Por Coletivo C.O.P.A., edição do Correio da Cidadania
Às vésperas da Copa do Mundo, uma iniciativa de diversos atores da chamada ‘mídia alternativa’ promoveu uma entrevista coletiva com o consagrado jornalista Juca Kfouri, talvez a maior referência de profissional crítico na mídia esportiva brasileira. Inimigo de longa data da cartolagem nacional, com dezenas de processos sofridos na justiça, Kfouri foi uma das poucas vozes que se levantou contra a Copa em solo brasileiro desde o momento em que FIFA concedeu tal direito ao país.
“A FIFA não é a culpada de todos os males da Copa. Os primeiros culpados somos nós, que aceitamos fazê-la nas condições que a FIFA exige. Se me perguntar qual legado a Copa vai deixar, e não o vejo como nada desprezível, é o de uma nova consciência que o brasileiro passa a ter. Nunca vi nada parecido, antes de um evento esportivo, com as jornadas de junho. A ideia pela qual vou trabalhar daqui por diante é a de que, para que se aceitem novos empreendimentos de tal porte, seja megaevento ou uma obra como Belo Monte, tenha de ser feito um referendo popular”, disse Kfouri.
A longa entrevista abordou tanto os temas políticos gerais, como aqueles do mundo esportivo, que no fim das contas estão mais interligados do que nunca em nosso atual momento. Juca lembra que o governo brasileiro sempre teve total conhecimento do que se tratava a “máfia que tomou conta do futebol”, que, em suas palavras, sempre existiu, mas em determinado momento percebeu o negócio bilionário em que o esporte mais popular do mundo poderia se tornar e deu o impulso para a sua mercantilização (“hoje em níveis inadministráveis”).
Ainda nesse sentido, a entrevista tratou da elitização do futebol, assunto cada vez mais em voga no Brasil das novas arenas, “uma filha bastarda da globalização”. “Outra mentira, e pode ser averiguada com qualquer urbanista, mesmo de direita, é que estádio novo traz progresso social para seu entorno”, afirmou, citando como exemplo a África do Sul e também o Estádio Olímpico João Havelange, o Engenhão.
Para ele, o futebol brasileiro, mesmo em momento de grande poderio econômico, encontra-se em estágio pré-capitalista. “Sabendo de todos os riscos, eu diria que ainda precisamos de um choque de capitalismo. Não podemos fazer como na Inglaterra, onde qualquer milionário pode comprar um time. Temos de fazer como na Alemanha, onde no mínimo 51% das ações ficam com os torcedores. Estamos longe, porque, no Brasil, temos ladrões de galinha. Veja que grave o que digo: é gente que não tem cabeça sequer pra roubar no longo prazo. E o ‘país do futebol’ tem uma média de público inferior à do campeonato dos EUA”, atacou.
Ainda assim, Juca Kfouri deixa claro que torcerá pelo Brasil na Copa, por não confundir futebol e política dentro daquilo que se tem como paixão, ilustrando seu raciocínio com a vida do país à época da ditadura e a Copa de 70, além de afirmar que resultados esportivos não têm a influência política que muitos imaginam, para bem ou mal.
A entrevista coletiva é parte do projeto Copa 412, idealizado pela Revista Vaidapé, que reúne diversos veículos e coletivos midialivristas em torno de uma produção jornalística alternativa durante a Copa do Mundo. Na ocasião (dia 5/6), além da Vaidapé e o Correio, participaram o Jornal A Nova Democracia, BBC Arabic, Revista Ocas, Coletivo Sacode, Rádio Várzea, Guerrilha GRR e o jornalista Carlos Carlos. A íntegra pode ser lida a seguir.
Você já cobriu muitas Copas do Mundo, em diferentes países e continentes. Diante do que tivemos no Brasil, de 2013 pra cá, o que você vê de semelhanças e diferenças com as outras Copas?
Juca Kfouri: O que aconteceu no ano passado, na Copa das Confederações, eu nunca tinha visto em um megaevento esportivo. Na África do Sul, em 2010, houve fortes manifestações, mas sem a quantidade de pessoas daqui. Na Alemanha também. Pra dar um exemplo, o Partido Verde não se conformou que a cerveja do estádio fosse a da FIFA, a Budweiser, um xixi de caveira na terra da cerveja. Conseguiram impor um quiosque para cervejas locais. Mas em regra foram manifestações sempre limitadas.
O caráter das manifestações de junho eu nunca vi, até pelos riscos e a tensão que trouxeram. Em Fortaleza, eu estava num hotel de onde saía ônibus oficial da FIFA pra levar a imprensa. Avoado, deixei de ir de táxi e fui no ônibus, com outros quatro jornalistas estrangeiros. As pessoas começaram a chacoalhar o ônibus e eu quis descer pra conversar com elas. A estafeta da FIFA que estava no ônibus, cearense, dizia pra mim, quando pedi pra descer e avisar as pessoas de que não tinha nenhum funcionário da FIFA: “se você descer, vão lhe cobrir de porrada”. E não desci, acho que ela tinha razão.
Mas me motivei a escrever, no dia seguinte, uma coluna em homenagem aos companheiros de profissão que cobriram guerra. Ainda brinquei: fui cobrir futebol por cagaço de cobrir guerra. Lembrei de Jose Hamilton Ribeiro e mais um bando de gente que cobriu guerra. A situação era: um holandês, um italiano, um alemão e um norte-americano. O olhar deles era de terror, nunca tinham visto nada parecido. A hostilidade tinha se virado contra a FIFA.
