“A prática das UPPs deixa claro isso: são uma força de ocupação, e não uma força de alteração da lógica política, econômica, social, cultural daquela comunidade, de alteração para melhor”, afirma o sociólogo
IHU On-Line – Há pouco mais de cinco anos, foi instalada na Favela de Santa Marta, no Rio de Janeiro, a primeira Unidade de Polícia Pacificadora – UPP carioca. Tratada pelo Estado como a panaceia aos problemas das comunidades mais humildes do Rio de Janeiro, a estrutura montada pela organização policial parece ser ineficaz às demandas da população. “Essa estrutura montada há cinco anos não consegue alterar a essência do crime organizado. Ela altera a forma dele de funcionar, diminui a lucratividade, estabelece outras formas do tráfico de drogas, do tráfico de armas”, aponta José Cláudio Alves, em entrevista por telefone à IHU On-Line.
“Inicialmente se teve uma visão — e isso se constitui politicamente — de que as UPPs são uma resposta política e midiática à estrutura da violência que existe no Rio de Janeiro há muito tempo, que funciona e sempre funcionou. Essa forma de operar, desde o início, já era capenga, não tinha de fato uma estrutura mais aprofundada de relacionamento com a comunidade. E a prática das UPPs deixa claro isso: são uma força de ocupação, e não uma força de alteração da lógica política, econômica, social, cultural daquela comunidade, de alteração para melhor”, explica o professor. “O tráfico funciona dentro de uma estrutura social na qual o aparato institucional funciona espoliando e arrancando dinheiro e recurso dessa população mais pobre. Ela é espoliada pelo tráfico e pelo aparato policial”, complementa.
José Cláudio Alves é graduado em Estudos Sociais pela Fundação Educacional de Brusque. É mestre em Sociologia pela Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro e doutor, na mesma área, pela Universidade de São Paulo. É professor na Universidade Federal Rural do Rio de Janeiro e membro do ISER Assessoria. Confira a entrevista.
IHU On-Line – Qual a origem dos ataques às UPPs na última semana? Trata-se de ações do crime e do tráfico organizado?
José Cláudio Alves – Quando analisamos inicialmente o surgimento das Unidades de Polícia Pacificadora – UPPs, de certa forma elas trazem uma espécie de solução mágica, ou uma solução para todos os males da questão da segurança, em função da lógica de ocupação daqueles espaços por aparatos policiais e o controle dessas áreas.
Inicialmente se teve uma visão — e isso se constitui politicamente — de que as UPPs são uma resposta política e midiática à estrutura da violência que existe no Rio de Janeiro há muito tempo, que funciona e sempre funcionou. Essa forma de operar, desde o início, já era capenga, não tinha de fato uma estrutura mais aprofundada de relacionamento com a comunidade. Desde o início também o governador e o secretário de segurança declararam que ela não vinha para acabar com o crime, e deixaram isso bem claro. Falaram que é uma política de ocupação para ter segurança e paz naquelas comunidades, mas em nenhum momento eles afirmam que vão estabelecer uma modificação ou uma ruptura com a estrutura do crime. Eles não assumem isso; não há, em nenhum momento, esse discurso. E a prática das UPPs deixa claro isso: são uma força de ocupação, e não uma força de alteração da lógica política, econômica, social, cultural daquela comunidade, de alteração para melhor.
Contradições
Pelo contrário, vão trazer para aquela comunidade o acirramento de várias contradições. Acirramento cultural, porque impede a manifestação cultural que tradicionalmente aquelas comunidades desenvolviam e que está associada ao funk. Amplia as contradições econômicas, porque a lógica do tráfico de drogas funcionava em uma lógica econômica, que reproduzia dando benefícios para determinados segmentos daquelas comunidades, das favelas, e também, sobretudo, para o aparato policial de combate ao crime, cuja estrutura sempre funcionou e alcançou a dimensão que tem hoje no Rio de Janeiro em função das articulações por dentro da estrutura do Estado. Os organizadores desta estrutura são os agentes da área da segurança pública ao lado do tráfico de drogas.
Eles não são aqueles que simplesmente estão ali para combater e eliminar. Pelo contrário. Eles fazem parte dessa estrutura ampliada, de comunicação entre outras favelas. A lógica das facções foi criada e elas existem de fato.
