IBASE: O NEPP é um núcleo interdisciplinar de ensino, pesquisa e extensão orientado pela abordagem baseada nos direitos humanos. Você poderia explicar o porquê dessa interdisciplinaridade?
CUNCA: Interdisciplinaridade é a formação de quadros e o desenvolvimento de instrumentos de análise e apoio à formulação práticas de projetos, programas e políticas. Ela se constitui como uma necessidade derivada dos desafios do desenvolvimento. Surge como cruzamento de necessidades epistemológicas e demandas sociais. Eu conecto, portanto, uma agenda de pesquisa e preocupações tecnológicas científicas e éticas a partir da capacidade de definir problemas que exigem respostas desde ângulos que vão além de um saber especializado. Quanto à questão da violência, por exemplo, as contribuições das leituras das diferentes ciências sociais, humanas e mesmo da área da saúde permitem tratar de vários ângulos, tais como o caráter de classe, gênero, etnia envolvidos em dinâmicas de segregação e dominação. A articulação entre corpo, subjetividade e especialidade configura contextos e cenários que necessitam a mobilização de saberes formais e locais. A escala e o grau de intensidade nas formas de crueldade, dor e poder de aniquilamento reforçam o objetivo de uma especialização que deve inovar na forma e no conteúdo ao lidar com os grandes temas públicos.
CANAL IBASE: Você pode ilustrar como a interdisciplinaridade pode romper com uma interpretação limitada da realidade?
CUNCA: Os atuais conflitos e criminalização da juventude nas periferias brasileiras têm recebido leitura e tratamento orientados pela noção de segurança. Essa visão instrumental acaba legitimando de maneira simplista ações e modelos que espetacularizam os processos através de estratégias de ocupação policial. Ao não colocar no centro o tema das populações e do direito das famílias e da própria juventude, reduz-se e se reproduz o foco no reforço da defesa instrumental do aparato repressivo. Combinar a reforma da polícia com direitos da juventude sob o ângulo dos direitos sugere que se trabalhe um tripé no qual policiamento comunitário, renda básica da juventude e políticas de urbanização, com equipamentos coletivos e saneamento, possam ser elaborados como uma estratégia de cidadania e esfera pública. É preciso, portanto, inverter a agenda que opera com enorme custo, reproduzindo mais do mesmo de forma ineficiente e marqueteira, colocando o acento na programação e planejamento de acesso a diretos. As políticas de emergência e ações preventivas para o controle da circulação de armas e medidas de contenção de abusos policiais ao lado de garantias de direitos à juventude podem e devem se interligar com a construção da confiança em projetos que materializem e escutem a voz das populações. Um exemplo óbvio de política pública indispensável é o saneamento ambiental. Trata-se de um vetor estratégico em que o custo benefício das infraestruturas e políticas de água, esgotamento e resíduos sólidos leva cada unidade de investimento a refletir num custo decrescente em diferentes âmbitos com destaque para saúde, nutrição e meio ambiente.
CANAL IBASE: Mas o saneamento básico, como mostram as estatísticas do IBGE, não tem sido uma prioridade no país. Diante de situações como essa, como tratar a questão dos modelos de desenvolvimento?
CUNCA: A questão dos direitos humanos e das políticas públicas serve, na leitura interdisciplinar, tanto como referência prática quanto como referência normativa, exigibilidade, justiciabilidade e resultados. As ações de movimentos sociais e governos engajados em políticas de bem-estar redefinem um tema crucial: o da qualidade do desenvolvimento. Fala-se muito em sustentabilidade, responsabilidade e direitos do consumidor, perdendo de vista a categoria chave para interrogar os problemas gerados pela desigualdade e descriminação e pelo poder das grandes corporações. A fragmentação social e precariedade e as violências cotidianas só podem ser entendidas como um complexo sustentado pela razão cínica dos interesses possessivos e pela cultura do medo. Romper com esse ciclo vicioso nos conduz a articular uma leitura da complexidade desde da interdisciplinaridade com uma visão do que seja uma cultura de direitos. Não por acaso, o curso de especialização do Nepp-DH está voltado a gestores públicos e ativistas sociais que se identificam com os desafios propostos para essa convergência entre conhecimentos articulados, escuta da voz dos atingidos e das populações das periferias com a busca de soluções que combinem o acesso a direitos, a adequação sociotécnica das soluções e o fortalecimento das esferas públicas e das redes locais. Na era das redes e no quadro de conflitos socioambientais e de desigualdade e injustiça espacial na cidade e no campo, a abordagem da cultura de direitos é um esforço de reconstrução de temas e estratégias emancipatórias que se ligam a outros possíveis. Parte de uma nova inteligência coletiva crítica tem se constituído e buscado na universidade um lugar para o diálogo e a elaboração sobre os problemas e a busca de respostas sobre novas bases. As plataformas de lutas por direitos que têm agitado a sociedade brasileira cobram do nosso pacto constituinte de 1988 um avanço na direção sugerida pelas diferentes conferências de políticas públicas, cujas proposições ainda estão longe de ter sido incorporadas nas políticas de governo e de estado. Nesse momento de empate de questionamento e de enorme movimentação molecular e crítica na sociedade, precisamos aproveitar o potencial que a universidade tem para repensar o projeto de nação.
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Enviada para Combate Racismo Ambiental por Carlos Rosallba.