“A decisão política de ocupar a Maré, acordada nos três níveis de poder do Brasil – governos municipal, estadual e federal – não visa libertar e promover a plena cidadania de 130 mil moradores do Rio vivendo no Complexo da Maré”. O comentário é Cândido Grzybowski, sociólogo e diretor do Ibase em artigo no Canal Ibase. Eis o artigo
IHU On-Line – O Complexo da Maré é um denso território onde vivem mais de 130 mil pessoas, auto-organizadas em dezesseis favelas. Estas existem porque seus moradores resistem à exclusão da cidadania e lutam pelo direito de ser parte da cidade do Rio de Janeiro. Mas será que a nossa cidade é republicana e democrática o suficiente para se estruturar segundo os direitos civis de liberdade e igualdade de todas e todos, sem discriminações, respeitando e valorizando a genial diversidade que nos caracteriza? Afirmo aqui o que muita gente do “asfalto” sente e pensa sobre o Complexo da Maré: um lugar perigoso, mas de passagem obrigatória, pois artérias fundamentais de mobilidade urbana –Avenida Brasil, Linha Vermelha e Linha Amarela – cruzam ou circundam o território. É simbólico que o Complexo da Maré seja também conhecido como “Faixa de Gaza”.
O fato é que a população do Complexo da Maré sempre dependeu mais de si mesma do que da atenção de políticas públicas, como é seu direito cidadão. Virou, por isto mesmo, presa fácil de milícias privadas e facções de traficantes, que estabeleceram a sua lei armada como norma para o conjunto e base para seu negócio. A Polícia, quando não conivente com o crime e dele tirando vantagens, sempre viu o território das favelas como espaço inimigo a ser simplesmente contido. A exclusão e segregação social e territorial das favelas com o asfalto erigiu muralhas simbólicas, mas fortemente armadas na nossa cidade. Parece que a política de segurança vigente é mais para proteger a cidade das favelas e seus habitantes do que garantir direitos iguais de segurança, de ir e vir, de não sofrer violência para todas e todos que compartimos a cidade do Rio de Janeiro.
Agora se anuncia a “ocupação” do Complexo da Maré com apoio da Forças Armadas. É bem simbólico ser “ocupação” o que poder público escolheu fazer nestas estratégicas favelas.
Trata-se de “ocupação” real, com blindados, armamento pesado, helicópteros e todo o arsenal de guerra. Palavras são palavras, mas carregam intencionalidades, sentidos, transmitem concepções e são parte de modos de ver a realidade. No caso é “ocupação militar” de parte favelada da cidade, aquele lugar de nossa passagem obrigatória, e não “libertação” de território urbano de traficantes e milicianos para promover a cidadania. Trata-se de ocupar militarmente um território de 130 mil habitantes – que clamam por dignidade e justiça, por direitos de ser cidade também – para proteger outros, de fora das favelas. Aliás, não se esconde o tempo de duração da “ocupação” militar da Maré… até depois da Copa do Mundo de Futebol. É evidente que a lógica excludente e segregadora vigente em nada vai mudar neste curto período.
Digo e repito se for necessário: a decisão política de ocupar a Maré, acordada nos três níveis de poder do Brasil – governos municipal, estadual e federal – não visa libertar e promover a plena cidadania de 130 mil moradores do Rio vivendo no Complexo da Maré. Pode até significar um alívio e ser saudado por moradoras e moradores o fato de não ter que conviver no cotidiano imediato com traficantes e milicianos. Sorte que são as Forças Armadas a ocupar o território e não só a Polícia Militar do Rio. Mas que acontecerá após, quando a força de ocupação se recolher aos quartéis?
Mas tudo isto ainda pode ser mudado. A ideia de “pacificação” – melhor seria libertação – é uma grande proposta. Precisamos que nosso bem comum, a cidade do Rio de Janeiro e toda a Região Metropolitana, seja de fato um bem comum, de todas e todos, território de vivência plena da cidadania na nossa diversidade, sem discriminações e segregações, com dignidade e paz. Juntemo-nos para cobrar isto de nossos governantes. Esta é uma tarefa de todos que aqui vivemos. Devemos afirmar em alto e bom som que as favelas são cidade, são territórios de cidadania, que devem ser integrados à cidade e potencializados enquanto tais, naquilo que são e que seus moradores e moradoras reivindicam como legítimo direito. É pouco, muito pouco, simplesmente mudar de forças armadas para a ocupação dos territórios.
O clamor é por liberdade, participação, livre circulação, direitos por educação de qualidade, de saúde, de moradia, de lixo e esgoto recolhidos, de poder ter um endereço e anunciá-lo sem ser discriminado na rua, no trabalho, no órgão público. Ser favelado é ser uma pecha, mas sim ter uma identidade de quem sabe resistir e lutar por direitos. Acolhamos as favelas como força cidadã de transformação de nossa cidade em um território de convivência, compartilhamento e cuidado, bom de se viver para todas e todos. Temos importantes eleições neste ano para dizer que não queremos ocupações e sim libertações de privações, violências e negações de direitos, de privilégios de ricos e poderosos. Segurança sim, como direito de todo mundo, das favelas e do asfalto.