Facções
Há uma organização de facções no Rio de Janeiro, as grandes facções de que se fala, Comando Vermelho, 3º Comando, por exemplo, que realmente existe. Mas não existem de forma isolada e tomando decisões próprias, simplesmente. Não é e nunca foi assim. Elas existem em função de centros de negociações, de acordos e de participação com a estrutura do aparelho do Estado desses agentes que sempre estiveram envolvidos também com a organização do crime organizado no Rio de Janeiro. Então, no modelo anterior, foi sendo alterada a questão cultural, a questão econômica é afetada pela redução da forma com que o tráfico funcionava, redução da venda da droga, mas, sobretudo, da redução também do tráfico de armas. Isso afeta diretamente a lucratividade desse negócio, desse grande empreendimento. Afeta as outras operações que ocorriam naquela região, como roubo de carga, roubo de carro, sequestro de pessoas. Isso também são estruturas do crime que vão, com a entrada das UPPs, diminuir, mas não desaparecer.
Os índices permanecem e são muito difíceis de ser classificados, já que nessas áreas agora há um controle estabelecido sobre essas comunidades por parte do aparato policial — aparato envolvido na organização do crime — e um controle que vai também reemergir números de dados em relação à criminalidade dessa região. Não temos mais certeza se esses índices são reais. O caso Amarildo é o mais dramático que vem a público e revela que os índices com os quais a polícia trabalha não são reais. Eles são construídos pela própria polícia a partir de práticas como no caso Amarildo. Aumenta o número de desaparecidos e a gente não tem como controlar a investigação dessas pessoas. Eu já discuti com a polícia e eles dizem que, nos casos das pessoas que são encontradas, a família não aparece para retirar a queixa. Então o número fica marcado como sendo de um desaparecido e não há essa modificação. Claro que a polícia também não justifica, ela não abre investigações. Se cada caso de crime ocorrido, furto, roubo, desaparecido, a polícia realizasse de fato uma investigação, obteria a conclusão dos processos, e daí obteria um número real de quem desapareceu ou não. Como não há investigação, os números não têm substância e vivem em meio a dados que a gente não confia.
Então, voltando a isso, a política de UPP vai estabelecer uma nova lógica de dominação, vai reestruturar o funcionamento do crime organizado dentro da comunidade, reestruturar o controle cultural, o controle político sobre essa comunidade. Os líderes da associação de moradores até podem deixar de ser controlados pelos traficantes — mas acho que muitos deles continuam a estabelecer, sim, uma relação com o tráfico, pois o tráfico não desapareceu nessas comunidades. Só que essa estrutura montada há cinco anos não consegue alterar a essência do crime organizado; ela altera a forma dele de funcionar, diminui a lucratividade, estabelece outras formas do tráfico de drogas, do tráfico de armas.
Desparecimento
O caso Amarildo é exemplar para pensarmos a questão do desaparecimento, pois não temos como saber dos demais casos de desaparecidos. Os autos de resistência diminuem, mas continuam ocorrendo. A própria lucratividade do crime organizado nessas áreas foi compensada de alguma forma com o deslocamento de grandes contingentes de criminosos, por exemplo, para outras áreas da região metropolitana. E isso ocorreu. E é isso que eu vivo na Baixada Fluminense, onde eu analiso mais esse assunto. Por exemplo: existe um complexo aqui chamado K11, em Nova Iguaçu. Ele corresponde a várias favelas: favelas da Coreia, do K11 e existem mais outras duas comunidades. É um complexo grande, e agora desembarcou ali um contingente grande de membros do Comando Vermelho que se deslocou de comunidades que foram ocupadas pela UPP e, sobretudo, oriundos da Favela da Maré. Eles estão se deslocando para essas áreas da Baixada.
Agressividade
A agressividade, a ostentação existem. Se alguém entrar no Facebook e buscar “Complexo do K11”, aparece uma página deles, do Comando Vermelho, com jovens com armamento pesado, e eles têm vista panorâmica da região toda. É bom não clicar em nada porque você aparece como alguém que está curtindo essa página, e isso complica. Apesar de que não sei se complicaria tanto, porque a polícia não investiga nada mesmo, então não sei se isso é real. Ali é possível ver a ostentação de uma estrutura do crime organizado com os jovens que estão indo para lá agora, nessa lógica do crime. Eu não vou cair aqui na asneira de dizer que são bandidos, simplesmente. Eles não são bandidos. Eles fazem parte de uma estrutura criminosa. Os bandidos são muito mais que eles. Não adianta eu dizer para você que tem que eliminar os bandidos, que essa é a lógica da sociedade como um todo, a lógica da segurança pública, que estabeleceu uma dinâmica de execução sumária nessas áreas, em que se propaga que eles são os bandidos e que têm de ser eliminados. Eles não são os bandidos que precisam ser eliminados. Eles são uma ponta da estrutura, e quem organiza a estrutura está dentro do próprio aparelho do Estado. E, juntamente com esta estrutura criminosa, formou as políticas do crime organizado. Então esse crime se deslocou para Baixada, e ele está invadindo várias áreas.