É óbvio que a FIFA não é a culpada de todos os males da Copa. Os primeiros culpados somos nós, que aceitamos fazê-la nas condições que a FIFA exige. O combinado não é caro, nem barato, o Brasil se ofereceu. E quem se candidata já sabe de antemão o que consta no caderno de encargos. Se aceita, tem que fazer como aceitou. Meu exemplo é: você avisa que se casa no mês que vem. Eu, pai da noiva, faço questão de dar a festa. E você fala que “não é simples, minha festa de casamento tem muitas exigências, quero louça inglesa, talher de prata, champanhe francês…”. Eu falo que não tem problema. Aí, dois dias antes da festa, falo: “é o seguinte, vai ser talher e copo de plástico, cidra no lugar de champanhe…”. Você vai falar: “pô, sacanagem”. É a única razão que a FIFA pode ter, mesmo sendo a transnacional corrupta que é. Nós aceitamos as condições.
A porradaria que teve em São Paulo para segurar as primeiras manifestações incendiou o Brasil. E surgiu a brilhante ideia na população do “padrão FIFA”. Todos viram: se somos capazes de fazer estádios magníficos, por que não somos capazes de fazer hospitais, escolas etc. de tal nível? Foi uma manifestação do ‘quero mais’, de gente que emergiu e começou a ter contato com certo tipo de serviço que não tinha, e foi se dando conta de que era ruim. Agora o filho tem escola, mas quer escola melhor.
Falam que o protesto devia ter sido feito sete anos atrás, quando o Brasil foi eleito sede. Não é bem assim, pois:
1) as pessoas não sabiam como seria, anos atrás, e foram se dando conta depois; 2) a promessa do governo e da CBF é que seria a Copa do capital privado, não entraria dinheiro público. E vemos na Copa, quase exclusivamente, o dinheiro público.
Se me perguntar qual legado a Copa vai deixar, e não o vejo como nada desprezível (pelo contrário, é muito bom), é o de uma nova consciência que o brasileiro passa a ter. Consciência de que megaevento é bom pra quem organiza, empreiteiras e agências de propaganda. Não é necessariamente bom pra cidade que organiza. A prova disso é que vemos cidades como Zurique, Estocolmo, Davos, Nova Iorque, por meio de consultas populares, não aceitarem fazer as Olimpíadas de Inverno de 2022. A ideia pela qual vou trabalhar daqui por diante é a de que, para que se aceitem novos empreendimentos de tal porte, seja megaevento ou uma obra como Belo Monte, tenha de ser feito um referendo popular. A cidade resolve se quer ou não.
De toda forma, nunca vi nada parecido, antes de um evento esportivo, com as jornadas de junho. Não sei se vão se repetir durante a Copa. Cheguei a apostar que sim. Teremos duas Copas do Mundo. Uma dentro dos estádios, bonita, festiva, com as imagens que a FIFA distribuirá pelo mundo, e outra Copa do Mundo tensa, nas ruas. Começo a achar que talvez não tenha algo tão forte como na Copa das Confederações, mas de toda forma penso que o brasileiro vai para a rua. Foi muito curioso ver a reação da imprensa estrangeira. Conversei com alguns jornalistas alemães, que me disseram: “estamos morrendo de inveja. Vocês estão fazendo o que devíamos ter feito em 2006”.
Apesar de toda essa dinâmica crescente dos protestos, e de um maior esclarecimento sobre a realidade de um megaevento na população, você é um jornalista que sempre acompanhou de perto os bastidores da política esportiva brasileira e seus personagens, sendo considerado dos mais combativos. Na sua visão, já não eram previsíveis, diante de quem se encarregou da organização, toda essa série de desvios e desmandos?
Juca Kfouri: É só pegar minhas colunas, desde 2007. É muito chata essa coisa de chegar e falar: “ó, eu avisei”. Minha posição era muito clara e hoje é rigorosamente a mesma. As pessoas me perguntavam se eu achava o Brasil capaz de organizar uma Copa do Mundo. Eu dizia que sim, podia. Faz todo sentido que um país cinco vezes campeão do mundo, que gosta tanto de futebol, sedie outra Copa. Desde que fizesse a Copa do Mundo do Brasil no Brasil. A Copa da Alemanha, da Ásia, não podemos fazer. No entanto, era contra que se fizesse Copa no Brasil por uma razão: com essa gente escolhida pra organizá-la, pensava “vai dar merda”. Quando se via o Ricardo Teixeira como presidente do Comitê Organizador Local (COL), estava na cara o que seria. Quando ele escolhe sua filha (Joana Havelange) para ser uma das principais dirigentes, e todas as escolhas do COL são por compadrio, tinha que dar no que deu.
É uma ironia: na Copa da Alemanha, o presidente do comitê organizador era o maior jogador da história do país, Franz Beckenbauer, que não era presidente da federação local. Em 1998, na França, o presidente do comitê era o maior craque francês, Michel Platini, tampouco presidente da federação francesa. Aqui no Brasil, o presidente era o Ricardo Teixeira e, quando ele saiu, veio o Jose Maria Marin. Eu brinco: deve ser porque o Brasil não tem nenhum grande nome no futebol internacional que pudesse emprestar sua imagem… Pensei no Romarinho (atual jogador do Corinthians), mas parece que não gostaram da ideia…
Eu não tinha dúvida alguma, nada do que está acontecendo me surpreende: as coisas não ficarem prontas, o desperdício, o superfaturamento. Essa sempre foi a toada dessa gente que está no comando. O que não perdoo no governo brasileiro é permitir que as coisas chegassem a esse ponto, ainda mais com o Lula, que conhecia muito bem o Ricardo Teixeira. Não podia ter deixado. Podem dizer que o COL é uma empresa privada, um braço da FIFA. Mas lida, mesmo indiretamente, com o nosso dinheiro e encaminha projetos e verbas com o nosso dinheiro. Esse dinheiro não podia ficar na mão deles.
Nas Olimpíadas, sem tirar nem por, temos a mesma situação. O presidente do comitê organizador é o mesmo do Comitê Olímpico Brasileiro, Carlos Arthur Nuzman, que fez aquela lambança toda no Pan-Americano 2007. Nesse caso, já está sob intervenção, não apenas do Comitê Olímpico Internacional, como do governo, que pôs lá um general pra tomar conta da bagunça. Já está atrasado. E vai ter atraso. Daqui a dois anos, veremos, às vésperas das Olimpíadas, uma situação muito parecida com a da Copa do Mundo.
