Desmilitarização das polícias: ‘A UPP é o ápice da militarização da segurança pública’

B5274495EB091C12E7B01C4781D28ED0EBFA636D49B236BDE03D44934ECEBB9D

Delegado da Polícia Civil no Rio de Janeiro, Orlando Zaccone, 49 anos, é implacável na crítica à militarização da segurança pública

Fábio Nassif – Carta Maior

“A própria imprensa dá muita ênfase quando ocorre uma ação letal da polícia no fato da vítima ter ou não antecedente criminal. Eu acho que essa cultura tem a ver com resquícios da escravidão e da permanência do racismo.”

Delegado da Polícia Civil no Rio de Janeiro, Orlando Zaccone, 49 anos, é implacável na crítica à militarização da segurança pública. Formado em jornalismo e direito, Zaccone ocupa há 14 anos este posto. É conhecido nos movimentos de direitos humanos e antiproibicionistas não só por ter as opiniões que tem sendo um policial, mas pelo seu esforço em diagnosticar as raízes do Estado autoritário que vivemos.

O delegado foi peça importante para desmontar a tese de que o ajudante de pedreiro, Amarildo de Souza, desaparecido no dia 14 de julho de 2013, havia sido morto por traficantes. Zaccone ajudou a comprovar que o morador da Rocinha havia sido pego por policiais militares da UPP (Unidade de Polícia Pacificadora).

Na entrevista concedida à Carta Maior, o delegado analisa a permanência dos resquícios de autoritarismo no Brasil, a “cultura do extermínio”, a farsa da “guerra às drogas” e arremata dizendo que não acredita “numa reforma da polícia sem uma ampla mudança na política que necessariamente passe por um movimento da sociedade”. Confira.

CM – Qual a importância da pauta da desmilitarização das polícias tendo em vista os 50 anos do golpe civil-militar no Brasil?
A importância está no fato de termos alguma permanência de um Estado autoritário após o processo de redemocratização. Uma das permanências, não a única, é a militarização da segurança pública. Mas nós temos que pensar como se constituiu esta permanência. Nós temos um artigo na Constituição que garante às Forças Armadas a responsabilidade pela segurança e pela ordem interna. Esse artigo foi negociado. O livro de Vladimir Safatle e Edson Teles, (“O que resta da ditadura” (Boitempo editorial), trabalha bastante este tema.

Isso é algo que não condiz com uma Constituição que se pretende democrática e cidadã pois não cabe às Forças Armadas cuidar da segurança interna. Mas houve todo um lobby, uma pressão política dos militares, para que este dispositivo fosse incluído na Constituição.

Esse dispositivo autorizou inclusive que um juiz em Volta Redonda, em 88, durante a greve dos metalúrgicos, solicitasse a intervenção das Forças Armadas, o que resultou na morte de alguns trabalhadores. Isso já com a Constituição cidadã. Isso é a prova viva que é justamente na Constituinte que se dá, através deste dispositivo e de outros, a continuidade neste processo de intervenção militar na área da segurança.

Neste mesmo livro há um conceito interessante: que nosso autoritarismo perpassa através do consenso. Tivemos vários processos de anistias e todas elas apontam para manutenção das elites no poder através de um paradigmático consenso que acaba excluindo setores importantes da população do processo político. Um deles foi a anistia política que resultou no processo Constituinte que manteve os militares com este poder. Este poder inicialmente permitia qualquer autoridade dos três poderes a requisitar intervenção militar. Tanto que um juiz em Volta Redonda requisitou. Depois isso foi alterado para os chefes dos poderes executivos.

De qualquer maneira o artigo continua em vigor na Constituição e essa mesma Constituição manteve a polícia militar como quadro auxiliar das Forças Armadas que reforça ainda mais este caráter militar.

A gente tem que compreender que este processo de militarização, do ponto de vista institucional, surge também desta ideia de anistia, consenso, e desta forma que o autoritarismo brasileiro vai se mantendo.