Ocorreu, há uns quatro meses, uma operação policial em populações controladas por jovens armados, cujo estopim foram imagens de Facebook, mas depois tudo volta a ser como era antes porque existe um aparato policial que vai se beneficiar na organização desse crime. Lá onde esses jovens estão se deslocando, pode ser Alemão, Rocinha, pode ser, agora, a Maré, há uma redução. Só que essa redução não pode ser sustentada por médio prazo.
Estrutura
Não somente a estrutura policial, mas o próprio crime organizado da parte dos jovens, que estão completamente envolvidos com as facções criminosas, está percebendo os limites dessa estrutura de UPPs. Quais são os limites? Não é uma política tão ostensiva assim, existem os policiais que estão ainda envolvidos diretamente com esse crime organizado que querem manter a lucratividade anterior que perderam. O efetivo de policiais nessas áreas aumentou muito, eles têm agora um policial para cada 50 habitantes. Há um contingente de policiais que chegam nas comunidades e não têm capacidade de mudar a estrutura institucional na qual convivem com o crime organizado. Então o que vai acontecer: eles vão ser absorvidos, eles vão fazer parte de um novo contingente, com demandas também de envolvimento para a obtenção de ganho a partir da lógica do crime organizado que opera naquela comunidade. Sempre foi assim.
Esse tráfico vai percebendo novas contradições, vai percebendo as áreas não controladas e as fragilidades do apoio da população. A população começa a enxergar essa UPP não mais como uma política de amigos ou de pessoas que estão ao lado da comunidade. Ela se dá conta das contradições, do crime organizado, então essa população começa a não dar mais suporte para a permanência deles e começa a estabelecer críticas, fazer reivindicações de forma mais contundente. Ao invés de ficar esperando uma UPP social, para fazer reuniões ridículas, uma reunião de duas horas, das quais uma hora e meia são os comandantes, secretários e o presidente do Instituto Pereira Passos – IPP que vão falar. A outra meia hora ou, às vezes, apenas os quinze minutos finais vão sobrar para que a população fale por somente três minutos cada um, enquanto os que falaram anteriormente — os representantes do Estado e do poder constituído pelo Estado — vão falar dez minutos ou mais.
População
Quando a população fala alguma coisa, na mesma hora eles são identificados, é negociado que procurem aquele espaço da UPP para ver qual é o problema e eles são praticamente cooptados. Dali em diante não tem mais nada para se alterar, porque aquela UPP social simplesmente não tem poder nenhum de alterar essa estrutura montada do crime ali dentro. Então se a população também não acredita mais na UPP social, vê como uma farsa, um engodo, essa população também começa a olhar de volta para o tráfico e dar apoio a ele.
Um exemplo que ocorreu lá na Zona Sul, mas acredito que também ocorra esse tipo de situação em qualquer local: um senhor de idade, em uma comunidade de Belford Roxo, muito pobre, em um padrão de favelização da Baixada no padrão não da Zona Sul, morre — o laudo depois atestaria infarto. O corpo desse senhor fica no espaço em que ele faleceu, que era fora da casa, sendo vigiado pelos parentes para que os animais da região não comam o corpo do homem. Os bombeiros foram acionados para ir lá retirar o corpo, porém não iam à comunidade porque simplesmente diziam que era uma área de risco, muito violenta. Passaram três dias e então o bombeiro deu a outra informação: só entraria para retirar o corpo se recebesse 400 reais. Ora, aquela família tinha R$ 400 para dar ao bombeiro? É óbvio que não tinha! Daí buscaram a ajuda de pessoas no meio de uma comunidade pobre. Quem foi que deu os R$ 400? Os traficantes, claro. O tráfico funciona dentro de uma estrutura social na qual o aparato institucional, e nesse caso os bombeiros, funciona espoliando e arrancando dinheiro e recurso dessa população mais pobre. Ela é espoliada pelo tráfico e pelo aparato policial. Os dois fazem parte dessa estrutura criminosa. A população, quando vê uma coisa dessas, não vai ficar apoiando bombeiros, é óbvio. E vai apoiar quem? O traficante.
A irmã desse homem que morreu faz hemodiálise. Ela tem que andar 500 metros até o ponto de ônibus três vezes por semana para ir fazer hemodiálise. Ela consegue fisicamente andar 500 metros? Não. Quem é que paga moto-táxi para levar essa mulher até o ponto de ônibus três vezes por semana? O tráfico de drogas. Então o fato é que a população pobre está espremida, comprimida por uma estrutura criminosa por dentro do aparato estatal e uma estrutura criminosa privada particular que também se articula com esse aparato estatal criminoso.
