Observatório de Favelas: Entrevista com Marcelo Paixão

marcelo paixaoPor Piê Garcia, da equipe da #JMV

Marcelo Paixão, coordenador do Laboratório de Análises Econômicas, Históricas, Sociais e Estatísticas das Relações Raciais (Laeser), fala sobre as consequências da naturalização do racismo na sociedade brasileira em entrevista a equipe da campanha Juventude Marcada para Viver (#JMV).

O pesquisador, além de problematizar interpretações de dados que apontam melhora nas condições de vida da população negra, fala sobre paradoxos de nossa cultura que nega o peso do racismo na reprodução de injustiças, mas tem taxas de mortalidade para negros sempre superiores as dos brancos, dependendo da região.

Paixão é economista, sociólogo e professor do Instituto de Economia da UFRJ. O Laeser é o principal laboratório de estudos acadêmicos das desigualdades raciais do país e periodicamente lança um relatório que é considerado o mais completo sobre o tema.

Juventude Marcada Para Viver – Existem pesquisas que comprovam que o número de negros assassinados no país vem aumentando, enquanto o de brancos cai. Este pode ser o exemplo de uma política pública — nesse caso, de redução da letalidade — que funciona apenas para um grupo?

Marcelo Paixão – O Estado opera diante disso com profundo descaso. Por exemplo, quando o número de vítimas da dengue chega a 500, é considerado calamidade pública. São feitas diversas campanhas sobre o tema, disseminadas massivamente nos veículos de comunicação. Por que não é feita a mesma coisa em relação aos homicídios? Mas, enquanto os pobres estão se matando, está tudo bem! Mesmo com a estabilização do quadro de dengue, o Estado continua agendando campanhas. O mosquito desconhece classe social e raça, por isso são atingidas pessoas em todos os lugares. Já as balas atingem mais pobres e negros. E o Estado é conivente com isso.

JMV – A desigualdade social entre brancos e negros é consequência do racismo?

MP – Sempre temos essa dificuldade quando falamos sobre estudos de desigualdades. Temos que dizer que as desigualdades são produzidas por fenômenos multifacetados. Por exemplo, o rendimento do nordestino costuma ser inferior ao rendimento dos trabalhadores da região sudeste e isso vai evidentemente afetar brancos e negros do nordeste e vice-versa no sudeste. Então, há uma desigualdade de renda que é causada por um fenômeno regional. Entender as desigualdades envolve prestar atenção a um conjunto de fenômenos como a escolaridade, a região em que a pessoa vive e a experiência no trabalho.

O trabalho que eu faço não é tanto no sentido de dizer para as pessoas: “olha tudo o que você entende por desigualdade é causado pelo racismo, é uma relação causa e efeito”. Procuro mostrar que o racismo é o elemento que faz parte da estrutura social brasileira dialogando de maneira dinâmica com aquele conjunto de outros vetores que determina a desigualdade. Existe desigualdade de gênero no mercado de trabalho. Essa é uma desigualdade que vai afetar todos os núcleos da população, porém, quando nós analisamos a discriminação de gênero associada à desigualdade por raça, vemos que as desigualdades são ainda maiores, demonstrando que um elemento determinante da desigualdade por gênero dialoga dinamicamente com uma outra desigualdade que é a racial.

JMV – Se pesquisas como o Relatório das Desigualdades Raciais mostram que negros estão em desvantagem em uma série de aspectos, porque as políticas voltadas para a correção das desigualdades raciais são sempre alvo de polêmicas?

MP – Algumas pessoas estão acostumadas a viver numa sociedade de privilégios. A população branca nunca enfrentou as barreiras que a população negra enfrenta. Esse sempre foi um tema oculto. Não se falava em racismo. Mas é tudo muito injusto os dados estatísticos comprovam.

Por exemplo, no que tange a população negra do sexo masculino jovem, quando analisamos os indicadores, dependendo do local, as taxas de mortalidade são exponencialmente maiores do que as da população branca. Isso não significa que tenhamos de deixar de reconhecer que os jovens brancos também estão sujeitos a alguma vitimização, mas a probabilidade nos indica que um morre muito mais do que o outro. Ignorar esses indicadores é um tipo de omissão que eu acho equivalente àquelas típicas da Segunda Guerra Mundial, quando começam a sumir judeus sendo levados para os campos de concentração e diziam que não estavam vendo nada. É quase um crime histórico, porque os dados são muito fortes. Então, o grau da violência é tão absurdamente alto que alguém tentar criar algum eufemismo em relação a essa realidade, com todo respeito, é uma postura lamentável, porque incorre no encobrimento dos horrores que fazem parte da formação da sociedade brasileira.

O que aconteceu no primeiro semestre na Maré, por exemplo, é extremamente grave, não tem justificativa, não tem perdão. É um crime contra a humanidade. O que ocorreu com o Amarildo e, mais recentemente, com um jovem em Manguinhos, esses exemplos vão se repetindo e isso é considerado como algo que faz parte da paisagem. Uma polícia totalmente fora de controle, corrupta, que tem nos jovens negros alvos preferenciais, não apenas nas batidas, mas também nos atos violentos, que levam muitas vezes à morte.

