*para Combate Racismo Ambiental
A militante encarregada de comprar a passagem ida e volta de Altamira a BH acaba adquirindo-a até São Paulo. A aeronave passa em Belo Horizonte. O trecho entre Altamira e São Paulo é maior, mas o preço é mais em conta. Coisas da aviação e do capital, que faz a mercadoria girar para gerar mais lucro.
Em Confins, sofrendo reforma, o único restaurante vende refeição a quarenta e cinco reais por pessoa. Amanda é criança, então paga dezoito.
‘É livre’, diz a atendente. Isso significa que é sem balança e que o cliente pode servir mais de uma vez. Haja estômago para comer desse tanto!
O sabor daquele prato, na noite do dia treze de maio, era de todo especial para quem viajara desde nove horas e não encontrara almoço no aeroporto de Manaus, também em reforma por causa de uns poucos jogos.
A comida mineira, com sua rica culinária, é só por si já apetitosa, mas seu preço, ali, é salgado. Além do calor do fogão, com as panelas sobre a chama acesa, como se fosse à lenha, ela tem a quentura das vésperas de Copa. Agora o calor pode ser ainda maior, pois só faltam 7 dias.
Na acolhedora BH, no entanto, com suas árvores e praças, com cara de interior, as sombras e bancos são gratuitos. É claro que não se pode pensar nos impostos embutidos, nos quase 50% de ICMS na conta de luz e nalgum vereador que, sem criatividade para projetos, queira taxar a sombra, o sol, o ar, o assento. Pois taxa hoje é um dos principais mecanismos de transferência de renda dos oprimidos para a classe opressora.
Há, ainda, pousadas modestas e acessíveis em Belô. Ficamos lá nos dias dezoito a vinte, após vir de São Paulo à noite e enfrentar pelo caminho uma forte chuva de granizo. O barulho era tanto que o ônibus parecia desintegrar-se.
A pousada são trinta e cinco reais por pessoa, incluído café da manhã. Não é aquele café! Mas não falta nada: tem fruta, pão de queijo, pão francês, manteiga, leite, queijo, presunto e uma TV.
É um ambiente familiar! Nos quartos, duas ou três beliches. Banheiros, lençóis, tudo muito limpo e asseado. Na minúscula cozinha, com um espaço bem dividido, os próprios hóspedes se servem e muitos deles, tão à vontade ficam, lavam suas louças e quantas estejam sobre a pia.
Num pequenino corredor, bem à entrada da cozinha, com um balcãozinho de um lado e de outro – e alguns tamboretes por baixo – é a mesa de café. Quem se senta do lado direito, faz a experiência de ver TV de costas para o aparelho, através do reflexo dela num grande espelho na parede. A imagem da TV serve de distração para se evitar mirar a própria imagem. Mas pode ser um problema para os narcisistas.
Da pousada ao Sindicato dos Eletricitários – Sindieletro, onde ocorre o 2º Seminário Nacional de Política Energética, nos dias dezenove e vinte de maio, é um pulo. Coisa de dois quilômetros se muito, dez minutos a pé.
No caminho, há tempo para se pensar na Petrobrás e nos incidentes de Pasadena, cujos debates esquentaram o Congresso brasileiro nos últimos meses, com instalação de CPIs, uma da estatal brasileira e outra do cartel do Metrô, São Paulo.
O esquema montado pelos tucanos e grandes transnacionais, entre as quais a Siemens, teria provocado um rombo inicial superior a 800 milhões de reais nos cofres públicos. Importante lembrar que a Siemens está imiscuída no setor elétrico brasileiro desde a época da Ditadura Militar – e hoje, em Belo Monte – e nem Deus sabe o que ocorreu nesses tempos sombrios, cuja fumaça, incrustrada em estruturas arcaicas, ainda sufoca a nossa liberdade.
Aparentemente os parlamentares estão preocupados com possíveis prejuízos na Petrobrás. Mas quando se olham os números dos últimos dez anos, a receita da Petrobrás cresceu 193% e o seu patrimônio líquido 599%; suas reservas atuais são de 16, 56 bilhões de barris de petróleo, capaz de gerar dois trilhões e 318 bilhões de reais de lucro; sua previsão de investimento (2014-2018) é da ordem de 220 bilhões, 44 bilhões por ano, 121 milhões por dia.
O principal combustível dos debates acirrados em torno da Petrobrás não é, portanto, o suposto prejuízo, mas o seu lucro, a sede em privatizá-la e o clima da disputa presidencial.
Nem uma estatal a mais, ainda que seja sob o apelido de Parceria Público Privada, deveria ser privatizada nesse país. O caminho haveria de ser outro: que as estatais se tornem empresas públicas!
Mas voltando ao Seminário de Política Energética em Belo Horizonte, ele foi organizado a partir da Pauta Operária e Camponesa da Energia, em nível de Brasil, e de uma relação de confiança entre diferentes organizações que vem se consolidando ao longo de anos em Minas Gerais, reunindo mais de uma centena de pessoas de todas as regiões do Brasil e de quatro países da América Latina: Venezuela, Argentina, Costa Rica e Colômbia.
