Belo Monte por um fio, por Claret Fernandes*

Foto: Atossa Soltani/ Amazon Watch/ Spectral Q
Foto: Atossa Soltani/ Amazon Watch/ Spectral Q

*para Combate Racismo Ambiental

A energia de Belo Monte, essa mercadoria central no capitalismo contemporâneo enquanto elemento de aumento da produtividade, vai-se embora pelo fio.  O minério do Pará vai pelos trilhos. Em Minas ele entra pelo cano. Destino? A mesma trilha colonial, que antes se fazia no lombo do burro e, hoje, se faz com tecnologia de ponta.

É tudo tão simples! É tudo tão claro! Não é ‘ideológico’ e partidário como se costuma dizer. É só um observador comum olhar o Brasil e ver os bens naturais, estratégicos à soberania do povo brasileiro, ser escoados para fora sob a batuta do capital.

O destino da energia de Belo Monte fora decidido antes mesmo que se iniciasse a barragem. A energia é o leite precioso que ‘sacia’ a sede insaciável dos capitalistas. O leilão do linhão que vai levá-la embora está marcado para o dia 7 de fevereiro. A um custo inicial de 5 bilhões de reais, ele percorrerá 2 mil Km, passando pelos estados de Pará, Tocantins, Goiás e Minas Gerais.

É curioso que o linhão tenha capacidade para transportar 4 mil MW, justamente a energia firme que será gerada pela barragem em construção no Xingu. Badalaram-se muito os 11 mil MW, mas o fato, agora dado a conhecer pelo governo e empresas, é que grande parte das 24 turbinas ficará parada durante o verão por causa da dinâmica de volume de água do Xingu, o que faz a produção de energia cair para a terça parte do previsto.

É toda a Belo Monte que literalmente entra pelo fio, deixando a Amazônia e indo para o Sudeste, onde os capitalistas precisam da energia, em especial nos estados do Rio de Janeiro e Minas Gerais.

É curioso também que a CEMIG – Centrais Elétricas de Minas Gerais  (gigante estatal de lógica privada, com monopólio da distribuição de energia em Minas Gerais e dona da Light Rio, com negócios em 19 estados brasileiros, no Distrito Federal e na China, onde mantém uma linha de transmissão com a empresa Lusa), embora sendo a menina dos olhos do tucanato em Minas (um dos seus últimos ninhos), esteja no ‘centro’ do escoamento da energia de Belo Monte, uma barragem privada, mas cacifada pelo governo federal, confirmando, mais uma vez, que o capital não tem problemas com cores, tendências e números partidários. A única coisa que lhe interessa realmente são os lucros e a acumulação.

Estima-se que o linhão estará concluído em 2018, tempo previsto para instalar-se, não por coincidência, a última das 24 turbinas de Belo Monte.

O capital não só abocanha as chamadas obras de infraestrutura, mas, ainda, encontrando clima favorável, como no Brasil hoje, impõe as suas condições e as legitima, naturalmente através do Estado sob governos neoliberais, seus gerentes.

O vento sopra mesmo a favor da classe dominante. Na última reunião do Fórum Econômico em Davos, Suíça, o recado foi dado, com todas as letras, com a platéia repleta de empresários e investidores: ‘o Brasil é uma oportunidade de negócios’. Em tempos de crise capitalista, esse discurso vem na medida certa.

No caso do linhão, o negócio fica especialmente atraente e vantajoso em relação a outras obras. O dinheiro é emprestado pelo BNDES a taxas de juro de longo prazo (TJLP) mais taxa de remuneração de 1%, antes era 1, 3%. E a taxa de risco de crédito, que antes era de 4,18%, agora é reduzida para 2, 87%. Levando-se em conta que a TJLP está atualmente em 5% ao ano, o custo máximo do financiamento cai para 8,87% contra 10,48% de antes. O prazo de amortização são longos e folgados 168 meses.

Que os economistas debulhem, depois, esses números! Mas a mensagem política que se expressa na matemática já está claríssima. Esses números aparentemente modestos escondem bilhões e bilhões de reais de lucro certo.

Além do mais, Miriam Leitão não reclamou. E quando ela não reclama, é porque a decisão é boa para os ricaços e, ruim, para o Brasil.

Para habilitar-se a participar desse leilão, um teatro virtual marcado para o dia 7 de fevereiro, basta à empresa inscrever-se até o dia 5.

A expressão ‘teatro virtual’ exige uma desculpa e uma explicação. Uma desculpa às mulheres e homens artistas, profissionais ou não, do teatro. E uma explicação porque teatro virtual, aqui, não é apenas força de expressão. É um teatro mesmo, no seu significado pejorativo, sem nenhuma arte, onde representantes de governo e de empresas, protegidos pelo manto tecnológico sagrado do capital, teatralizam uma decisão que já fora tomada em jantares e gabinetes. O argumento de que o leilão é uma questão técnica ajuda a camuflar seus principais componentes, o econômico e o político.

