Rio On Watch – Foi no domingo, dia 30 de março, que a Polícia Militar oficializou sua ocupação no Complexo da Maré, um dos maiores complexos de favelas no Rio, com 16 comunidades e mais de 130.000 habitantes. Segundo o Google News, 270 reportagens sobre o evento apareceram na mídia internacional por jornais e portais espalhados pelo mundo inteiro. A cobertura da AFP–publicada pela Al Jazeera, Yahoo!, China Post, a australiana news.com.au e muitas outras–relata: “A operação, realizada rapidamente logo ao amanhecer, foi a última tentativa para expulsar quadrilhas de traficantes da famosa favela da Maré, paraíso do crime organizado e um dos lugares mais perigosos da cidade”. A reportagem descreve a operação policial e faz menção às drogas apreendidas, a problemas de segurança durante a Copa do Mundo e às UPPs do Estado. O relato da Yahoo!, que dedicou somente 71 das 624 palavras do artigo aos moradores da Maré, declarou que os moradores se mostraram irritados com as forças policiais e com a presença de jornalistas: “Poucos quiseram falar com jornalistas”.
Apesar deles terem evitado entrevistas com jornalistas estrangeiros, os moradores da Maré não mantiveram silêncio. Uma onda imensa de comentários, observações, denúncias e frases de esperança foram compartilhadas em redes sociais usando os hashtags #OqueaMarétem, #dedentrodaMaré e #MaréVive. As publicações foram coletadas e divulgadas pelas páginas Maré Vive e Favela Fiscal da comunidade no Facebook, a primeira tendo sido criada no dia 28 de março especificamente para compartilhar as reações dos moradores à ocupação.
A operação policial na Maré antecipou-se por mais de um ano, iniciando-se no dia 21 de março. Na semana que antecedeu a ocupação oficial e o espetáculo midiático de domingo, vários abusos e mortes foram denunciadas, incluindo a de um jovem de 18 anos de idade, levado para um beco e morto pelo BOPE no dia 27 de março. A ONG Redes de Desenvolvimento da Maré publicou um relatório, no dia 28, demarcando violações. Dentre essas estiveram relatos de policiais espancando e trancando um grupo de rapazes em um quarto–ameaçando explodi-lo–e o BOPE invadindo casas para dormir e tomar banho.
Um dos aspectos mais controversos da operação da Maré tem sido o mandado coletivo autorizado pelos tribunais no sábado, 29 de março. O mandado, de legitimidade legal altamente questionável, teria justificado a invasão de qualquer casa pela polícia. Essa atitude indignou os moradores da Maré, que publicaram no Facebook: “Mandado coletivo é uma piada. Invenção preconceituosa e irresponsável de quem não respeita a comunidade”. Outro morador desabafou: “ESTADO DE EXCEÇÃO: favelados não tem direitos. Na Maré, a Constituição e a inviolabilidade do domicílio não valem!”.
Apesar disso e da operação militar iminente, a noite de sábado foi como sempre festiva na Maré, com um evento de forró na rua principal da Vila do João e com samba no Museu da Maré. Um fotógrafo comunitário postou: “A Maré não tá nem aí pra ocupação, seus moradores estão em festa, não pela ocupação e por sempre ter estas festas que são um clichê em nossas comunidades”.
A operação militar começou nas primeiras horas da manhã de domingo. As páginas da comunidade no Facebook e no Twitter tiveram atualizações frequentes sobre o avanço da operação, que incluiu incursões de tropas de choque na Vila do João, veículos blindados em Timbau, invasões de casas em Nova Holanda e helicópteros do Exército voando muito perto de casas. A Maré Vive divulgou que um homem de 81 anos foi preso em Timbau. A Favela Fiscal relatou uma denúncia de que a polícia atacou um grupo de crianças no Baixo do Sapateiro. No final dessa mesma tarde, um jovem de quinze anos foi baleado e morto e dois outros adolescentes foram feridos em um tiroteio entre as comunidades do Baixo do Sapateiro e Nova Holanda. Notícias de outra morte, mais feridos e abordagens ilegais foram relatadas em páginas comunitárias.