Além da habilidade para a construção dessa relação de confiança, militantes de movimentos populares e sindicalistas, ali, têm uma conjuntura que joga a favor deles: a percepção de um inimigo comum, a CEMIG, empresa estatal de lógica privada, na qual morre um trabalhador a cada 45 dias.
Unidade de classe tem seu nascedouro não em pautas e reuniões, por importantes que sejam; unidade nasce com relação de confiança entre as pessoas que dirigem as diferentes organizações, e essa postura, apesar dos imensos desafios, tem sido exemplar em Minas Gerais. Nota-se o crescimento dessa unidade como se nota o desenvolvimento de uma criança, principalmente quando se fica algum tempo distante dela.
Já o Ministério de Minas e Energia, uma espécie de governo paralelo em Brasília, cobiçado e odiado, temido por seus pares, tem sido uma presença desconcertante nesses espaços de debate, mas importante. Afinal, conhecer o MME, que apita a favor do inimigo, é um passo a mais na luta de classes. Principalmente num país que tem ‘outro Brasil no Norte’, com 110 GW, dos quais apenas 8% são explorados. Ainda mais num país que, pressentindo alguma resistência à barragem enquanto vetor do chamado desenvolvimentismo (Belo Monte, por exemplo), movimentando pessoas e negócios na área de sua implantação, planeja as barragens-plataforma, que funcionariam como vetores de preservação. Diz-se que para cada km² interferido seriam preservados 101 km².
Fato é que o capital usa todos os meios para desobstruir o seu caminho e expandir-se, na busca de seus interesses.
No 1º Seminário de Política Energética, nos dias 19 e 20 de abril de 2012, em Brasília, aparecera o Lobão em pessoa, vestido de cordeiro.
De todas as autoridades ali presentes, teria sido o mais astuto e cínico. Confessara ter deixado compromissos importantes para estar ali, ‘prestigiando’ o evento. Ele, plenipotenciário, lá da altura do que significa o MME num país tão rico em bem natural, capaz de juntar toda a alcatéia da energia num uivado apenas – reunidas em 16 associações -, capaz de colocar amplos setores do governo – uns até bem intencionados – com o rabo entre as pernas, ladeado no dia a dia das melhores raposas da política brasileira, está ali para prestigiar.
Nesse Seminário, em BH, o MME envia um tecnocrata, mas não menos astuto e irônico do que Lobão, com o capital na mente, no coração, e os números na ponta da língua.
Chamado à Mesa, o tecnocrata do MME tira o paletó e se justifica, dizendo que o ambiente é informal e que está muito calor. Não estava tão quente! Restam-lhe agora apenas a camisa branca, de manga comprida, a gravata com seu nó presa ao pescoço, como a amarrá-lo ao ofício. Ele fica excêntrico naquela Mesa composta de membros da Pauta Operária e Camponesa da Energia, em tudo parecido com um executivo bem sucedido de empresa privada, e sua fisionomia não esconde o incômodo.
‘Estou aqui para gerar insumos’, diz. Nunca tinha ouvido isso! É certo que ‘a burguesia fede’, mas provoca uma confusão ideológica tão forte que, mesmo o trabalhador com um olfato canino, às vezes não sente o seu odor fétido.
A confusão ideológica é o perfume dos opressores.
O representante do MME destaca inicialmente, no ‘modelo’ energético brasileiro, a segurança no abastecimento, a modicidade tarifária, a universalização do atendimento e o compromisso com as questões ambientais. Enquanto ele fala, quantos terão pensado: na precariedade da distribuição de energia no Pará e em diversas outras regiões do Brasil; na consigna ‘o preço da luz é um roubo’; nas 80 mil famílias ainda sem luz em Minas Gerais, um Estado rico e ‘desenvolvido’; e, nesse momento, no desastre ambiental e social de Belo Monte.
O tecnocrata parece falar de outro país. Está mesmo inebriado com as belezas do capital, e, para cada questão posta, ele apronta argumentos, alguns cheios de ironia.
No contexto da macroeconomia, olhando para cima, para o Norte do Mundo, ele considera que a opção pela hidroeletricidade é plenamente racional.
O tecnocrata tem razão a partir desse ponto de vista. Mas claro que não se trata apenas de uma opção de governo e, sim, de uma imposição de quem manda nos governos nacionais, buscando quebrar-lhes possíveis resistências e garantindo que a energia-mercadoria gerada a custo baixíssimo seja vendida como commodities e, com alguma especulação por quem não produz um MW de nada, possibilite uma extraordinária acumulação de capital.
A ‘opção’ pela hidroeletricidade é uma decisão pelo lucro e pronto, doa quem doer!
