Meses antes de morrer de forma trágica, Eduardo Coutinho registrou novos encontros com integrantes das Ligas Camponesas, com a viúva de João Pedro Teixeira, Dona Elizabeth, e com filhos e netos do líder assassinado
Maria do Rosário Caetano, Brasil de Fato
Um parricídio marcou de forma trágica a perda do maior documentarista brasileiro, o paulistano Eduardo Coutinho. Em 2 de fevereiro último, seu filho Daniel o matou a facadas, num surto de esquizofrenia.
Quem assistir a dois documentários inéditos deixados pelo cineasta – A Família de Elizabeth Teixeira e Sobreviventes de Galileia – no Festival É Tudo Verdade ou acessar o DVD de Cabra Marcado para Morrer, novo lançamento do Instituto Moreira Salles, saberá que um fratricídio marcou a vida de dona Elizabeth Teixeira, a mais importante personagem de Coutinho.
Num determinado momento de A Família de Elizabeth Teixeira, documentário de 63 minutos, ficamos sabendo que Peta (João Pedro Teixeira Filho) matou o irmão José Eudes. E por razão semelhante à que gerou a morte de João Pedro Teixeira, líder da Liga Camponesa de Sapé, em 1962: luta pela terra e organização de lavradores.
Saberemos, também, no mesmo filme – e pela voz de Marinês Teixeira, filha de dona Elizabeth e do líder camponês assassinado – que o avô materno dela, Manoel Justino, foi um dos responsáveis pela morte do genro. No épico Cabra Marcado para Morrer, Coutinho nos mostrava a complexa relação entre João Pedro e o sogro.
Dono de um pedaço de terra na região de Sapé, na Paraíba, Manoel Justino não ficou satisfeito com a escolha da filha Elizabeth, moça branca, que se casou com João Pedro, “moreno escuro”.
O casal teve 11 filhos e morou em muitos sítios e cidades até assentar-se numa parcela da terra de Manoel Justino. Só que João Pedro começou a militar na organização dos trabalhadores do campo. Tornou-se líder da Liga Camponesa de Sapé para profundo desgosto do sogro.
Sob liderança do fazendeiro Agnaldo Veloso Borges, encomendou-se a eliminação do incômodo organizador dos trabalhadores. O que foi feito, por dois policiais, em abril de 1962. Agnaldo, que era quinto suplente na Assembleia Legislativa da Paraíba, viu o titular da vaga e quatro suplentes renunciarem para que ele tomasse posse e adquirisse imunidade parlamentar. Depois do triunfo do golpe militar de 1964, os dois policiais foram “inocentados”.
Tragédia política e familiar
Eduardo Coutinho conheceu Elizabeth Teixeira em 1962, quando, a convite da UNE Volante (braço cultural do CPC-UNE – Centro Popular de Cultura da União Nacional de Estudantes), foi ao Nordeste realizar documentário sobre movimentos organizados de trabalhadores.
Voltou para o Rio de Janeiro fascinado pela história da viúva do líder camponês, mãe de vasta prole. Escreveu, então, o roteiro de Cabra Marcado para Morrer.
No começo de 1964, foi com sua pequena equipe (na qual estavam o fotógrafo Fernando Duarte e o assistente de direção Vladimir Carvalho) para Sapé. Lá, mobilizou camponeses como “atores” de seu filme.
Dona Elizabeth interpretaria a protagonista feminina, a viúva do líder assassinado pelo latifúndio. Ou seja, ela mesma. João Mariano, o único de fora da Liga de Sapé, interpretaria João Pedro. Quando as filmagens estavam para começar, um conflito por terras antagonizou trabalhadores e proprietários, deixando saldo de muitos mortos.
Coutinho e sua equipe viram que ali, na paraibana Sapé, seria impossível filmar a história de João Pedro Teixeira. Procurou, então, locações em Pernambuco, junto à Liga Camponesa de Galileia, na região de Vitória do Santo Antão.