Desse modo, de legado bom só teremos a politização? Estádios novos são o biombo de um projeto mais econômico do que esportivo?
Juca Kfouri: Na Copa de 1998, Marselha usou o mesmo estádio da Copa de 1938. Mudaram a louça do banheiro, instalaram fibra ótica e deram uma mão de tinta. Porque a comunidade local não aceitou jogar o estádio no chão e fazer outro por causa de um torneio de um mês, que lá faria 5 jogos. Tem um livro chamado Soccernomics, onde se coloca um raciocínio muito interessante. Nenhum grande evento deixa lucro no país. Mas, dizem os autores, é uma oportunidade de o país fazer um grande anúncio de si mesmo, por um mês. Correndo um risco: o de fazer um anúncio ruim. O Brasil corre tal risco gravemente. O que sai na imprensa internacional é só porrada. Algumas preconceituosas e ignorantes, é verdade.
Na Copa das Confederações, falei mil vezes com jornalistas estrangeiros que eles não tinham a imagem verdadeira do país. Eles têm a imagem do país do carnaval, das mulheres de biquíni, litoral magnífico… Enfim, interpretam erradamente a ideia do homem cordial, do Sergio Buarque de Hollanda, como se o cordial fosse subserviente, ao invés de emocional. Cordial vem do coração, que age pela emoção antes de agir pela razão. Eu lhes disse que não precisavam saber das grandes lutas regionais da história, chimangos e maragatos, sabinadas, Canudos… Não. Basta olhar de 30 anos pra cá. Em que outros países do mundo mais de 1 milhão foram às ruas exigir Diretas Já! E depois, mais de 1 milhão voltaram às ruas para exigir o impeachment do cara que resultou vencedor do processo das Diretas Já? “Vocês estão assustados agora, mas esse é o Brasil”, lhes disse.
De toda forma, a ideia do livro, que muito me agrada, passa pela seguinte pergunta: pode um estadista fazer seu povo feliz durante um mês? Surpreendentemente, eles dizem: pode. Desde que pergunte antes ao seu povo se ele quer fazer aquela festa.
Aparentemente, é uma proposta cínica. Mas há outra questão, que precisamos analisar com olhar mais verdadeiro, a partir da bobagem que o Ronaldo declarou, sobre não existir Copa com escola e hospital. Não concordo muito com essa coisa de dizer que não podia fazer estádio com tantos problemas mais urgentes. Não existe relação tão direta entre uma coisa e outra; se não houvesse Copa, não investiriam em áreas prioritárias. A questão é o desperdício. Pra que fazer estádio em Itaquera se tinha o Morumbi? Pra que fazer estádio assim em Manaus, Cuiabá, Natal? Algumas dessas cidades mal têm futebol de segunda divisão… E dizem que são arenas multiuso. Mas não vai ter show de Madona ou coisa do gênero em tais cidades, até porque, em geral, nem têm essa demanda toda, não existem 50 mil pessoas dispostas a pagar 150 reais pra ver algo do tipo.
Outra mentira, e se pode averiguá-la com qualquer urbanista, mesmo de direita, é que estádio novo traz progresso social para seu entorno. Não precisa ir até Johanesburgo ver se o Soccer City levou progresso ao Soweto. Ou à Cidade do Cabo, onde 4000 famílias foram desalojadas, postas em cidades de lata, supostamente provisórias, de seis meses, mas que estão lá até hoje. Das coisas mais odiosas que já vi na vida. Numa cidade que faz 40 graus no verão e 5 no inverno. Não precisa ir lá. Vá ao Engenho de Dentro ver o progresso que o Engenhão (estádio João Havelange) trouxe. Nenhum. Zero. E o estádio de sete anos está fechado, o “mais moderno do Brasil” não foi nem cogitado para a Copa.
Vemos, no debate público, duas torcidas. Uma que diz “não vai ter Copa”, e a outra que diz “vai ter Copa”, numa disputa política que vai muito além dos interesses do mundo do esporte. No seu blog, você também se diz contra a mistura de política e futebol, em certa medida. E talvez seja quase impossível sanarmos todos os problemas que os megaeventos trazem. Você manteria a opinião de que o país não deveria ter aceitado a Copa?
Juca Kfouri: Sim. Pra deixar claro, longe de mim dizer que política e futebol não se misturam. Política se mistura com tudo, desde o café da manhã. Eu fui ser jornalista esportivo por ter sido a maneira que encontrei de continuar minha militância. Acho que o jornalista tem lado, não entro na balela da ‘objetividade’ etc. Política e futebol, sim, se misturam, tal como sexo e o que mais quiser. Tudo se mistura com política.
O que digo, e repito, é que não se pode, em nome de uma ideia política, por ser situação ou oposição a um governo, levar tal espírito a um time de futebol. Sou corintiano e detesto o presidente do Corinthians, nem por isso deixo de torcer pelo clube. Posso estar contra o governo, mas a seleção não é do governo. Posso estar a favor do governo, mas não vou torcer pela seleção pra favorecê-lo. Vou torcer porque gosto de futebol, porque o futebol me apaixona.
O que me parece equivocado é cobrar do Neymar pelas mazelas do Brasil, ou os educadores dizerem ser um absurdo o salário dele comparado com o deles. É um absurdo o salário dos educadores e ponto. Não tem nada a ver com o salário do Neymar. O educador é mais importante? É claro, pra educar. Para jogar futebol, não. E o preço que se paga por um jogador, porque envolve milhões ou bilhões de pessoas vendo-o trabalhar, é totalmente diferente. Essa confusão leva à demagogia.