Quanto ao ‘modelo’ misto do setor elétrico, com 80% regulado e 20% livre, o tecnocrata até admite que a lógica seja capitalista, mas apela para a Carta Magna e diz que isso está dentro da lei. Assim, minimiza o rombo de 25 bilhões de reais (2014) que as empresas CEMIG, COPEL e CESP, todas comandadas pelo PSDB, estão causando ao Estado e à sociedade brasileiros, classificando esse verdadeiro roubo de ‘buraco’ no setor elétrico. Que buraco! Assim, minimiza também a responsabilidade da ANEEL e do governo nesse rombo.
Nessa disputa atual de maior ou menor presença do Estado na economia, é adequada a frase-síntese da luta da classe trabalhadora na área da energia: água e energia com soberania, distribuição de riqueza e controle popular.
Ele, por fim, ironiza os reclamos dos movimentos populares e das empresas do setor energético, afirmando que o MME é pressionado por ambos, e que, por vezes, se sente no Kremlin.
Sua petulância chegou a tal ponto que Giorgio Romano, professor da universidade do ABC, brinca sobre a postura arrogante do Ministério de Minas e Energia, dizendo que ‘não teria sido avisado de que a Ditadura no Brasil acabou’, e arranca risos entre os presentes.
Dorival, professor na Universidade do Mato Grosso, lembra sempre que o conceito de energia é uma noção construída dentro da sociedade capitalista, que ela interfere diretamente na produtividade do trabalho do trabalhador e que tem uma capilaridade imensa. E aponta duas questões centrais no ‘modelo’: a energia como commodities e a blindagem da estrutura institucional: ANEEL, EPE, Câmara de Comercialização de Energia e outras. Essa configuração torna a energia uma mercadoria cara num sistema sustentado pelas 60 milhões de conta de luz. O povo é que paga a conta!
Estudiosos e lutadores presentes no Seminário, que vêm ajudando a classe trabalhadora a entender a conjuntura, têm, mesmo, razão no que dizem.
Igor Fuser, da Universidade Federal do ABC, fala dos bons resultados da exploração do gás de Xisto capitaneado pelos Estados Unidos, mas, ao mesmo tempo, mostra sua desconfiança em relação ao ufanismo da revolução energética norte americano, como se o petróleo fosse, com isso, perdendo poder. No dizer dele, países ricos em petróleo e gás continuam na berlinda. Gabriel Fernandes, da Argentina, lembra que o capitalismo segue conquistando mentes e corações, e por isso está tão forte. Fábio Gerardo, da Costa Rica, defende que o bem natural deve estar a serviço do desenvolvimento e da qualidade de vida do povo. Rodolfo Vicino, da Colômbia, recorda que 70% das terras do país teriam sido repassadas a empresas de mineração e petroleiras. Tony, da Venezuela, anuncia que seu povo decidiu não voltar atrás, apesar das tentativas de Golpe de Estado.
Joceli Andreoli, militante do Movimento dos Atingidos por Barragens, mostra de onde aprendeu a olhar o mundo. O mais velho de cinco irmãos, ele conta que, na sua infância, sua mãe e seu pai somem de casa num belo dia, e ele, após esperar algum tempo, sai a procurá-los. Soube por um vizinho que estavam em casa de seus avós. Vai então até lá. Ao encontrá-los, seus pais lhe explicam que foram a uma mobilização, mas as coisas não andaram, por isso decidiram ficar para continuar o processo de luta. Seu pai lhe disse: ‘volta pra casa, vai à tuia, pega arroz, leva ao moinho, coloca em dois sacos, monta o cavalo e traz para o povo mobilizado’.
Olhar o mundo apenas a partir das vítimas produz até boas denúncias e é bom para ser coitado. Dá até troféu para quem sofre mais. Mas olhá-lo a partir das vítimas em luta, e fazer as intervenções necessárias no momento oportuno, é criar a possibilidade de transformá-lo, na sua estrutura mais profunda.
O Xingu, por sua vez, tem sido anedótico, traumático e promissor. Nos últimos meses, gente do alto escalão da Norte Energia procura um dos principais críticos históricos de Belo Monte e lhe diz: ‘o senhor tem razão!’. Setores progressistas do governo federal já admitem que as promessas redentoras da hidrelétrica não se confirmam. A equipe que comanda a construção dos reassentamentos urbanos em Altamira (4.100 casas) já nem reage diante das críticas às casinhas de cimento, pois o fato concreto, a olhos vistos, é que elas realmente não prestam. O Reassentamento Urbano Coletivo, a melhora de vida, a garantia de políticas públicas historicamente negadas, por enquanto tudo está na letra fria do PBA.
O reconhecimento de que os atingidos e os críticos de Belo Monte, e do capital, têm razão não significa quase nada. A história ensina que ter apenas razão, numa circunstância dessas, na dança de números entre lobos, é como ajoelhar-se depois da procissão passada.
O momento é de persistência na organização do povo e de acumular força popular capaz de fazer avançar os direitos e provocar as mudanças estruturais necessárias em nosso país.
Não lutamos para um dia ser declarados certos e ter razão, lutamos para vencer todo tipo de opressão e ser livres na vida.
Pe. Claret, acreditando em barragens-plataformas? Endossando o discurso mentiroso do governo???