Mudança de pensamento
Com o passar do tempo, essa população começa a mudar, mudar sua forma de pensar e se articular com as UPPs, que entram em franco declínio. Não há como sustentar isso, nesses moldes que foram montados, por mais de cinco anos, de forma tranquila. Daí chamam o Exército para entrar na Maré. Você põe quatro mil policiais membros do exército em uma operação direta numa comunidade e isso aparece na mídia como uma grande resposta à questão da violência da Maré. É ridículo, é boçal, é banal. As pessoas não estão percebendo que, por trás dessa ocupação, existe toda uma estrutura organizada do crime que vai se perpetuar, que não vai ser modificada, que vai absorver porque já parte do próprio aparato estatal de segurança pública. Aí pode ser Bombeiro, Polícia Militar, Polícia Civil, o que for. Já está diretamente comprometida na estrutura do crime organizado naquela comunidade.
Isso vai dar um resultado imediato para alguns, que vão expressar que a segurança melhorou, mas que a curto e médio prazo não se sustenta, porque não se toca minimamente nas raízes profundas dessa violência. Elas estão enraizadas na estrutura institucional do aparato policial do Estado, e sem controle, ela se autoinvestiga, ou melhor, se protege e se reproduz na forma do próprio crime organizado dentro do Estado. Isso estabelece a lógica da tortura, do sequestro, de atacar os traficantes para obter recursos e dinheiro para permitir que o tráfico funcione. Não se tocam nas dimensões políticas da própria comunidade. Não se altera a cultura dessas comunidades, ainda presa a uma dinâmica em que o tráfico aparece e reaparece como herói, como liderança, como jovens que têm futuro e poder, que estão armados e têm poder naquela comunidade. Essa cultura não foi alterada porque o próprio aparato estatal precisa dessas imagens, pois, para garantir os seus negócios, permanece a necessidade de funcionamento do traficante que vai operar o tráfico de drogas, mas que vai pagar o aparato policial pelo funcionamento desse tráfico de drogas. É uma mão de obra terceirizada muito boa que essa empresa do crime organizado utiliza e que também pode ser executada, eliminada, porque há milhares para repor a mão de obra de jovens que morrem no tráfico.
Lógica econômica
A UPP sequer toca ou arranha a estrutura e a desigualdade da cidade. A cidade continua concentrando renda e poder na mão de poucos, daqueles que estão envolvidos diretamente com grandes eventos, que são donos de empreiteiras, que estão indiretamente envolvidos também nessa restruturação da cidade e ganhando com isso. As comunidades pobres não recebem investimentos na área de geração de renda nem na área de educação. Teria que qualificar educacionalmente essa população, porque ela não tem acesso à educação de qualidade; pelo contrário, a educação que se montou no Rio de Janeiro é toda voltada para o modelo fordista e taylorista de produção em série de pessoas aprovadas automaticamente por modelos de alcançar metas por parte do Estado para poder se alçar a uma condição de educação básica.
Essas metas são obtidas porque os jovens continuam sendo educados pessimamente, os professores são tratados como montadores de linha de montagem para montar aquilo que o Estado quer, mas que não têm autonomia nenhuma no processo educativo. Então a qualidade da educação é destruída, e a saúde nessas áreas é de uma precariedade absurda. A estrutura de saúde pública não atende e não consegue atender a população do asfalto e muito menos a população dessas comunidades faveladas. É degradante.
IHU On-Line – O ataque às UPPs sinaliza apenas manutenção da estrutura do tráfico e do crime ou há ainda tentativa de uma nova alteração da geopolítica do tráfico?
José Cláudio Alves – Nunca acredito que são ações isoladas. É claro que cada local desses tem uma conjuntura específica, tem os acordos com a polícia, o funcionamento do tráfico em si, a lógica de milícias que passam também a interferir. A favela da Maré tem todas as facções, a polícia e a milícia: Comando Vermelho, Terceiro Comando, milicianos, um aparato policial, etc. Como estes grupos estão atuando hoje? Como as fronteiras são estabelecidas e como os limites de cada grupo são estabelecidos? Então são conjunturas muito específicas. Cada pequeno passo que um grupo desses dá dentro das comunidades vai gerar modificações nessa geopolítica, nessas fronteiras e na medição de forças entre eles.
As UPPs perdem força agora? Perdem. A estrutura que ela montou está desacreditada, sem apoio popular, esse apoio está migrando para traficantes ou para outras facções criminosas que estão ali. Então cada ação dessas que ocorre agora está dentro desse cenário. Para mim essas ações do tráfico expressam uma reformulação. A dinâmica continua, e eles estão ganhando mais força para se confrontar com a estrutura oficial das UPPs, e para obter mais ganhos eles vão negociar, não vão expulsar as UPPs, não interessa isso. Não interessa ao traficante simplesmente uma guerra declarada e aberta, midiática, na qual o Sérgio Cabral, com apoio do Governo Federal, introduz o exército lá. Ninguém quer isso. Nem membros policiais envolvidos diretamente com o crime, nem o tráfico de drogas.