O exemplo que sempre dou é aquele que vivi na carne. Em 1970, estávamos sob ditadura militar. Eu estudava ciências sociais na USP e minha classe me tinha na conta de alienado. Eu era da ALN, colocava minha vida em risco em grupo clandestino. E torci para o Brasil. Me diziam: “é um absurdo, cada gol do Brasil atrasa a revolução brasileira”. No ano seguinte foi pior, pois, nos Jogos Pan-Americanos, a final do basquete foi Brasil e Cuba. “Você é louco, vai torcer contra o time do comandante!”. Eu dizia: a revolução cubana é uma coisa, o jogo entre Brasil e Cuba é outra. Eu sou brasileiro, não sou cubano, vou torcer pelo Brasil. Ainda mais que joguei basquete e até conhecia alguns jogadores daquele time.
Por quê? Porque, e era a minha questão, eu não permitia que a ditadura me roubasse o que eu tinha de mais íntimo. A ditadura já me infundia medo, já me fazia andar olhando pra trás e ver se não era seguido… Quando tocavam campainha em casa, eu já achava que era a polícia. E aí eu era adepto da famosa música do Chico Buarque, “chama o ladrão, chama o ladrão”. Mil vezes entrar o ladrão em casa do que a polícia, porque, com ela, era sinal de que a gente ia para o DOI-CODI, para a tortura… Eu não permitia que a ditadura me usurpasse aquilo que tinha de mais íntimo, ou seja, minha paixão pelo futebol ou a emoção de escutar o hino… Eu perguntava: “quando toca o hino, é o hino da ditadura? Até isso nós permitimos? A ditadura interrompe o processo legal e democrático, e permitimos que ela tome conta de tudo? Se é assim, fomos derrotados, já perdemos”.
A palavra de ordem era não torcer pela seleção. O Brasil estreia em Guadalajara contra a Tchecoslováquia, país da órbita comunista. Gol deles, 1 a 0. “Tamo bem”. As pessoas já ficaram desconfiadas, porque o autor do gol, Petras, ajoelha e faz o sinal da cruz. “Que raio é esse de comunista que não é ateu, filho da puta”. Depois, o Rivelino empata o jogo, batendo falta. Ninguém segurou. Já ouvi a Dilma contar isso: todo mundo na cadeia, acho que no Barro Branco (SP), com um aparelho de TV com antena de palha de aço, pois, pela largura das paredes do presídio, pegava mal. E foi uma baita festa a cada gol do Brasil. Todos os presos contam a mesma história. Felizmente, eu não estava preso. Mas comemorava as vitórias do Brasil, por não confundir as coisas.
Passaram 44 anos. O que a história do Brasil registra daquela Copa? Quem foi o herói? O Médici, de radinho de pilha? Ou ele entrou para a história como o general da tortura? Os heróis são Pelé, Tostão, Gérson, Rivelino, Jairzinho… A primeira Copa que o Brasil ganhou foi sob o governo Juscelino Kubistchek, a segunda sob o governo João Goulart e ambos morreram cassados pela ditadura. O governo de Mussolini teve a Itália campeã duas vezes (1934 e 1938), e morreu de cabeça pra baixo, pendurado pelo povo italiano.
Portanto, essa é a confusão que não faço, assim como não penso que futebol é ópio do povo, alienante. Lembro sempre: a primeira faixa aberta no país pela anistia foi no Morumbi, pela torcida do Corinthians, num jogo contra o Santos, com mais de 100.000 pessoas, por dois jornalistas ainda vivos, o Antonio Carlos Fon e o Chico Malfitani (com a ajuda de Carlos MacDowell).
Eu não sou adepto do quanto pior melhor. Não acho que, se o Brasil perder, a Copa modifica alguma coisa, que a Dilma será derrotada. Ou que, se o Brasil ganhar, aumenta o cacife da Dilma. Ou que a CBF muda. O Ricardo Teixeira teve de fugir do país por trapalhada com dinheiro público, não por perder Copa do Mundo. Ele perdeu a de 1990, 1998, 2006, 2010 e a CBF continuou a mesma coisa, tão corrupta e reacionária quanto sempre foi.
O resultado esportivo não tem a influência que as pessoas imaginam. E eu não vou me submeter a uma racionália política no que diz respeito a minha paixão. Só isso, é simples. Não se trata de não misturar política com futebol. É não achar que uma coisa depende da outra.
Você concorda com a ideia que não se deva lutar contra o futebol em si, mas contra um jogo cada vez mais submetido aos interesses do capital?
Juca Kfouri: Aí não é o futebol. É a luta contra o capitalismo e suas influências. E vamos para um campo mais delicado. Volto a dizer: com 17 anos, já militava em organização clandestina. Depois que fomos derrotados, fui para o Partido Comunista. Anos depois, aconteceu a queda do muro de Berlim. E eu, já madurinho, pai de filho, me assustei. “Cacilda, o que acontece? Ninguém da Berlim ocidental quer ir para Berlim oriental. Todo mundo atravessa o muro para o lado ocidental. Onde é que erramos?”. Alguma coisa estava errada em nossas pretensões. Objetivamente: o capitalismo ganhou. Infelizmente, o capitalismo ganhou.
Qual é a minha luta hoje? É para tornar menos selvagem esse capitalismo. O que é ser de esquerda hoje? É ser alguém que continua brigando pela inclusão dos excluídos, que não dá como uma lei natural a injustiça social ou considera a competitividade do capitalismo a roda da história – eu não concordo com nada disso. O que muda como utopia, para mim, se eu já quis que o Brasil fosse uma União Soviética e hoje me dei conta – já faz tempo – que aquilo lá também não era solução? Tomaram o poder em nome de uma ideia e traíram essa ideia. Hoje, eu olho a Escandinávia e penso: tomara que a gente chegue lá. Claro que não será igual, porque há diferença de tamanho, população e tudo mais. Mas é a minha briga.
Dá pra lutar por um futebol melhor no capitalismo? E sobre os salários de um jogador como o Neymar, não são de fato absurdos em relação ao resto do Brasil?