Em março de 1964, as filmagens engrenaram. Só que no dia 31, com o triunfo do golpe militar, o pior aconteceu. A equipe de filmagem, vista como extensão da subversão cubana no Nordeste brasileiro, passou a ser perseguida. Coutinho e equipe fugiram para o Rio. A câmera de filmagem foi escondida sob uma pedra, em Galileia. Quando descoberta, o Diário de Pernambuco a enumerou como parte do “arsenal bélico” dos subversivos que doutrinavam os camponeses em nome do comunismo.
Salvaram-se, daquelas primeiras semanas de filmagem, apenas os negativos da trama ficcional, pois, encontravam- se em laboratório de revelação, no Rio de Janeiro.
Com o triunfo do golpe, dona Elizabeth passou oito meses presa. Parentes dela e de João Pedro Teixeira (avós e tios) dividiram os nove filhos do casal. Nove, porque dois deles, naquela altura, já estavam mortos. Uma, Marluce Teixeira, tomara arsênio, meses depois da morte do pai (ainda em 1962). Outro fora vítima de um tiro na testa. Dona Elizabeth nada mais soubera do destino deste filho, se morrera, se sobrevivera. No filme, vemos foto dele com um balaço no meio da testa.
Epopeia camponesa
Em 1981, Eduardo Coutinho resolveu retomar, em registro documental (pois o Cabra original era uma ficção baseada em fatos reais), a épica das Ligas Camponesas, centrada na história de dona Elizabeth, seus filhos e nos lavradores de Sapé. Regressou ao Nordeste.
Encontrou dona Elizabeth vivendo, na clandestinidade, na cidade de São Rafael, no Rio Grande do Norte. Numa das mais belas cenas do filme – lançado no 20º ano do golpe militar de 1964 – vemos a viúva de João Pedro, sob o nome falso de Marta Maria da Costa, lavando roupa num rio pedregoso, junto com dezenas de mulheres. Com ela, apenas um dos nove filhos restantes (Carlos, o caçula, que tinha dois meses quando o pai foi assassinado).
Além de dona Elizabeth, alma do filme, Coutinho localizaria e ouviria oito dos filhos dela, espalhados pelo Nordeste, pela Baixada Fluminense e, um deles, Isaac, estudando Medicina em Cuba.
Abrahão, o mais velho, jornalista em Patos, na Paraíba, imporia condições para que o filme fosse feito e tentaria controlar o discurso da mãe.
Marta Teixeira, a filha mais velha, estaria em seu ofício profissional, o balcão de um bar, na periferia do Rio de Janeiro.
Marinês, que aos 12 anos deixara a casa dos avós para tomar conta dos filhos de Marta, aparecia já moça feita.
Nevinha (Maria das Neves) mostraria a filha pequenina, de nome Juliana Elizabeth Teixeira.
José Eudes trabalhava numa firma no Sudeste e via o cineasta e sua equipe com desconfiança.
Peta, criado pelo avô materno, Manoel Justino, parecia tão desconfiado quanto o velho, ágil e operoso, aos 83 anos. Nenhum dos dois parecia interessado em relembrar o passado.
Carlos, o caçula, o único que viveu com a mãe na clandestinidade potiguar acompanhava os depoimentos de dona Elizabeth com brilho nos olhos. Nada lembrava do pai, pois era um bebê quando ele fora assassinado.
José Eudes, no Cabra, evocava um irmão, de nome Paulo, que seria “motorista numa firma” e que “era muito revoltado com tudo que acontecera à família e bebia muito”. Nada mais saberíamos de Paulo.
Novos encontros
Ano passado, Eduardo Coutinho voltou à Paraíba para reencontrar dona Elizabeth. E procurou pelos filhos dela. Cinco dão seus depoimentos ao novo documentário (A Família de Elizabeth Teixeira): o médico Isaac, que voltou ao Brasil depois de formar-se em Cuba, o caçula Carlos, que continua calmo e de pouca fala, e as filhas Marta, Marinês e Nevinha. Abrahão morreu. Peta matou José Eudes.