No Brasil os militares não quiserem perder totalmente o poder político. Aquela história de que os militares passaram o poder para os civis é conto da carochinha. Durante a Constituinte os militares tiveram uma forte influência, inclusive para garantir este dispositivo.

Outra relevância deste tema se encontra no plano internacional. São duas coisas diferentes: uma coisa é militarização da segurança pública e outra coisa é a segurança pública ser militar. A militarização é um fenômeno na qual as polícias passam a operar como força armada na segurança interna. Mas isso não significa que essas polícias estejam dentro da estrutura institucional vinculadas ao Exército. As polícias do mundo inteiro não são órgãos auxiliares das Forças Armadas, mas elas se militarizaram no seu modo de atuar. Então uma coisa é a estrutura organizacional que vincula polícias às Forças Armadas (que é o caso da PM). Outra coisa é a militarização da segurança pública, que pode ter polícias que não são militares – como no Brasil, a Polícia Civil e a Polícia Federal que atuam, talvez em algumas situações de forma mais militar do que a PM. São dois temas próximos que não podem se confundir.

Eu acho que desmilitarizar a polícia, ou seja, desde acabar com o estatuto militar até com a desvinculação das Forças Armadas, afastar de vez a possibilidade de intervenção das Forças Armadas na ordem pública interna, isso tudo é um tema que está sendo colocado hoje em pauta. Mas nós não vamos imaginar que com isso nós resolveremos o problema da militarização da segurança pública. Este tema é mais amplo e mais complicado, porque ele vai resvalar num projeto de controle social global, onde, por exemplo, você vê as Forças Armadas do Brasil sendo chamadas a intervir no Haiti. Na Europa e nos Estados Unidos estamos vendo cada vez mais as polícias atuarem como se fossem Forças Armadas, assim como as Forças Armadas passam a atuar como polícia. Isso vai além da questão de onde se colocam as polícias dentro da estrutura do Estado.

CM – Existe uma disputa do senso comum que tenta colocar que uma polícia desmilitarizada ou que uma lógica desmilitarizada seria caótica, desordenada e ineficiente. O que seria portanto uma polícia desmilitarizada?

Este é um problema grave. A ideia de que existem inimigos no âmbito interno é algo que vem sendo construído de forma a manter a lógica de que guerras podem acontecer internamente. Esta lógica do inimigo interno é o que viabiliza esta forma de atuar militarizada. A construção do “criminoso” – não de todos, mas daqueles que podem colocar em risco a sociedade – é algo inerente à própria estrutura dos estados ditos democráticos. Na teoria política, a construção da existência de um contrato social faz com que os autores que constroem esse conceito, identifiquem que alguns que não se submetem a este contrato a ideia de um inimigo que deve ser colocado num marco fora da cidadania.

Mesmo nos estados ditos democráticos, há a ideia de que aquele que atenta contra essa ordem, dita democrática, é inimigo da sociedade. Não se trata mais de inimigo de Estado. Então se cria a figura de um inimigo por natureza. Só pra dar um exemplo, na Segunda Guerra Mundial, os alemães sentavam com os ingleses pra fazer um diálogo. Na guerra os inimigos de Estado dialogam. Mas os alemães não sentavam com os judeus, porque este é um tipo clássico que era o inimigo por natureza que colocava em risco, para os alemães, não só o Estado nazista mas toda a sociedade.

Essa ideia de um inimigo da sociedade vai sendo incorporada. A “guerra às drogas” é criada em cima desta visão, de que existe ali aqueles que comercializam aquelas substâncias ilícitas, colocam em risco a sociedade e portanto precisam ser eliminados. Isso é o que legitima essa letalidade imensa e o sistema penal brasileiro.

A pesquisa da Anistia Internacional observou que em 2011, totalizando todos os países que tem pena de morte no mundo, só Rio de Janeiro de São Paulo produziu 42% a mais de mortes a partir de ações policiais (excluindo a China que não fornece seus dados). Muita gente questiona: por que se mata tanto no Brasil? E a grande pergunta é: quem é que morreu? Não é como o fato se deu.