Juca Kfouri: O Neymar não joga no Brasil, joga na Espanha. No Santos, além do salário, ele ganhava, e bem mais, com publicidade. Ele não ganhava só o salário do Santos. De toda forma, me diga quantas pessoas você conhece que trabalham com 40 mil pessoas observando-as no local de trabalho e com 3 milhões, 30 milhões, 50 milhões as assistindo na televisão? São artistas.
Acho o seguinte: eu não vou criticar o trabalhador que, como fruto do seu trabalho, consegue ganhar o que ganha o jogador de futebol. Eu vou brigar para que o professor ganhe o salário que ele mereça ganhar. Sem necessariamente olhar para o outro.
O que se está falando aqui inclui também a elitização do futebol, o fim da picada, com essa coisa das “arenas”, pasteurizadas e cada vez mais excluindo o torcedor comum. Vamos brigar contra isso. Vamos perder de novo, provavelmente. Mas cito Darcy Ribeiro: “eu me orgulho muito das minhas derrotas”. Eu perco muito mais do que eu ganho. Muito mais. Faz parte. D. Paulo Evaristo Arns tinha uma frase, que um dia escreveu para a revista Placar, num texto chamado ‘Pastoral ao povo corintiano’: “Não existem derrotas definitivas para o povo e as coisas estão em processo, se não estão bem ainda, é porque não chegaram ao fim”. Eu acho que é por aí.
Ainda sobre futebol e política, o Felipão, atual técnico, deu aquela declaração, em 1998, na qual dizia que Pinochet tinha feito muita coisa boa. Você relembrou isso num Roda Vida de tempos atrás. Como você o enxerga hoje na seleção brasileira e em outros times que dirigiu? Técnico bom é esse com característica mais autoritária e com a marca da hierarquização?
Juca Kfouri: Eu acho que não é bem assim. Sinônimo de técnico bom, pra mim, é o Guardiola, que não faz isso. Primeiro, a gente precisa olhar para as pessoas como elas são. Qual é a definição que eu faço do Felipão? O Felipão é aquele tio bronco, reacionário, conservador, que todos nós temos, e desde criança esperamos sua chegada para o almoço no domingo. Cara que toma duas caipirinhas e começa a contar piadas sujas, fala palavrão e a sobrinhada gosta. Surpreenda-se ou não, ele faz ou fez elogio ao Pinochet da mesma maneira que ele faria ao Fidel Castro. Eu não faço elogio nem ao Pinochet, nem ao Fidel – deste já fiz, não faço mais. A questão do Felipão é a ordem, ele quer ordem.
Na questão da hierarquia, raros são os momentos no esporte em que alguém se insurge. Quando se insurge, como no surgimento da democracia corintiana, tem-se um momento de luz no esporte. Mas temos de ser realistas o suficiente para olharmos aquilo e dizer: o que ficou? Praticamente nada, a não ser uma ideia romântica, de um médico barbudo que provavelmente vai entrar para a história do futebol mundial como Che Guevara entrou para a história das revoluções, ou seja, uma carga de romantismo indelevelmente ligada a sua imagem.
Faz parte da nossa vida lutar contra isso, lutar contra a concentração em véspera de jogo, lutar contra o paternalismo. No fundo, tais comportamentos de técnicos são manifestações paternalistas. O jogador de futebol não sabe comprar uma passagem aérea. Não sabe fazer um depósito no banco. Porque tem alguém que faça pra ele. Ele acaba de jogar e se vê num mundo para o qual não está preparado, razão pela qual tantos se danam depois que param de jogar futebol.
Mas não vamos diabolizar tais pessoas, porque também são vítimas. Aprenderam que é assim. Podemos dizer que o Muricy não podia chamar a atenção daquele menino do São Paulo como fez. Mas, em particular, ele vai te falar: “cansaram de fazer comigo”. Vocês precisavam ver o que era ser comandado pelo Telê, os esporros que ele dava. Até o Sócrates gostava dele. Até o Sócrates o obedecia. Parou de fumar por um mês para jogar a Copa do Mundo de 1982 porque o Telê pediu.
A vida é dura. E a gente tem, naturalmente, a tendência de rotular. Claro, quando o Felipão fez elogio ao Pinochet, pensamos “tem de descer o cacete no cara, lembrar sempre”. Mas, outro dia, ele disse, também numa entrevista na televisão, que o momento mais emocionante de sua vida foi no sorteio da Copa da África do Sul, quando viu o Mandela entrar e ir falar com ele.
Tudo bem. Do cacete o Mandela. Mas vai na África do Sul ver até que ponto a subida do Mandela ao poder, magnificamente, num processo exemplar, mexeu no capitalismo de lá. Nada. No mais, você tem alguma dúvida sobre como ele seria tratado pela mídia brasileira, se fosse daqui?
Falando do atual processo do futebol, com sua chamada elitização, você vê um acirramento dessa tendência aliada a uma suposta queda do nível técnico, que talvez date da virada de século?
Juca Kfouri: O fenômeno da elitização do futebol é um dos filhos bastardos da globalização. Gosto muito de lembrar de uma aula magna do Ariano Suassuna, na qual ele conta a seguinte história: um dia, numa cidade do interior da Paraíba, terra dele, uma velhinha procurou um médico, que atendia na cidade toda, e disse, sobre o marido: “o velho enlouqueceu, cismou que tem um jacaré embaixo da nossa cama. Eu mostro que não tem, mas não adianta”. O médico disse não acreditar e pediu que a mulher trouxesse o marido, com ela junto. Começaram a ir ao seu consultório todo dia. Conversavam horas. Fizeram tratamento. Um dia, a mulher chegou lá sozinha. O médico perguntou: “cadê ele?”. A mulher respondeu: “O jacaré comeu”. A globalização é isso, o jacaré debaixo da cama. A gente ficava avisando, avisando, avisando… “Isso aí vai dar merda, não vai dar certo”. Um belo dia…
O que vimos? Uma padronização do futebol, a ideia de que “não tem mais bobo no futebol”, o que significou a redução do nível do jogo. Vimos a mercantilização do jogo chegar a níveis inadministráveis. Entre outras coisas, pelo seguinte: dentro da indústria do entretenimento, hoje uma das maiores do mundo, o futebol e o esporte ocupam lugar de destaque, com preços intangíveis. Não somos capazes de calcular quanto custam as coisas. Exemplo:
– Quanto vale o Lionel Messi?