Cada conflito visível que a mídia traz resulta em novos chamados para negociações. O crime organizado não quer alterar absolutamente nada que traga o fim da estrutura do tráfico de drogas e armas. Isso não é o fim, mas uma renegociação a partir de novos confrontos e conflitos que irão ocorrer. A questão que se impõe é: quanto disso vai ser respondido pela estrutura política midiática do atual governo do Estado? Quanto esse mesmo governo vai usar da mídia e dessa política para faturar politicamente, em um ano determinante como o eleitoral? Por que essas escaramuças acontecem agora? Elas acontecem agora porque ninguém vai querer fazer essas escaramuças perto das eleições, nem perto da Copa do Mundo. É claro.
Racionalidade da estupidez
Por que os policiais militares arrastam uma mulher morta por centenas de metros dentro da cidade do Rio de Janeiro? A lógica que parece é a lógica da estupidez. É uma estupidez que opera numa racionalidade. E qual é essa racionalidade? A racionalidade de que a polícia pode continuar matando sem problema e vai matar para exigir cada vez mais o respeito de suas operações dentro dessas comunidades, como também a manutenção das negociações que beneficiam a lógica dessa polícia criminosa.
Cada facção dessas joga com exposição midiática, joga com momentos que o Rio de Janeiro irá viver agora e tudo isso faz parte da negociação de operações do crime a partir de uma cidade que opera com um capital muito elevado cujas negociações são na casa de milhões. Então, todos esses grupos estão “de olho” nessa riqueza que o capital traz para poder se beneficiar também dessa riqueza.
IHU On-Line – Como o senhor avalia a ação do governo, de ter acionado o Batalhão de Operações Especiais – Bope e o Batalhão de Choque para reforçar a segurança nas favelas ocupadas? Há uma possibilidade de se retomar o modelo Bope nas favelas? E como fica a atuação das UPPs?
José Cláudio Alves – O Bope nunca deixou de ter essa função. Ele pode ter reduzido isso, mas nós temos várias informações de comunidades aonde ele tem ido. A pergunta é: o Bope vai voltar a um padrão elevado de execuções sumárias? Isso, sim, me parece ser o recado que o governo do Estado está dando, neste momento, para essas facções que querem renegociar o crime organizado e ampliar seus negócios. Ou seja, de que não podem extrapolar os limites estabelecidos pela metrópole de segurança pública. Qual é a complexidade disso? É que qualquer operação dessas vai sempre estar em diálogo com a estrutura do aparato do Estado naquela região que está negociando com o crime organizado. Então, eles têm interesse de ampliar os seus negócios; se o tráfico faz um avanço e ganha posição, e ganha apoio, e ganha uma dimensão mais forte, é preciso uma resposta. A resposta que está se dando agora é intensificar a lógica de confronto aberto e de eliminação. O governo está dizendo assim: “Eu não vou negociar com vocês, eu tenho que expressar política e midiaticamente para essa conjuntura, para essa sociedade que eu vou agir mais duramente”. Então, finaliza-se com a entrada do Exército, a entrada do Bope, que sempre permaneceu, mas que agora vai elevar a sua atuação aos padrões que ele foi treinado para fazer; ele é uma política de execução sumária.
Pan-americano
Em 2007, quando a polícia — isso foi uma operação grande, não foi só o Bope — entrou no Complexo do Alemão, às vésperas do Pan-americano, e matou 19 pessoas, foram comprovadamente execuções sumárias. As perfurações à bala foram na cabeça e nas costas. Existe um laudo da Secretaria Especial dos Direito Humanos sobre isso. Na invasão do Alemão em 2010, esse laudo não apareceu, nós não temos isso. Então isso é outra política, uma política de cerceamento de informações. A política do governo Dilma, na área de direitos humanos, não enviou até hoje uma comissão especial para avaliar o que ocorreu em 2010, nem o governo Lula. Então, parece que o cenário anunciado pelo Rio de Janeiro é o de um Estado que não vai tolerar e que vai agir da maneira que agiu em 2007 e em 2010.
Favela da Maré
Por que a Maré? A Maré, que junto com a Rocinha são as duas maiores favelas do Rio de Janeiro, ficou esquecida e abandonada. No mesmo dia que houve uma grande manifestação no Rio de Janeiro, houve uma operação do Bope na Maré, houve a morte de um soldado do Bope (um sargento, se não me engano), e aí o Bope eliminou onze pessoas dentro da comunidade, entre elas pessoas não envolvidas com o tráfico. Então essa favela ficou por último, como símbolo ainda de uma estrutura de violência organizada, por isso era simbólico ocupar a Maré agora. Usar uma força bélica extremamente superior é o grande poderio político midiático que o governo de Sérgio Cabral está lançando para dizer para cada comunidade dessas, hoje, em confronto, que ele vai usar dessa estratégia que vem usando desde o primeiro governo dele.