As formas de violência são múltiplas, vão da física à simbólica, e me parece que a juventude negra é especialmente lesada pelas por elas. No caso da população negra masculina, pelos homicídios e pela violência policial, ou no caso da população negra feminina, pela violência doméstica e sexual. Por que é que uma em cada quatro mulheres negras, ainda hoje, está no mercado de trabalho como empregada doméstica? Elas são 70% dessa categoria. Essa é uma realidade que representa algo grotesco e absurdo, porque elas não têm direitos sociais que os demais trabalhadores possuem. E essa ausência de direitos sociais beneficia fundamentalmente as classes médias, as classes altas que são formadas na sua maioria por pessoas brancas.

JMV – Apesar da persistência das desigualdades, em termos estatísticos, houve alguma melhora nas condições de vida da população negra?

MP – Depende. “Melhora” é uma palavrinha complicada, primeiro porque ela faz juízo de valor: “melhorou”, antes era pior. Segundo, porque envolve uma dimensão de qual é a sensação, qual é a percepção que nós temos sobre esta melhora.

No plano dos dados houve um aumento na renda dos negros. De acordo com os indicadores sociais, houve uma melhoria na renda média, seja na renda média do trabalho, seja na renda média per capita, para a população negra nos últimos 20 anos numa proporção maior do que ocorreu para a população branca. Isso significa que nesse indicador houve uma queda na desigualdade racial, à luz da pergunta “melhorou”?

A vida não é formada por um único vetor. Assim como a desigualdade, ela é multifacetada. Por exemplo, indicadores como os da educação, apesar terem apresentado melhora da média da escolaridade da população negra em relação à população branca, tal “melhoria” não pode ser considerada positiva, porque em primeiro lugar a média de anos de estudo subiu num momento em que a qualidade da escola não aumentou nessa mesma proporção.

90% da população negra estuda nas escolas públicas, sendo que a maioria dessas escolas não possui condições elementares de funcionamento. Isso acaba afetando a capacidade de aprendizado da população negra, o que pode ser visto ao analisarmos os indicadores de proficiência como aqueles medidos pelo sistema de avaliação do ensino básico. Segundo estes, a população negra, em geral, tem os piores indicadores. Portanto, esse é o tipo de indicador que ‘melhorou”, mas não melhorou.

Em 1988, 2% dos jovens negros frequentavam a universidade, hoje em dia, são 8%. Então, quadruplicou, mas como melhorou se você tem 92% dos jovens negros fora das universidades? Com a indústria da criatividade, da tecnologia e da informação, não ter acesso à universidade é uma maneira de estar participando menos da sociedade no seu sentido mais geral, não só do lado do consumo. Dessa forma, mesmo que esse indicador tenha melhorado, não foi na proporção que deveria.

A grande melhoria decorre do fato de que antigamente esse tema sobre o qual estamos conversando agora ter sido considerado um não tema, um não problema. Hoje esse debate é feito de maneira mais aberta, a sociedade brasileira se conscientizou de que isso existe realmente.

JMV – A admissão de que o racismo existe hoje encontra mais eco. Mas o nosso país continua muito preconceituoso?

MP – Se você perguntar para qualquer pessoa se ela é preconceituosa, ela vai responder que não. E ainda vai basear sua resposta argumentando que tem alguém na família ou alguém que a criou que é negro. Vai puxar na árvore genealógica e jurar que não tem preconceito. Foi feita uma pesquisa pelo Datafolha em 1995 e 2008 chamada “Racismo Cordial”, que mostra que a população tem se policiado, escondendo seu preconceito para ser socialmente aceita. Só que é óbvio que existe muito preconceito de classe e cor. Quando um negro ganha lugar de destaque causa estranheza. O status também cria barreiras e obstáculos. A pessoa não tem preconceito quando o negro está num lugar subserviente. Eu sou otimista de que no futuro fiquemos mais acostumados com negros médicos, engenheiros e que um negro num carro importado não cause mais indignação. A sociedade não ajuda a mudar essa realidade. Temos uma ministra negra na Secretaria de Políticas de Promoção da Igualdade Racial (SEPPIR) e um juiz negro no Supremo Tribunal Federal. Quanto tempo vai demorar para que as novelas tenham mais atores negros? Para reconhecer o preconceito não temos os indicadores, mas existe a percepção.

JMV – Que exemplos bem sucedidos (aqui ou em outros países) na promoção da igualdade racial você pode citar? Você tem alguma sugestão nesse sentido?

MP – Esses exemplos estão em andamento. Ações afirmativas, cotas, a lei que obriga o ensino da história afro-brasileira, as experiências nos Estados Unidos na promoção de igualdade… O fato é que temos que estimular esse sistema a mudar. Todas essas ações de promoção da igualdade racial têm de ser enriquecidas por outras ações para que se tornem sólidas. A campanha Juventude Marcada Para Viver é muito bem-vinda e chega até um pouco tarde! É importante não esmorecer. A gente não pode se acomodar e precisamos fortalecer ações de autodefesa com discussões, organização, senso de estratégia, formação de lideranças… Não se pode naturalizar o racismo. É necessário pegar os indicadores e lançar uma crítica sobre eles. Não aceitar! Para a juventude negra é super importante que se criem lideranças e grupos de estudos. Não temos a certeza de que as pessoas estão lendo estudos como o Relatório das Desigualdades Raciais. Estamos por nossa conta e ações como a campanha Juventude Marcada Para Viver só contribuem para reverter essa situação.

Deixe um comentário

O comentário deve ter seu nome e sobrenome. O e-mail é necessário, mas não será publicado.