– 150 milhões de euros.
– Mas o Messi só vale ‘um Gareth Bale e meio’?
– Ah, não, vale três.
Então, 300 milhões? E o Pelé, quanto seria, 600 milhões de euros? Como você faz uma transação de 600 milhões de euros? É só ver o caso da transferência do Neymar para o Barcelona e os desdobramentos…
– Quanto vale manter uma Ferrari na Fórmula 1?
– 15 milhões de euros por ano
Só isso, como? Às vezes, no treino da quinta-feira, estouram duas na parede, e precisa de mais duas pra sexta. Depois, se as duas quebram, mais duas são necessárias pra corrida de domingo… Custa 150 milhões por ano.
Mas, na verdade, ninguém sabe, ninguém é capaz de avaliar exatamente o valor das coisas.
Nisso, apareceram os Blatters, Havelanges, Teixeiras, essa máfia que tomou conta do esporte. Já estavam lá, mas em determinado momento se deram conta de que tudo aquilo podia se transformar num negócio de bilhões. E conseguiram. Sem distribuir a quem de direito, sem beneficiar o torcedor.
As torcidas organizadas, por uma questão de despolitização, não têm responsabilidade em tal processo de elitização?
Juca Kfouri: Não é questão de elas terem culpa. São todos vítimas de um mesmo problema, um sistema educacional que não politiza e que faz o time de futebol virar um objetivo de vida de maneira apolítica. Mobilizam-se para ir ao Itaquerão, para não permitirem que os sem teto façam uma manifestação no estádio ou o depredem.
Infelizmente, esse é o fruto de uma democracia incipiente, de um país que passou por duas ditaduras longevas só no século 20, onde as pessoas não têm noção de seus direitos, com uma polícia ainda fruto da ditadura, educada para a guerra, e não para a prevenção, que nos olha não como cidadão que lhe paga o salário, mas como inimigo, rival, que pensa mais em te aniquilar do que em orientar.
Você concebe o futebol sem torcidas organizadas, como de certa forma fez a Inglaterra?
Juca Kfouri: Não. Pois não sou a favor da paz de cemitério. Eu acho absurdo o jogo de uma torcida só. Daqui a pouco tem jogo sem torcida. As organizadas são parte integrante do espetáculo. De novo: não é tão difícil identificar quem atrapalha o processo. Sabemos que os comandos das torcidas conhecem perfeitamente quem é quem e se sentem impotentes. Mais que isso, não querem entregar os colegas e se verem como dedo-duro. E assim a pecha recai sobre todos. Não há como negar que o torcedor comum alega o medo de violência para não ir ao estádio.
Também digo sempre: não há nada que estresse mais o torcedor do que a PM. Até pra organizar uma fila de compra de ingresso joga a cavalaria em cima das pessoas. E quem é tratado como animal reage como animal. Porque o cara entra no estádio estressado e uma brincadeira já pode virar briga, pelo que o cara passou pra entrar no estádio. Tem jeito, há política pra resolver. Mas abdicamos de fazer tais políticas. E claro que a solução não é subir preço de ingresso. Quem acha que briga de torcedor é coisa de pobre não é capaz de responder por que diversos torneios entre universidades de elite não existem mais.
Você citou muito a questão da democracia, de que, quando se deu conta dos caminhos do bloco comunista, ele já não se diferenciava tanto de outros em termos de liberdade. Junho de 2013 e os meses seguintes ficaram marcados pela participação das ruas, inclusive de radicais, o que ensejou a mídia a pedir punições a manifestantes. Não se viu, por sua vez, essa mesma postura quanto à violência policial nas periferias. Diante de tal quadro, dá pra pensar que a elite está preparada para o nível de democracia que se exige?
Juca Kfouri: Se estivesse preparada, já teríamos tal democracia. Essa elite é a que manda no Brasil há 514 anos, é obstáculo à democracia, tem medo de povo. Essa elite quer o controle, lutará ferrenhamente para mantê-lo. Cabe a quem não participa dela, e queira um nível de distribuição mais justo, enfrentá-la.
Eu sei que nessa hora a gente entra nos conceitos da democracia burguesa, do valor do dinheiro, das campanhas eleitorais. E vêm as descobertas tristes, recentes, quando vimos gente em quem confiávamos e tínhamos como exemplo, mas que tentaram ensinar a prostituição no prostíbulo. Usando as mesmas armas. Deu no que deu. Provavelmente, com ideias generosas, que não eram pra si mesmo. Mas acharam de jogar com as mesmas armas.
Eu tenho 64 anos e algumas coisas pra mim já são claras. Meios ruins levam a fins ruins, não tem essa de que os fins justificam os meios. Daí faço a opção de fé sobre conceitos de liberdade e democracia. Não a democracia que está aí, claro que não. Mas como dizia o conservador Winston Churchill, “a democracia é uma merda, mas ainda não inventaram nada melhor”. Tratemos de inventar. É o desafio que cabe a quem quer enfrentar o status quo.
Há uma série de reinvenções. Essa iniciativa midiática aqui é uma reinvenção. A ironia é que amanhã (sexta, 6 de junho) estarei gravando o Roda Viva. Claro que pegaram uma bancada de perguntadores mais próxima do que distante de mim. Mas da mesma maneira que dei um jeito de vir a São Paulo gravar o Roda Viva, dei um jeito de vir aqui, mesmo quando não deveria, pois era para eu estar trabalhando em Teresópolis. Deixei de curtir um tempo com minha família porque acredito que parte da solução passa por aqui.
