Livro reúne estudos que narram a história da inquisição e da perseguição feita aos judeus, cristãos-novos e indígenas nas Minas Gerais do século 18
Por Ângela Faria, em Estado de Minas
Pelo menos desta vez, Inquisição não é propriamente castigo. Organizado pelas historiadoras Júnia Ferreira Furtado e Maria Leônia Chaves de Resende, o livro Travessias inquisitoriais das Minas Gerais aos cárceres do Santo Ofício (Fino Traço Editora) revela personagens sofridos e fascinantes, protagonistas de alentados ensaios sobre a saga de cristãos-novos e seus “caçadores” na Terra de Santa Cruz que se tornou Brasil.
É bom lembrar: a fogueira não foi exclusividade de judeus, obrigados pela coroa portuguesa a se converter ao catolicismo no século 15, e de seus descendentes. Acusados de feitiçaria, bigamia ou superstição, sobrou também para os índios. Em 1745, um deles, Custódio da Silva, acabou preso às galés por cinco anos. Aos negros se atribuíam os crimes de mandinga, cópula carnal com o demônio e adivinhação.
Em 17 capítulos, cerca de 20 especialistas analisam como a Igreja e a Inquisição moldaram o universo religioso-católico no espaço geográfico do império marítimo português. O Tribunal do Santo Ofício não se instalou no Brasil, mas nossas capitanias se enredaram em seus tentáculos. Do século 16 ao início do século 19, 1.076 prisioneiros de nosso país foram sentenciados pela Inquisição, 29 deles submetidos à pena capital. Calcula-se que 57 cristãos-novos de Minas Gerais foram processados – oito morreram queimados.
Pode parecer pouco, mas Travessias inquisitoriais… deixa claro: o impacto desse processo transcende – e muito – as estatísticas. As organizadoras do livro argumentam que, dessa forma, cumpriu-se a missão de “homogeneizar a fé e os ritos católicos, caçando bruxas de tradição europeia, reprimindo as crenças e os deuses africanos e indígenas, e, mais particularmente, perseguindo os cristãos-novos que teimavam em judaizar”. O leitor encontra reflexões sobre as relações da Inquisição com o episcopado lusitano; descobre que ser agente do Santo Ofício dava status e que muita gente fingia ser um deles; indigna-se com suplícios e torturas impostos aos prisioneiros em Portugal.
Pessoa
São muitas as desventuras dos personagens desta cruel história. Um deles morou por 25 anos em Ouro Preto, no século 18. Martinho da Cunha de Oliveira Pessoa veio de família de cristãos-novos portugueses e se dividia entre duas vidas: a de “fora”, como católico, para escapar da perseguição, e a de “dentro”, junto dos seus, seguidor do judaísmo às escondidas.
Preso em Portugal, Martinho foi obrigado a pedir perdão aos inquisidores. Ao se ver “livre”, emigrou para o Brasil. Fez fortuna, reunia-se com outros “judeus secretos” em Vila Rica. Eles tinham cultura e livros. De volta ao país natal, foi encarcerado novamente e morreu queimado, em abril de 1747, a mando da Santa Inquisição. “Não posso estar em parte alguma./ A minha pátria é onde não estou”, escreveria, muitos anos depois, um de seus descendentes, Fernando Pessoa. Na opinião da historiadora Anita Novinsky, os versos do multifacetado poeta remetem à saga de seus antepassados.
Relatado por Júnia Furtado, o caso dos irmãos Nunes daria uma bela minissérie de TV. Descendentes de famílias que escaparam de perseguições inquisitoriais espanholas, os portugueses João, Diogo e Sebastião receberam secretamente os ensinamentos do judaísmo. Oficialmente, eram católicos batizados e crismados. Comerciantes, estabeleceram-se em Salvador e decidiram fazer fortuna na região das minas, às quais tiveram acesso graças ao Caminho dos Currais – ao longo dessa rota, aliás, fixaram-se várias famílias de cristãos-novos. De 1709 a 1724, os Nunes zanzaram entre Minas Gerais e Bahia, deixando escritos preciosos sobre a região, seu povoamento e a respeito de fatos históricos, como a Guerra dos Emboabas.
Nas palavras de Júnia, os Nunes nos legaram uma “geografia vivida”, entrelaçando Salvador a Pitangui, Serro do Frio, Vila Rica e Itacambira. Graças a roteiros de viagem dos irmãos, o cartógrafo francês Jean Baptiste Bourguignon D’Anville pôde descrever o território da América portuguesa que consta da Carte de l’Amérique méridionale. Aqueles registros serviam de guia para outros cristãos-novos acessarem o “éden minerador”.
Em sua análise instigante, Júnia remete ao imaginário judaico as descrições topográficas, da fauna e da flora feitas pelos irmãos. O Rio Jordão se encontra com o Rio São Francisco; o sertão brasileiro parece tão hostil quanto regiões percorridas depois da travessia do Mar Vermelho. Pelos Nunes, ficamos sabendo dos bichos, frutas e índios das Minas setecentistas. João morreu, Sebastião viveu em Londres, onde pôde abraçar sua fé, enquanto Diogo se viu preso e obrigado a revelar detalhes do judaísmo praticado na colônia, delatando cristãos-novos como ele. Há indícios de que conseguiu encerrar sua saga errante em Minas Gerais.
Jurema
Às heresias do Velho Mundo se juntaram as novidades do éden americano. No século 18, missionários católicos acionaram agentes da Inquisição para pôr fim ao ritual que envolvia o consumo de uma bebida alucinógena obtida a partir de uma planta chamada jurema.
Desta vez, o “feiticeiro” se deu bem. O historiador James Wadsworth revela: praticado inicialmente em aldeias indígenas da Paraíba, o culto se espalhou, avançou pela Amazônia e chegou ao século 21 com o status de símbolo-chave da “indianidade” nordestina.
TRAVESSIAS INQUISITORIAIS DAS MINAS GERAIS AOS CÁRCERES DO SANTO OFÍCIO
. Organizado por Júnia Ferreira Furtado e Maria Leônia Chaves de Resende
. Fino Traço Editora, 484 páginas, R$ 65
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Enviada para Combate Racismo Ambiental por José Carlos.