O cineasta foi também a Pernambuco, para reencontrar os sobreviventes de Galileia. Só dois estão vivos: Cícero Anastácio da Silva e João José do Nascimento, o Dão da Galileia.
Coutinho sempre dizia que permaneciam na edição final de seus filmes aqueles personagens que sabiam conversar, contar boas histórias. Nos dois novos documentários, realizados como extra do DVD do Cabra, quem soube contar as histórias com mais espontaneidade, franqueza e até humor foram Dão da Galileia, Marinês e Juliana Elizabeth Teixeira, filha de Nevinha.
Dão, que já brilhara em Cabra Marcado para Morrer, ao narrar para a câmera o que se passara em Galileia depois do triunfo do golpe militar, é visto em depoimento ao pernambucano Cláudio Bezerra, cineasta e professor universitário, autor de tese de doutorado sobre o cinema de Eduardo Coutinho.
Com raro senso de humor, Dão conta de uma viagem feita a Cuba, via Europa Ocidental, até chegar à Tchecoslováquia, de onde, aí sim, seguiria para Cuba. O depoimento, colhido em 2007, encantou Coutinho e encantará a quem assistir ao novo filme.
Dão, vale lembrar, já fascinava a todos em Cabra Marcado para Morrer, ao narrar o interrogatório de soldados do Exército que foram ao sítio onde morava investigar (e prender) “camponeses ligados aos cubanos”. E recolher as armas do “foco subversivo”. Os militares insistiam em saber como era a fala dos “cubanos barbudos”, se falavam diferente. Afinal, notícias diziam que oito presos no território das filmagens eram estrangeiros e falavam espanhol. E que preparavam a subversão exibindo um filme doutrinário chamado Marcado para Morrer.
– Como eles falavam “bom dia”?
– “Bom dia”.
– Mas não tinham sotaque, não falavam diferente?
– É – concordava Dão – eles falavam como falam os cariocas, né, com um sotaquezinho, mas falavam igualzinho a gente.
O mesmo Dão devolvera a Eduardo Coutinho dois livros deixados na fuga, naquele primeiro de abril, quando a notícia do golpe chegou à equipe de filmagem. Um exemplar de Histórias de um Manuscrito – Kaput, do italiano Curzio Malaparte, e La Iluminación Cineatografica, livro (e manual) de cabeceira do jovem Fernando Duarte, diretor de fotografia do Cabra ainda ficcional.
Cícero, já octogenário, recebe Coutinho com um abraço e um comentário bem- -humorado: “Tá acabadinho, velho que nem eu”. Surdo, relembra algo das filmagens e conta histórias de perdas pessoais.
A saga continua
Se os filhos homens de dona Elizabeth não herdaram a eloquência da mãe, as filhas e uma neta o fizeram. Marta relata história trágica: mãe de quatro filhos, dois foram batizados Leno e Lilian (homenagem à dupla da Jovem Guarda). Leno era office-boy na Tigre e foi assassinado a tiros. Outro filho também morreu de morte matada.
Da mãe, Dona Elizabeth, lembra pouco, pois fora dada ainda criança aos avós. E depois “tomada” de volta pelo pai. Diz que sofreu muito. O assassinato do pai veio tumultuar ainda mais a vida dos Teixeira. Ela migrou para a Baixada Fluminense e não quis saber mais da família. Mas quando nasceram os filhos, mandou buscar Marinês, para ajudá-la a cuidar nos afazeres domésticos.