Faço isso porque acho muito importante. O que acontece nas redes sociais e nos novos meios de informação é essencial pra elevar o nível de discussão, para fugir à aceitação do que não se queira digerir. Essa é a luta. E daí sairá coisa boa. Com equívocos, mas tudo bem, faz parte. O caminho se faz caminhando.
Assistindo ao documentário Mito Garrincha, vi sua fala e as imagens, com referências a como ele foi importante para o futebol, além da conversa sobre os meninos estarem preparados para o futebol e a vida, como dizem alguns jogadores mais velhos. Como você vê o jovem jogador de hoje? Você acha que existe um Sócrates em meio a essa meninada?
Juca Kfouri: Não. Talvez tenha o Paulo André, que exilaram para a China. Do mesmo jeito que o Sócrates foi para a Itália, quando a emenda das Diretas Já não passou, o Paulo André foi jogar na China porque a cartolagem começou a pressionar o Corinthians, pois estava incomodando muito.
Mas, voltando à primeira pergunta, eu tenho me batido sobre o assunto, sendo até um pouco mal interpretado por algumas pessoas, professores etc. De toda forma, digo que essa meninada é tão vítima quanto a esmagadora maioria dos nossos jovens. Porque não teve boa escola, só teve o futebol como meio de ascensão social, dentro daquela lógica “bola ou tráfico”.
Quando tivemos as manifestações do ano passado, o David Luiz, um dos mais carismáticos da seleção, foi perguntado sobre o assunto. Ele disse: “eu apoio. Eu vim de lá, sou da rua, meus pais, irmãos, estão lá”. Eles não são da elite, nunca moraram em Higienópolis. Por isso são vítimas também.
Temos uma tendência de nos olharmos de maneira mais negativa que o merecido. Há cerca de dois anos e meio, tocou meu telefone e alguém falou do outro lado:
– “Jucá? Jucá?”.
– “Sim, quem é?”, eu disse.
– “Daniel”.
– “Que Daniel”, respondi, percebendo que era um estrangeiro.
– “Cohn Bendit. Daniel ‘le rouge’”.
– “E eu sou o papa”, retruquei.
Mas era ele mesmo, a grande figura do Maio de 1968. Resumo da ópera: ele estava vindo ao Brasil fazer um documentário de futebol e queria falar comigo.
– “Por que no Brasil vocês têm tantos jogadores conscientes, enquanto na Europa não temos?”, ele perguntou.
– “Você tá maluco? Que tantos jogadores temos? Contam-se nos dedos, o Sócrates, o Afonsinho, Paulo Cezar Caju, o Reinaldo, agora o Paulo André… Quem mais?”, respondi.
– “Ok. Mas e na Europa? Mencione cinco”, ele argumentou.
Não tinha. Talvez o Eric Cantona… Mas aí, coisa entre franceses, ele disse que era muito histriônico, voltado a si mesmo. Não concordo tanto com a crítica, pois acho que o Cantona presta um papel importante. Mas, enfim…
De toda forma, quando olhamos para jogadores de seleção e pensamos que se trata de pessoas com salários imerecidos, não nos damos conta de que eles são 0,5% dos jogadores de futebol. A maioria esmagadora de jogadores do país é de boias-frias da bola, gente que não ganha 3 salários mínimos. O futebol brasileiro ainda está no estágio pré-capitalista, de socialização da miséria, da acumulação primitiva de capital, por meio de roubo e pirataria puros.
No dia 23 de maio, você escreveu uma coluna na qual falava da manifestação do MTST, que esteve no meio dela, e vimos uma postura mais ‘pé no chão’ da Folha. Há um ano, o mesmo jornal pedia pra polícia descer o cacete, além de fazer ilações totalmente irrealistas, como aquela que fala do Black Bloc ligado a PT, PCC etc. Como você vê o jornalismo dentro do âmbito esportivo?
Juca Kfouri: Não existe um jornalismo esportivo no Brasil, mas diversos. Um deles, o da TV aberta, você pode chamar do que quiser, menos de jornalismo. É entretenimento puro, palhaçada. É o que chamo de ‘leifertização’ da cobertura esportiva. Sem entrar no mérito da capacidade comunicativa dessa pessoa. Mas aquilo que faz é pernicioso. Há uma imprensa escrita mais combativa e, digamos, oásis de independência, que de alguma maneira a ESPN representa.
A cobertura inicial da imprensa brasileira das manifestações de junho é dessas coisas de deixar, ou deveria deixar, rigorosamente, os responsáveis com vergonha. Porque em seguida tiveram de fazer a autocrítica, na hora em que os atingidos foram os próprios jornalistas ou os filhos da classe média. Faz parte do que discutimos sobre as elites. É evidente que a imprensa brasileira é reflexo disso, pois foi feita, a vida inteira, para as elites.
Alargar o quadro cabe a cada jornalista lá dentro, que seja capaz de fazer a crítica. Há limites, mas aos poucos se consegue alargar. Trabalhei na Globo, e criei casos enormes, pois o jornal em que eu comentava era ao vivo. Ouvia coisas como “pô, você atacou o Farah (ex-presidente da Federação Paulista). Atacou o Ricardo Teixeira, e estamos negociando os direitos do Campeonato Brasileiro…”.
O nosso papel é alargar, dar cotovelada, não se conformar com o estabelecido, criticar e mostrar o que está errado. Porque, das duas uma: ou você acredita que existem posições honestas, mesmo equivocadas, ou você não acredita em nada. No segundo caso, caímos fora. Desonestidade não é só roubar dinheiro. A desonestidade intelectual é tão perniciosa quanto. E nessa hora a gente perde sempre, porque em geral não nos sujeitamos a qualquer nível de discussão.
