Para nossas juízes, a apropriação de códigos do ‘homem branco’ torna o índio merecedor de punição
Por Luís Francisco Carvalho Filho, na Folha de S.Paulo
Segundo o IBGE, a população que se declara indígena no Brasil ultrapassou 817 mil em 2010. Entre 1991 e 2000, o crescimento foi extraordinário (294 mil para 734 mil), o que se explica por questões metodológicas, pelo crescente sentimento de orgulho racial e por políticas compensatórias desenvolvidas a partir da Constituição de 1988.
É pouco diante do despovoamento histórico e do universo de 200 milhões de habitantes. A extinção de povos e culturas iniciada pela colonização portuguesa (catequese, guerras, massacres, escravidão, epidemias) persistiu durante a República com outra roupagem.
Nelson Hungria, ex-ministro do STF e nosso mais influente criminalista, ao comentar o Código Penal de 1940, afirma que os “silvícolas” não mereceram uma alusão expressa no texto para evitar que se pudesse supor, no “estrangeiro”, que ainda éramos “um país infestado de gentio”. Para a justiça criminal, o índio tem “desenvolvimento mental incompleto”, é inteiramente desprovido “das aquisições éticas” do homem médio civilizado.
O resultado prático da opção do legislador de 1940 é que, para aferição da responsabilidade criminal do índio acusado de um delito, é comum não se levar em consideração critérios antropológicos. Para nossos juízes, a simples apropriação de códigos de sobrevivência do chamado homem branco, como o idioma português ou o saber dirigir veículo, já é suficiente para ser merecedor de punição.
Emprega-se o verbo infestar para o que faz mal: pragas, ratos, insetos. Não se diz que uma mata está “infestada” de orquídeas nem que nossas cidades estão “infestadas” de turistas na Copa do Mundo.
A visão preconceituosa de Hungria é também uma senha para compreender o andamento da questão indígena na segunda metade do século 20. Para o Brasil crescer era preciso “desinfestar” o território.
A Comissão da Verdade foi instituída para esclarecer graves violações de direitos humanos praticadas a partir de 1946. O período de apuração ultrapassa o termo inicial do regime militar (1964). A extensão temporal da lei parece estranha quando se tem em mente apenas a perseguição política simbolizada pela tortura, morte e desaparecimento de militantes de esquerda. Mas, objetivamente, há motivo para que graves violações patrocinadas desde 1946 contra índios pelo Estado brasileiro, ou com a sua conivência, sejam apuradas.
Medidas inaceitáveis, como o deslocamento forçado de comunidades, que viabilizaram obras de infraestrutura e a colonização de espaços “desocupados”, merecem memória e reparação.
A atuação da Funai durante a ditadura: por que não vasculhar os arquivos deste órgão estratégico para o pensamento militar brasileiro?
O Centro de Reeducação Indígena Krenak, criado na região do Rio Doce, em Minas Gerais, na vigência do AI-5, reuniu índios infratores, desajustados e resistentes em regime de campo de confinamento, com trabalhos forçados, vigilância e castigo. Para lá eram conduzidos pela vontade arbitrária de comandantes de postos e aldeamentos.
Ainda há quem considere a presença de povos indígenas um incômodo. Para preservar o que sobrou de suas culturas não bastam documentários da BBC. É preciso investigar o que aconteceu.