A maioria dos moradores decidiu não se arriscar fora de casa, por sua vez assistindo em suas próprias televisões toda a operação que acontecia do lado de fora de suas portas. Muitos criticaram a cobertura sensacionalista da Globo. Uma moradora que assistiu à reportagem escreveu: “Tô me sentindo figurante de uma novela que nunca passou na Globo”.” Outro telespectador comentou: “Essa foi demais… A plim, plim disse ainda agora que os moradores da Maré podem sair de casa para ‘interagir com os cavalos’ da polícia militar… tá de sacanagem né!”
Até a tarde de domingo a situação teria aparentemente se acalmado e, como nas ocupações de outras favelas, as primeiras empresas que entraram foram as de telecomunicação. A Maré Vive publicou: “Barracas da Claro TV e da Sky já foram montadas no Pinheiro. Esse é o tom da ‘pacificação’ e da nossa entrada no Estado de Direitos–resumido pra nós apenas ao direito de consumir”.
Muitos comentários online mostraram que a maior demanda da Maré é de uma melhoria de serviços básicos. Um morador escreveu: “Pra quê esses carros de guerra aqui na Maré? Nossos impostos sendo utilizados para a espetacularização do Estado, para a propaganda política/midiática comercial e a criminalização da pobreza. Esses milicos poderiam ajudar a melhorar o asfalto das comunidades […] ao invés de ficarem exibindo e gastando combustível com esses tanques. Poderiam trazer material de construção para reformar as casas, ao invés de exibirem esses fuzis e essas feições de psicopatas. Poderiam montar hospitais comunitários equipados definitivos, com atendimento rápido e efetivo, ao invés desses centro de comando para matar. Mas pensar isso é uma utopia tremenda”.
O que marcou esses comentários foi uma afirmação da identidade e da história de lutas e conquistas da Maré. A grande maioria das reportagens sobre as ocupações policiais não tem representado as amplas diferenças e identidades culturais únicas a cada comunidade. Pelo contrário, elas se baseiam na narrativa generalizada e no estereótipo da favela. Os comentários de moradores na Internet contrariam essas suposições, especialmente considerando a sociedade civil vibrante da Maré e as suas iniciativas culturais.
Um morador escreveu: “Não clamamos por paz, pois nunca vivemos em guerra! Vivemos sim… sempre sob o descaso das autoridades e do poder público e mesmo com tudo isso temos luz, água, esgoto, coleta de lixo e outros serviços básicos tudo pela luta da comunidade unida, resistente e forte. Povo lindo que já ocupa esse espaço desda da década de 40?.
Outros mostraram uma ponta de esperança, publicando, por exemplo: “Esperamos e torcemos para que todos os serviços públicos básicos sejam oferecidos, que tenhamos o direito de ir e vir como sempre tivemos, que os policiais hajam dentro das leis e que tenham paciência até que sejam aceitos, se assim for, pois não é uma cavalaria e um caveirão lotado de crianças que vai mudar o pensamento de uma comunidade massacrada ha décadas“.
Desde domingo, houve relatos de que a presença policial havia diminuído e que alguns pontos de venda de drogas teriam sido reinstalados em algumas partes do complexo. Na segunda-feira, o Estadão informou que não havia presença policial nas comunidades da Praia de Ramos e do Parque Roquette Pinto, ambas controladas por milícias. As atividades da milícia não foram interrompidas.
Ativistas comunitários temem a repressão policial nos próximos meses–especialmente com a chegada de forças do exército–e estão se unindo em uma série de tentativas de resistência. A Maré Vive divulgou uma nota na quarta-feira, dia 02 de abril, assinada por 17 organizações comunitárias e de direitos humanos que estão pedindo por uma união maior: “Sabemos que este é só o começo de toda uma onda de opressão através da política de extermínio e militarização nas favelas. É imperativo o fortalecimento da resistência”. O Observatório de Favelas e outras organizações da sociedade civil organizaram uma audiência pública com o secretário de Segurança do Estado, José Mariano Beltrame, na quinta-feira, 03 de abril, na Maré. Os moradores também organizaram um dia de ocupação cultural na comunidade do Parque União na Maré, juntando música, arte e protesto no sábado, 05 de abril. Com a vibrante sociedade civil e cultural da Maré, só podemos imaginar que tais eventos e questionamentos ganharão força nos próximos meses.