Mesmo esse oásis representado pela ESPN (que pertence a um grande conglomerado estrangeiro e tem seus patrocinadores) não é relativo? O jornalista que está lá já não sabe dos limites também?
Juca Kfouri: De novo, voltamos à discussão sobre o raio do sistema capitalista. Cada um faz suas opções, alguns escolhem fazer o trabalho de comunicação e informação fora da lógica dos grandes veículos. A ESPN, simplesmente, é do grupo Disney, um dos maiores do mundo. E tem lá um bando de assalariados para manter sua programação no ar. É o ponto.
Mas eu poderia dizer o seguinte: eu fiz os jornais Movimento, Opinião, Voz Operária, Voz da Unidade etc. concomitantemente ao meu trabalho na grande mídia, principalmente na Editora Abril. Não é verdade que as pessoas sabem de tais limites. Eu não sei do meu. Eu falo qualquer coisa que me venha à cabeça, desde que respaldada pelos fatos e com responsabilidade. Acabei de fazer um terremoto, ridículo, dentro da Ambev, porque dei uma nota dizendo que não tinha cevada na Granja Comary, que a tal cerveja especial não é de lá. Trata-se do maior anunciante do Brasil e fiz isso no blog do UOL. Porque fui lá, vi e achei divertido contar que a história da propaganda não era verídica. Reagiram mal, podiam falar que era uma metáfora publicitária, mas acharam de querer discutir que a cevada vinha de lá. E aí… Foi parar no Conar.
Cada um escolhe sua maneira de fazer as coisas. E podem me dizer que escolhi a mais confortável, pois ganho bem. É verdade. Mas uma coisa aprendi na militância, e até no DOI-CODI: eu não exijo o heroísmo do pescoço alheio. Eu faço o meu e não exijo do outro que faça igual, corra o risco que eu corro ou que faça diferente. Assim como não critico quem entregou sob tortura, porque acho muito fácil fazer esse julgamento sobre quem foi torturado. A tal ponto que nunca ouvi quem foi torturado, e não entregou, fazer tal crítica sobre quem entregou. Só o faz quem nunca foi torturado. É chavão, desagradável, mas pra compreender é aquilo que já falaram por aí: envelhecer um pouco faz bem.
Dentro do atual momento de sociedade, com hegemonia do mercado, existe algum caminho para uma ‘repopularização’ do futebol?
Juca Kfouri: Na semana passada, respondi a um e-mail da Empresa Brasileira de Comunicação, sobre um documentário para a TV Brasil. E defendo a TV Brasil. Há 1000 problemas. Pode ser. Mas defendo. Os mesmos problemas da BBC quando nasceu. “Ah, mas é instrumentalizada pelo governo, dá traço”… Hoje, a BBC é exemplo de jornalismo público, não tem governo inglês que mexa nela. É o contribuinte que a financia. Não devo ver, mas acredito que minhas netas possam ver uma TV Brasil que faça jornalismo público de verdade.
Enfim, eu respondia sobre uma cobertura esportiva que fosse adequada à TV Brasil: “o que me ocorre, por exemplo, seria voltar os olhos para aquilo que muita gente chama de verdadeiro futebol brasileiro, da várzea, da praia, da rua, do morro…”.
Por que a TV Brasil, ao lado de um Banco do Brasil, não promove um grande campeonato nacional de várzea? Quem disse que não teria audiência? Que se estimule a transmissão de jogos da Série D, que não interessam às grandes emissoras. Outro dia, a transmissão de um jogo do Santa Cruz, na Série C, deu mais audiência que o jogo da série A. São caminhos, para trilhá-los é preciso ter coragem. E não pode desistir no sexto mês porque dá traço. Vai dar traço mesmo.
Esse futebol e o profissional são dois mundos diferentes, o que teriam a ver entre si?
Juca Kfouri: O triste é que o grande futebol brasileiro, aquele do qual temos mais saudade, do Pelé, Coutinho, Garrincha, era fruto desse futebol. Onde os olheiros iam ver talentos? Na várzea, na praia… E hoje? Ou dentro dos clubes ou nas escolinhas. Inclusive, é perigoso um branqueamento do futebol brasileiro. São sintomas do sistema que nos rege. O que começou a acontecer com a várzea nas grandes cidades? A especulação imobiliária está acabando com ela. E o pessoal vira jogador de futsal, de society, de prédio…
Você qualificou o estágio do futebol brasileiro como pré-capitalista, com dirigentes rapineiros. Ao mesmo tempo, talvez estejamos no momento de maior força e influência da globalização no Brasil. Como enxerga o atual momento do futebol Brasileiro? Para além da Copa do Mundo, o que vislumbra por aqui em 2015, 16, 17?
Juca Kfouri: Talvez eu dê uma resposta irritante. Infelizmente, sabendo de todos os riscos, até por ver o que acontece na Inglaterra e na França, eu diria que o futebol brasileiro ainda precisa de um choque de capitalismo. Precisa de gestores profissionais que entendam, com frieza, como exacerbar a capacidade e a paixão. Para que o nosso futebol se transforme em algo parecido com a NBA, porque temos capacidade, e deixemos de ser exportador de “pé de obra”. Pra comparar com a Disney, em vez de exportar os desenhos animados, vendemos o Pato Donald. Precisamos manter nossos ídolos aqui.
No entanto, o capitalismo avançado já nos ensinou coisas que não devemos fazer. Não podemos fazer como na Inglaterra, onde qualquer milionário pode comprar um time. Temos de fazer como na Alemanha, onde no mínimo 51% das ações ficam com os torcedores. Mas, do jeito como a roda tem girado, não vejo muita escapatória. Estamos longe. Porque, no Brasil, o que temos são ladrões de galinha, gente que mata a galinha dos ovos de ouro. Veja que grave o que digo: é gente que não tem cabeça sequer pra roubar no longo prazo. É da mão pra boca. E o futebol está nessa situação: o “país do futebol” tem uma média de público inferior à do campeonato de futebol dos EUA.