IHU On-Line – Diante dessa estratégia, como ficam as UPPs? Elas ainda terão espaço?
José Cláudio Alves – Neste momento, nessas áreas ocupadas, as UPPs vão sempre lançar mão dessa estrutura da execução sumária e da política de confronto aberto e da política de poderio bélico superior, elas não vão abrir mão disso, eu tenho certeza. O golpe vai entrar em ação, o Exército já tem liberação, pois o Sérgio Cabral conseguiu do Governo Federal a autorização para uso do Exército. Nós já temos no Rio de Janeiro vários ensaios da entrada do Exército na operação, a primeira com a operação Rio I em 1994, com o Sr. Marcelo Alencar, o primeiro a inaugurar uma estrutura de ocupação de favelas pelo exército; ele mesmo depois fez a operação Rio II, posteriormente, com ocupações do Morro da Providência e do Livramento durante meses, em que o exército entregou cinco jovens de uma facção para outra facção criminosa e eles foram executados pelos criminosos.
As UPPs durante cinco anos não alteraram a estrutura do crime organizado, então a única lógica que resta é uma lógica bélica militarizada, altamente letal, que é a política de segurança pública do Rio de Janeiro. É uma lógica de guerra aberta e já que eles anunciam para os “inimigos”, esses inimigos que a mídia fica trabalhando como inimigos, mas que na verdade não são, trata-se de parceiros, sócios nesse negócio do crime organizado. Aí monta-se esse filme dentro da própria mídia que tem uma expressão que é infoentretenimento: “Eu vou protagonizar força, poder bélico, execução sumária e vocês encenam para mim fuga, ida para outras áreas de confronto. Vocês se submetem a isso para gerar o menor gasto possível. Agora, caso haja resistência, nós vamos, sim, atuar como ‘maus policiais’, nós vamos eliminar vocês, sim.”
Campanhas eleitorais
O tráfico de drogas e os grupos dentro do aparato do Estado operam por uma lógica que não foi feita para ser modificada, mas para ser maquiada e vendida. A cidade, o governo e a prefeitura do Rio de Janeiro precisam vender uma imagem de grandes negócios, eles sabem o quanto vão enriquecer os seus financiadores de campanha e precisam trazer esses recursos para as grandes empreiteiras, para as grandes contribuintes. Isso resulta de um controle de financiamentos de campanha político-eleitoral que é determinante a esses grandes investidores, para que se possa receber muitos recursos e dividir uma parte disso para essas campanhas.
A classe dominante brasileira aplaude isso porque é uma política pública de segurança baratíssima e, ao mesmo tempo que perpetua o crime desses policiais, fatias importantes desse mercado criminoso não alteram esse mercado e essa própria elite vai se beneficiar disso. Afinal, ela, em última instância, é quem financia grandes partilhas de drogas, tráfico de armas. Então nós estamos em uma situação de perda de espaço total nessa disputa sobre a questão da violência.
IHU On-Line – Como romper com essa estrutura criminosa entre tráfico, Estado, polícia e milícias?
José Cláudio Alves – O nosso cenário está cada vez mais com uma disputa de subjetividade e individualidade, e não estou percebendo como alterar isso na lógica mais macro, que é a lógica política macro de eleições, de modificação da mídia empresarial. Nós que estamos nisso há muito tempo vemos que se fechou, não tem mais como romper. A única saída que existe para nós — e nisso eu tenho apostado — é em experiências em que as pessoas conseguem olhar na cara ou no Facebook, mas que se consegue estabelecer um canal de diálogo fora desse que a grande mídia empresarial e a estrutura política criam. Eu tenho debates com a população diretamente nas áreas que me chamam para ir até lá.
Estou participando do Fórum Grita Baixada, que é um movimento criado pela Diocese de Nova Iguaçu, mas que envolve Igrejas Evangélicas, Associação de Moradores, vários grupos. Nesse grupo, um membro da Câmara de Vereadores de Nova Iguaçu, que é envolvido diretamente com o crime organizado, foi fazer parte desse Fórum e chegou lá para pedir ajuda. Então, ele entrou em um Fórum em que as pessoas têm consciência de que é disputado também por esses segmentos. Isto é, eles querem respaldo também dentro desses grupos políticos que atuam nas cidades. Eu estava lá debatendo com eles em outra direção, e é uma disputa ombro a ombro. Hoje o determinante dessa disputa de projetos do Rio de Janeiro é a disputa micro, capilar.