Marinês ganha o maior dos destaques em A Família de Elizabeth Teixeira. Primeiro com a história da fuga da casa da irmã, ainda adolescente, para morar com um rapaz. Depois, narra a fuga da própria filha, de 19 anos, para Ribeirão Preto. Apavorada chamou a polícia, pois a moça não regressava. A PM disse que nada podia fazer, pois tratava-se de maior de 18 anos, que nenhum crime cometera. Até que a jovem ligou para avisar que estava com a namorada, no interior paulista, e que tudo ia bem. E Marinês contou também de sua amizade com os atores Othon Bastos e Martha Overbeck, pois fazia, há muitos anos, faxina na casa deles, no Rio. Mostrou fotos do casal de atores visitando sua modesta residência e falou que assistira, com muito prazer, à montagem de Dueto para um Só, por eles protagonizada.
Outro depoimento, este mais político, é dado por Juliana Elizabeth Teixeira, professora de História, na Paraíba. Juliana orgulha-se de carregar o nome da avó em seu próprio nome e luta pela preservação da memória da Liga Camponesa de Sapé. Zela pelo Memorial João Pedro Teixeira, criado para preservar a história do cabra marcado, pelo latifúndio, para morrer. E conta, com orgulho cívico, a história do avô aos alunos e aos que visitam o modesto museu.
A cineasta Beth Formaggini, parceira de Eduardo Coutinho em muitos de seus documentários, foi diretora de produção de A Família de Elizabeth Teixeira e Sobreviventes de Galileia. Ela vê estes dois filmes com imensa emoção, pois a perda recente do cineasta fez impregnar neles valor de filmes-testamento. Até porque a imagem e a voz de Eduardo Coutinho estão impressas na tela, em suas conversas com dona Elizabeth e os filhos. Ou abraçando o velho Cícero.
Beth emocionou-se ao ver documentário e ouvir de uma filha de João Pedro e dona Elizabeth a revelação clara de que o avô materno, Manoel Justino, participara do assassinato do genro. “No Cabra Marcado para Morrer” – constata – “sabíamos que o sogro odiava João Pedro. Agora, no novo documentário fica claro que ele fazia parte do grupo de fazendeiros que armou a emboscada para eliminar o líder camponês”.
Outro que ajudou Eduardo Coutinho nos novos filmes foi Cláudio Bezerra. O contato entre os dois se deu quando Cláudio procurou o cineasta para colher subsídios para sua tese de doutorado. Como Coutinho, o doutorando gravou depoimentos de dona Elizabeth e de Dão da Galileia.
“Ainda não vi os dois novos documentários, estou ansioso para ver”, conta ele, de Recife, enquanto adapta sua tese para publicação. “Vou lançá-la em livro ainda este ano”, promete, mas “livre de academicismos”.
Pena que Coutinho não esteja mais entre nós para assistir às novas sessões do Cabra, de Família e de Sobreviventes, frutos da épica camponesa de Sapé que teve nele o seu Homero. Ou, para ficarmos em exemplo brasileiro, vale registrar que Eduardo Coutinho fez pela memória das Ligas o que Euclides da Cunha fez, em Os Sertões, pela Guerra de Canudos. Na qual, também, camponeses lutavam pela posse da terra.
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Enviada para Combate Racismo Ambiental por José Carlos.
Até onde sei ainda não está disponível, Vera Lucia.
Também tenho interesse, e com certeza noticiaremos, quando tiver essa informação.
Bom fim de semana,
Tania.
Eu trouxe comigo da UNICAMP, durante o meu curso de Mestrado em Historia da Educação , uma cópia de ‘Cabra marcado para morrer’ QUE COSTUMO USAR PARA ILUSTRAR A TEMÁTICA DO REGIME MILITAR, enfocando o valor do papel de Elisabeth Teixeira, enquanto mulher, mãe, esposa e professora, sua resistência e capacidade de sobreviver sem perder o equilíbrio e a noção das coisas em meio à SUA TRAGÉDIA PESSOAL. Se puderem me enviar uma cópia ou link para que eu tenha o filme de Coutinho sobre a sua personagem, ficaria muito grata.
Profa. Vera Lúcia do Lago Souza