Na verdade, as empresas estatais e privadas e os representantes dos governos, em especial pessoas ‘técnicas’ que operam a burocracia estatal, fazem os combinados antes e loteiam as diversas ‘grandes’ obras. Nos bastidores, certamente já definiram quais empresas vão construir o linhão de Belo Monte ainda que o leilão esteja por acontecer. Como uma sobremesa antes da refeição. Se houver algum incidente de percurso não é nenhum problema, mudam a data, e, de lambuja, já combinam quais candidatos e partidos serão financiados nas próximas campanhas eleitorais. É assim que a coisa funciona!

É triste! Porém mais triste do que saber dessa realidade é desconhecê-la, e continuar no doce mundo da ilusão.

O critério de vencedor no leilão, quando cada representante de empresa fica isolado com seu computador ligado a uma central – é ridículo, mas é assim! – é quem apresentar o menor RAP.

Muita gente compreende rapto, mas é RAP. O que é isso? Ganha quem oferece a menor Receita Anual Permitida (RAP), valor a que a empresa transmissora tem direito pela prestação de ‘serviço público’, no caso do linhão de belo Monte  por um período de 30 anos.

Maurício Tomasquim, diretor da EPE – Empresa de Pesquisa Energética vem cumprindo bem o seu papel num setor estratégico para o capital na burocracia do Estado, e está se babando todo com esse linhão, que terá 800 KV (quilovolts), o único exemplar no Brasil já que os maiores têm 600. Segundo ele, no mundo só há um similar em operação na China e um prestes a entrar em operação na Índia.

Importante lembrar que até 2016 o BNDES tem previsão de investir 368 bilhões de reais em infraestrutura no Brasil, com regras cada vez mais vantajosas ao capital.

Os capitalistas estão com o burro na sombra e não têm dificuldade em continuar apoiando um eventual segundo Mandato de Dilma Roussef, apesar de sua bonita e respeitável história de luta contra a Ditadura Militar.

Respeitável sim! História é história e não se joga fora! Mas assim como o capital convive bem com as cores, tendências e números partidários, ele não tem nenhum problema, também, com as histórias de luta de pessoas e povos. A não ser que a disposição por obstruir-lhe o caminho seja persistente.

Os brasileiros empobrecidos já conseguem também encostar seus jeguezinhos na sombrazinha de programas sociais, pequenos arbustos que não têm avançado para políticas públicas. Mas qualquer melhora ainda que pouca e temporária é importante. A tese do quanto pior melhor é falsa! Esses também votariam em Dilma. O gargalo, porém, é que a sustentação dos programas sociais está associada à generosidade do capital proporcionada pelos lucros extraordinários, com exploração dos bens naturais e do trabalho da classe trabalhadora, e isso tem limite.

Mas não vale aqui o palavrório da migração pra esse ou aquele outro partido eleitoral. Seria como trocar seis por meia dúzia. Ou colocar uma roupa nova sem tomar banho. A murrinha do mesmo sistema continua. A questão central não são siglas e eleições; é a mudança da correlação de forças, resultado de longo e árduo trabalho de base e muitas lutas, que dão corpo ao poder popular, revolucionam as estruturas arcaicas e modernas de opressão e garantem a soberania. Esse é o antídoto correto!

O Plebiscito Popular por uma Constituinte exclusiva e soberana do sistema político, já em preparação para os dias 1º a 7 de setembro, pode ser um passo importante nesse processo maior.

A política neoliberal assumida pelo Estado brasileiro cria monstrengos que vão se tornando fortes, verdadeiros impérios, num Estado que vai se tornando fraco enquanto garantidor dos direitos do povo. É como o parasita que suga, dia e noite, a energia do seu hospedeiro. Quando o leite faltar aos monstrengos acostumados a mamar à saciedade insaciável, lá se vai sua bondade com os programas sociais. Por isso esses monstrengos precisam ser duramente combatidos e suas tetas estancadas.

Além de toda a energia de Belo Monte que vai para o Sudeste, existe o caso anedótico e trágico de Tucuruí que, desde sua inauguração em 22/11/1984, entrega energia subsidiada para a ALCOA por valor abaixo do custo de produção. São essas anomalias que permitem dizer que o Brasil ‘exporta’ energia e, junto dela, nossos rios, nossas águas, nossa floresta, nossa cultura, nosso suor e nosso sangue.