Capilaridade
Capilaridade hoje de penetração em cada área, em cada comunidade de grupos de diferentes origens, pode ser de grupos religiosos, grupos culturais, grupos ligados diretamente à questão da educação das escolas ou diretamente ligados a grupos que atuam na área da saúde, já peguei grupo de jovens que querem entender, que querem saber mais. É uma disputa que se dá nesse campo e é nisso que eu acredito, é isso que me mantém vivo. Nós acreditamos em uma utopia, um sonho de cidade, de país ou de nação que agora vai viver um de seus momentos mais dramáticos, que são esses movimentos do capital acelerado e intenso que vai se deslocar agora para este país e ele tem um poder extremo e absurdo de apoio estatal, de apoio bélico, de apoio midiático. Para nós conseguirmos algum avanço eleitoral, é preciso dedicar muito mais tempo nesse embate micro, nesse embate de subjetividade.
Jovens
Nós avançamos e somos agora especialistas em falar sobre polícia, mas não avançamos nada em relação aos jovens que estão no tráfico. Por exemplo, o jovem que está exposto no Facebook, e apaga a face dele para não ser identificado, mas é cooptado por uma subjetividade que dá a ele poder, sexualidade e sensualidade, porque ele tem mulheres, dá a ele ostentação desse poder pelo aparato bélico, dá a ele formas de reconhecimento dentro da comunidade como liderança. Isso permite construir um conjunto “positivo” e vai desenvolver a cultura do funk, e onde tem, também, o trabalho da venda das drogas; então esse cara se torna um facínora que deve ser eliminado e isso é a maior estupidez. Esse jovem tem que ser tratado como alguém a ser compreendido e ser estudado tanto quanto um policial deve ser estudado, só que a comunidade acadêmica, a mídia como um todo não faz isso. Ela simplesmente trabalha com a lógica da segregação e eliminação desses jovens e enquanto não for compreendida a sua subjetividade na positividade gerada pelo crime organizado, ele continuará sendo eliminado, vitimizado. O jovem é a vítima e o réu de si mesmo, e nós continuaremos perpetuando essa estrutura. Esse jovem tem que ser compreendido na sua lógica. E ele tem de ser reconhecido como um sujeito daquele poder que ele construiu. Por mais que seja um sujeito manipulado, por mais que a estrutura do crime organizado seja muito mais ampla que o Estado, ele precisa ser reconhecido nesse jogo. Se não for reconhecido, ele é um ‘matável’, ele é um eliminável, é um invisível que vai ser trucidado, como se faz na lógica de combate ao terrorismo atual, que está se perpetuando no Brasil.
A partir desta minha análise, as pessoas vão me chamar de defensor de bandido, mas os defensores de empresários criminosos, de políticos criminosos que carregam meia tonelada de cocaína dentro dos helicópteros, esses já têm os seus defensores, que é a Justiça brasileira. Nesse sentido, eu até me orgulho de ser o defensor de “traficantezinho pé de chinelo” que vai ser executado. Eu me orgulho porque o padrão de defensoria do conjunto maior do crime organizado no Brasil é muito superior.
Esses pequenos traficantes são eliminados diariamente, são executados, não têm ninguém que os defenda, ninguém sabe quem eles são, eles não têm voz, não têm face, são tratados como terroristas e serão executados. Daí a classe média do Rio de Janeiro vai vir em cima de mim, dizendo que sou defensor de bandido, que sou bandido tanto quanto eles. Irão até me acusar de apologia ao crime, simplesmente porque quero entender a subjetividade de um jovem que vai ser morto. Eu quero entender o que faz um cara desses entrar para o crime, o tráfico, para essa estrutura. Esses jovens não são iludidos, enganados, não são otários. Eles constroem suas vidas a partir dessa estrutura do tráfico e do crime e preferem trocar o resto da vida deles por dois anos de trajetória de poder numa comunidade dessas. Quem são esses jovens?
Eu não quero entender o lado político da negociação do conflito, o lado do controle social, o lado da política. Estas questões já estão numa direção colonizada pela dimensão política, midiática, hegemônica, que domina o Rio de Janeiro hoje. Eu quero ir para outro lado, onde ninguém olha, onde ninguém vê.
IHU On-Line – O senhor já tem alguma percepção acerca dessa subjetividade dos jovens que está tentando compreender?