Quando o caso Amarildo apareceu, levantaram: “o Amarildo é traficante ou não?” e isso, seguindo a lógica atual, resolve tudo. Sendo traficante está tudo legitimado. Porque existe uma autorização para matar esses “inimigos” da sociedade. Eu entendo que isso não pode ser considerado como defeito do sistema.

Em teoria política, todos os autores contratualistas trabalham com essa ideia de que a gente não vive numa sociedade democrática sem a constituição da figura do “não cidadão”. Como se trabalha esta lógica: o direito é só pra cidadãos. Quem não é cidadão, ou seja, aquele que rompe com o contrato de uma tal forma, não tem direito a nada, nem à vida. Por isso, se ele for traficante sua morte está legitimada. Por isso que os jornais sempre perguntam: “tem antecedentes criminais?”.

Pensando nesta lógica do Estado fica difícil você não imaginar uma polícia não militarizada. Aí tem também a lógica do extermínio e do encarceramento em massa.

Nós acabamos sendo laboratório de todas as experiência de exceção. Não é a toa que a UPP (Unidade de Polícia Pacificadora) ganha prêmio na ONU. Porque é um laboratório de exceção ter um território ocupado militarmente. Precisamos sair de um paradoxo pois há muitas pessoas conceituadas que defendem a desmilitarização da polícia e são a favor da UPP. A UPP é o ápice da militarização da segurança pública. Então não é só discutir a polícia. É discutir a sociedade e a política.

Alguns professores antes de apanharem da polícia na greve no Rio de Janeiro chamavam a polícia pra dentro das escolas pra tomar conta dos alunos. Não dá pra ter essas contradições.

CM – Diante desta nova conjuntura, onde ocorreram mobilizações de setores médios da sociedade mas também de setores mais excluídos e periféricos que inclusive se rebelam com alguma constância contra a violência policial, você acha que há uma tendência no próximo período de acirramento da relação entre manifestantes e polícia? Há uma maior possibilidade de descontrole considerando a Copa do Mundo e as Olimpíadas?

A tendência é de acirramento. Mas isso no mundo inteiro. Na Europa hoje isto está acontecendo. Os conflitos são maiores nos lugares onde esta tensão é maior. A tendência é essa porque a opção que se fez desta militarização da segurança pública, no sentido de fazer um controle militar de áreas pobres e pessoas pobres, não deixa dúvidas. É o que está sendo feito no Haiti.

O Mike Davis, que escreveu “Planeta Favela”, não tem bola de cristal mas ele dizia que os militares brasileiros que estavam indo ao Haiti não estariam em missão humanitária, mas sim estratégica. Treinando para atuação no Brasil. Dois anos depois o comandante de lá foi chamado para a ocupação do Morro do Alemão no Rio de Janeiro.

Agora, não dá para as pessoas quererem UPP que não seja militarizada porque o projeto da UPP é de militarização da segurança pública e de ocupação militar do território. As pessoas falam “dá pra corrigir a UPP, fazendo uma UPP social”. Balela! Isso não é novidade. Quando os militares tomaram o Araguaia colocaram o ACISO (Ação Cívico-Social). Levavam médicos, remédios, pra ganhar a população. Isso é tudo estratégia militar e não humanitária. Tem muita gente do campo progressista que cai nessas armadilhas de achar que junto com essas ocupações militares vai vir um benefício pra população. Aliás, este é o plano: usar essas ocupações pra “melhorar” as condições de vida da população local, através deste conceito de “vulnerabilidade” que ganhou destaque nos planos nacionais de segurança pública no Brasil. É sempre a ideia de relacionar “vulnerabilidade” – que a gente deve se arrepiar com este termo horrível – com violência e criminalidade.