A mineração segue essa mesma trilha. É tudo tão simples! É tudo tão claro! Não é nada ‘ideológico’ e partidário. As máquinas construídas e movidas pelos trabalhadores fuçam as montanhas e o subsolo, retiram o minério, colocam-no no Trem ou no Mineroduto que vão até o Porto; dali, o minério segue para esquentar os negócios dos impérios econômicos em qualquer parte do mundo.

O evangelho diz que ‘a fé remove montanhas’. Mas em Minas Gerais, as mineradoras têm removido muito mais montanhas do que a fé.

O trem Vitória Minas, conhecido como Trem da Vale, liga Belo Horizonte a Cariacica, grande Vitória, e aos portos Tubarão, Praia Mole e Barra do Riacho. Ele passa pela região de Itabira, cidade de Carlos Drummond,  no Vale do Aço, e leva centenas e mais centenas de toneladas de minério por dia. Desencantado com os estragos da mineração, o poeta diz que ‘Itabira é apenas um retrato na parede’. Uma composição com até 300 vagões com capacidade de 70 toneladas em cada vagão passa seguidamente, de dia e de noite, assoviando e cantando o refrão criado pela sabedoria do povo: ‘eu volto já eu vim roubar, eu volto já pra te levar’, enquanto corre deslizando sobre os trilhos.

A Estrada de Ferro Vitória Minas teve seu início de construção no final do século XIX e foi responsável pelo extermínio de vários povos nativos, entre os quais se destacam os Krenak. Nesse sentido, é semelhante a Belo Monte, apesar da afirmação de Edson Lobão, Ministro de Minas e Energia, de que essa barragem não molesta nenhum índio. Com 905 Km de extensão, é administrada pela Vale SA e é responsável por 37% de toda a carga ferroviária nacional. Além de minério de ferro, leva aço, carvão, calcário, granito, ferro-gusa, e diversos outros produtos. Claro: também muito suor e sangue.

Ah! Quase me esqueço de que carrega pessoas, em média 2.800 usuários por dia, o que garante à Vale um dinheirinho a mais, mas, principalmente, cola sua imagem ao turismo, à cultura, à preservação do ambiente, e vira uma espécie de trem da alegria.

A Estrada de Ferro Carajás, com 892 Km de extensão, liga a maior mina de minério de ferro a céu aberto do mundo, em Paraupebas PA, ao porto de Ponta da Madeira, em são Luís do Maranhão. Inaugurada em 1985, também pertence à Vale e transporta anualmente 120 milhões de toneladas de minério em suas 259 locomotivas com 16 mil vagões. Números muito expressivos!

Enquanto desenvolvimentismo for sinônimo de entreguismo, não será difícil ligar lavras minerais da Volta Grande do Xingu e Assurini, ao lado de Belo Monte, a uma Estrada de Ferro e a um porto. A canadense Belo Sun já tem Licença Prévia de lavra e a Vale faz estudos iniciais. Os boatos de pontes no Xingu, de asfaltamento de estradas, de linhas de trem para escoação do minério já existem, provavelmente os desenhos já estejam prontos.

Por fim, a experiência de Minas Gerais com os minerodutos, imensos canais por onde escorre minério junto com água, e vão sempre de uma lavra qualquer a algum porto.

A Samarco, empresa controlada pela Vale, tem dois minerodutos que vão de Germano (Mariana) até Ubu (Anchieta) e levam 24 milhões de toneladas/ano de minério de ferro. Ela está construindo um terceiro com capacidade de 20 milhões de toneladas/ano.

O grupo Eike Batista está construindo um mineroduto que tem 525 Km de extensão, seria o maior do mundo, e vai de Conceição do Mato Dentro MG até o porto Açu, no Rio de Janeiro.

A empresa Ferrous quer construir um mineroduto que vai de Congonhas MG a Presidente Kennedy, no Espírito Santo. E haveria ainda outro projeto de Congonhas  para o Rio de Janeiro.

Enquanto uma Belo Monte entra pelos fios, nosso minério vai pelos trilhos ou pelo cano. Minério e energia, unha e carne, seguem o mesmo destino.

Mas não sem reações e ações organizadas. O canteiro de obras de Belo Monte já foi ocupado diversas vezes por indígenas e outros atingidos. A Estrada de Carajás foi ocupada em 8 de dezembro de 2007 pelos Sem Terra. Quase mil mulheres do Movimento dos Atingidos por Barragens e outros pararam o Trem da Vale em Resplendor, leste mineiro, no dia 10 de março de 2008. No dia 8 de março de 2014 haverá debate e mobilização em Paula Cândido MG, mais um passo de resistência ao projeto de mineroduto da Ferrous na região.

Muitos podem dizer que isso é apenas uma gota d’água. Para quem acredita na força do povo organizado, tudo isso é a gota d’água do poder popular.

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