José Cláudio Alves – Percebo que sou absolutamente ignorante e colonizado também por esta estrutura hegemônica. A minha linguagem, quando eu me aproximo dessa lógica, ainda é muito marcada por esta linguagem que vem dessa estrutura. Então, às vezes me pego falando, por exemplo, de inclusão. Às vezes vem essa palavra, que é uma palavra de moda e absolutamente controlada. Assim como a palavra sustentabilidade, a palavra inclusão virou um mote que serve para tudo, inclusive para exclusão e eliminação também. E quando falo em inclusão, estou falando que queria que eles fossem tratados como jovens e tivessem reconhecimento dentro da sociedade. Quando me expresso assim, estou negando que eles estão justamente reagindo, de uma forma que eu não percebo, a essa lógica de inclusão. Eles foram incluídos, sim, mas em uma determinada dimensão que para eles deixou de existir ou não é mais significante ou, ao contrário, expressa, para eles, o que querem evitar. A forma como eles foram incluídos até agora não será alterada por uma nova inclusão. Você teria de pensar a radicalidade de uma subjetividade que não se percebe mais nessa sociedade, e que opta por uma radical obtura, traída por uma lógica absolutamente extinta da lógica atual.
A sensação que me dá é de que estes jovens estão numa estrutura acoplada, que está vinculada à estrutura formal. Eles vivem e convivem nessa estrutura paralela. Então, a impressão que tenho é de que eles vivem num universo paralelo.
Eu não tenho, ainda hoje, a capacidade de comunicação ou de linguagem que possa me trazer essa estrutura. Ela ainda é algo que não consigo entender. O meu instrumento de leitura desses jovens é muito pobre, e tenho que aprofundar a minha aproximação com eles. Mas não sei se vou chegar a eles, porque nesses lugares em que estou indo a violência aumentou muito por conta do deslocamento do tráfico para a Baixada. Então, há uma conjuntura muito mais difícil agora. Estou próximo a chegar aos parentes e aos familiares deles, para que me falem qual é a visão que têm dos seus familiares envolvidos diretamente com o tráfico. Claro que a visão deles não é a visão dos jovens.
IHU On-Line – A segurança pública do Rio, tal como é realizada, causa impacto em outras regiões do Brasil?
José Cláudio Alves – Sim. O Rio de Janeiro é a grande vitrine do país. Sempre foi. Não é à toa que os jogos vêm para cá, não é à toa que os megaeventos vêm para cá. Eles não foram para São Paulo ou para Brasília, Porto Alegre ou Belo Horizonte.
O Rio é essa expressão de que tudo que ocorre aqui tem uma carga simbólica, expressiva e comunicacional para o resto do país. E não é à toa que tudo isso está se dando na cidade do Rio de Janeiro: aqui é o cenário, aqui é o palco onde ocorre também esse movimento de vinda de capital, de resistência ao capital, de entrada do capital criminoso, do Estado organizador corrompido e corrompedor. Tudo que se desloca aqui vai servir de caixa de ressonância para o país como um todo. Nunca tive dúvida disso. Com a política de execução sumária foi assim, com os grupos de extermínios da Ditadura Militar foi assim, pois eles iniciaram aqui, foram para o Espírito Santo e se deslocaram para o país como um todo. A resistência à Ditadura Militar também aconteceu aqui, com forte expressão na Baixada Fluminense. Tivemos na Baixada Fluminense o bispo Dom Adriano Hypólito, um homem que nunca se calou diante da Ditadura, que denunciou José Ribamar Zamith, que à época era Comandante da Vila Militar e foi sequestrador e torturador de Dom Adriano. Aqui também tivemos uma política de execução nefasta, porque foi aqui que as execuções sumárias sempre ocorreram. Passado o período da Ditadura, agora o Rio de Janeiro faz a política da UPP que atinge a Baixada Fluminense de forma nefasta, porque há um deslocamento de toda a massa criminosa para a Baixada. Por massa criminosa, subentende-se: traficantes de facções e policiais envolvidos com o tráfico. Ações como essa servem de modelo para o país como um todo no fortalecimento da polícia de recrudescimento, uso das forças armadas, etc.
Modelos como esse podem ser implementados em outras partes do país, já que o Rio de Janeiro abre a porta e antecedentes para isso. Não é à toa que Maceió, Recife, Salvador são os grandes expoentes da violência urbana do Rio de Janeiro. O número de homicídios dessas cidades explodiu nos últimos meses, no último ano, sobretudo, em função também de um recrudescimento da lógica de segurança pública, que copiou modelos do Rio de Janeiro. Estas cidades só não têm ainda uma política de ocupação de UPPs tão nítida, tão clara. Essa lógica também migra para cidades como Belém, cidades minúsculas dentro do Amazonas. Cidades insignificantes agora têm um potencial de execução sumária absurdo. Está ocorrendo, portanto, um deslocamento deste modelo de confronto aberto e de disputa pelos negócios do tráfico dentro dessas áreas, as quais podem ser identificadas como a nova fronteira do crime organizado dentro do país. Então, o Rio de Janeiro sempre influenciou a política de segurança pública dos demais estados e irá continuar influenciando e sinalizando como serão as próximas etapas do crime e da segurança pública dentro do país.