Vinculando esses dois você garante a ideia de que nas áreas pobres você tem uma incidência maior de violência e criminalidade. E dizer isso é a mesma coisa do que dizer que o pobre tende a ser mais criminoso. Em cima deste discurso de “melhorar a vida das pessoas” que o poder exerce seu controle. No início esta população acreditou. As pessoas estavam batendo palma pro “Tropa de Elite 1” no cinema. E era um discurso de louvação à militarização. Isso contribuiu com o crescimento deste processo no Brasil.

CM – Você acha que o projeto da UPP é tão reconhecido internacionalmente porque ele combina a ocupação territorial militarizada com uma ocupação de empresas a partir de um discurso da “inclusão” via consumo dessas populações? 

Os negócios são pra viabilizar uma parceria público-privada neste projeto mas no sentido de garantir o apoio da mídia – porque esta vive dos negócios com estes anunciantes. Se aLight, a Net e os bancos estiverem satisfeitos, os meios de comunicação ficam todos satisfeitos. Tem um plano de nova reurbanização quando se tenta valorizar essas áreas. Inclusive as propostas da Prefeitura de dar títulos de propriedade são pra fazer com que a miséria efetivamente se desloque. E no caso do Rio de Janeiro isso é bem emblemático porque a proibição de construções nas encostas e a proliferação das favelas faz com que se tenha uma atenção maior ao Rio porque elas estão no meio do coração da cidade. A UPP então tem esse objetivo de reurbanização também. O pessoal do Comitê da Copa tem um estudo que já mostra a migração dos habitantes dessas áreas ocupadas para outros lugares.

Eu mesmo, quando saí da delegacia da Rocinha, pude observar que aquela violência mais pesada, em termos quantitativos e qualitativos, está migrando pra outras regiões da cidade. Isso não desaparece e sim migra pra outras regiões da cidade. Fazendo também com que a miséria mais extrema vá sendo empurrada para a periferia. O capitalismo tem essa capacidade de transformar pão em ouro.

CM – O Estado brasileiro, da forma como foi constituído, é capaz de abrir mão de uma polícia tão violenta? Quais concessões são possíveis de serem feitas por este Estado?

Eu não acredito muito que o Estado resolva tudo.

Existe uma cultura de extermínio no país. No Brasil ela ganha uma força muito grande para além das agências policiais porque ela está dentro do poder jurídico. Por exemplo, no meu doutorado eu estudei os pedidos de arquivamento dos autos de resistência. Tem uma pesquisa do Michel Misse que aponta que, no ano de 2005, 99% dos inquéritos de auto de resistência foram arquivados. Estes autos de resistência são legitimados pelo poder jurídico.

Ou seja, o policial faz o trabalho de apertar o gatilho mas depois o poder jurídico legitima isso. Eu fui ver que os fundamentos para arquivamento desses autos de resistência eram a condição do morto, local onde aconteceu, etc. Sequer o promotor relata que o cara estava com tiro nas costas. Apenas que foi uma troca de tiros na favela com gente que tinha antecedentes criminais. E a sociedade também legitima.

A própria imprensa dá muita ênfase quando ocorre uma ação letal da polícia no fato da vítima ter ou não antecedente criminal. Eu acho que essa cultura tem a ver com resquícios da escravidão e da permanência do racismo. A gente não revisita esse passado. Apenas comemoramos a abolição e não refletimos como contemplamos uma República que abarcou tantas coisas desta escravidão. Então, se a gente não mexer na questão cultural, não mudamos este quadro.

Eu ouvi outro dia um trabalhador falando que o rapaz que foi baleado na manifestação em São Paulo mereceu, por ser “vagabundo”. Ou seja, esse discurso está enraizado. Eu não acredito numa reforma da polícia sem uma ampla mudança na política que necessariamente passe por um movimento da sociedade. Talvez este tema da desmilitarização tenha ganho hoje grande atenção por conta das manifestações e por mais setores da sociedade terem sentido na pele o abuso policial. O que se fez com este rapaz, dizendo que ele tinha um estilete na mochila, é o que fazem com os autos de resistência o tempo inteiro.

Deixe um comentário

O comentário deve ter seu nome e sobrenome. O e-mail é necessário, mas não será publicado.