“Direitos de crianças e adolescentes: Extermínio, racismo e o Velho Silêncio”*

menino cobrindo o rosto com a mãoPor Maria Helena Zamora(1) e Claudia Canarim(2)

Para Carlos André, doze anos, esmagado por
um trator em Maceió enquanto dormia no lixo,
cansado de buscar comida na imundície.

Uma sociedade injusta coloca em desvantagem, sobretudo, os mais jovens, assim como os grupos mais vulneráveis. O direito à vida está ameaçado nos contextos de violência estrutural aos quais se somam a violência criminal e das forças repressivas do Estado. No Brasil, uma das economias mais promissoras, e também um dos países mais desiguais do mundo, essas afirmações encontram uma trágica confirmação. Aqui é perigoso ser homem, ter entre 14 e 24 anos, ser negro e morador de regiões de baixa renda. Tal conclusão pode ser tirada a partir da leitura de diversos relatórios de pesquisas sobre índices de homicídios entre jovens. O impressionante a respeito destes dados é que partiram de estudos, instituições e organizações distintas, mas que acabaram por chegar ao mesmo perfil deste “jovem-alvo”. Aqui comentaremos ligeiramente apenas três desses estudos.

O “Mapa da Violência 2006: Os Jovens do Brasil”, de Jacobo Waiselfisz (2006), veio reafirmar que há um avanço da violência homicida, explicado exclusivamente pelo aumento dos assassinatos contra a juventude. Os homicídios vitimaram preferencialmente os homens (93%) e os negros, cujo índice chega ser 73,1% superior ao dos brancos em relação à população total, e sobe para 85,3% quando se refere aos jovens. Os homicídios prevalecem na faixa de 20 a 24 anos, e é na faixa dos 14 aos 16 anos – a adolescência – que mais tem crescido nos últimos anos. E foi constatada uma marcada tendência de interiorização dessas mortes.

A partir desse último dado, Waiselfisz produziu o “Mapa da Violência dos Municípios Brasileiros” (2008), abrangendo a década 1996/2006. Dos 556 municípios com as maiores taxas de homicídio na população total, embora sejam apenas 10% do total de municípios, concentram 73,3% dos homicídios ocorridos no país em 2006. São municípios de grande porte, contudo, todas as unidades federativas possuem ao menos um município integrando esse grupo. No caso do Amapá, Pernambuco, Rio de Janeiro e Roraima, 40% ou mais de seus municípios fazem parte deste grupo crítico. Portanto, a presença desses óbitos em cidades pequenas e supostamente “pacatas”, é uma realidade.

Em 2009 foi lançado o “Índice de Homicídios na adolescência” (LAV/UERJ e outros, 2009), feito em 267 municípios brasileiros. Ele mostrou que temos uma média de 2,03 adolescentes mortos por homicídio antes de completar os 19 anos, para cada grupo de 1000 adolescentes. Há cidades em que esse número chega quase a dez mortos por mil. A cifra é bastante elevada, já que são mortes perfeitamente evitáveis em uma sociedade não violenta, como revelam estudos comparativos.

Resumindo, temos 13 adolescentes assassinados por dia no Brasil, geralmente por armas de fogo. Lembremos que se trata de pessoas entre 12 e 17 anos, segundo nossa definição legal. Contudo, se incorporarmos a esse conjunto as crianças, são 16 os mortos por dia. É significativo que a grande maioria – mais de 90% – dos mortos seja do sexo masculino.

Em certos contextos brasileiros, o risco de um jovem negro ser assassinado é cinco vezes maior que o risco que corre um jovem branco (Waiselfisz, 2004). É impossível deixar de ver o racismo como “modulador” de tais práticas violentas. Basta percebermos a violência estrutural de dados como o “Relatório de Desenvolvimento Humano Brasil 2005 – Racismo, Pobreza e Violência” (Moreira, 2005). Ali veremos que, apesar do crescimento da renda das últimas décadas, o percentual de negros pobres nunca ficou abaixo de 64%. Embora sejam 44,7% da população total, os negros são 70% entre os 10% mais pobres e não passam de 16% entre os 10% mais ricos. Os dados de mortes apontam para uma continuidade de práticas históricas repressivas e genocidas contra essa população (Flauzina, 2008).

Entendemos que os fatos expostos são absolutamente escandalosos; são números de óbitos que muitos países em guerra não têm e para os quais, contudo, não vimos ser levantado um elenco de providências urgentes e imediatas a serem tomadas para resolver essa situação intolerável. Nem vimos a indignação contra tal barbárie tomar a mídia, a opinião pública, a chamada sociedade civil organizada, as ruas. Convivemos com esses dados, com certa resignação ou até com indiferença: na verdade, um silêncio cúmplice. A sociedade brasileira pouco sabe ou quer saber da real dimensão desses fatos, se é que não os legitima, já que ainda se sente ameaçada pela figura do “menor perigoso” – ou seja, os meninos, adolescentes e jovens negros e de origem popular.

Esta ausência de mobilização diante de um morticínio de meninos, esta tolerância diante do intolerável, é especialmente estranha em um país onde a infância e adolescência e todos os assuntos que lhe são relacionados são considerados sob o princípio da “prioridade absoluta”, de acordo com o texto da Constituição Federal. Isso deveria lhes dar um primeiro lugar na preocupação de todos os governantes, legisladores e parlamentares. As estratégias para combater o problema ainda se esboçam, mas não têm a centralidade que deveriam ter.

Contudo, é possível encontrar governantes que promovem e endossam a violência letal de suas polícias para empreender supostas ações de prevenção e combate ao crime, inclusive ao lidar com a população civil, utilizando para essas operações até mesmo os tanques de guerra. Este é o caso do Rio de Janeiro, por exemplo. Em tais operações, com alegadas “balas perdidas”, meninos e jovens têm sido abatidos ou feridos. Abusos de todo tipo têm sido cometidos; os moradores vivem aterrorizados. E é preciso dizer que neste tipo de ação perdem todos, inclusive os policiais (Anistia Internacional, 2009).

De fato, há dezenas de parlamentares dedicados a elaborar e propor não projetos de lei que possam defender a vida dos mais jovens, mas sim propostas destinadas a rebaixar a maioridade penal, planejando colocar nas terríveis cadeias brasileiras, já fartamente denunciadas, os meninos e meninas, a partir de dezesseis anos ou menos. Vemos também que alguns se mobilizam para o aumento do tempo de internação (privação de liberdade), uma das medidas socioeducativas (supostamente) destinadas a recompor a cidadania dos adolescentes em conflito com a lei. Mais repressão, mais prisão, mais violência, mais do mesmo na vida dos jovens.

O silêncio sobre a morte de meninos e rapazes é também explicável pela própria condição social e econômica das vítimas e pela forma como elas são vistas em uma sociedade desigual. Os negros e pardos vítimas de homicídios, aqui mencionados, são, em sua maioria, pobres e miseráveis, de baixa ou nenhuma escolaridade e viviam em territórios estigmatizados – favelas, ruas, lixões. Essas mortes acompanham a formação do nosso bárbaro processo “civilizatório” e colonialista, uma verdadeira “estética da escravidão”, como sustenta a historiadora Vera Malaguti Batista (2003).

Atualmente, em um contexto neoliberal de perda de segurança estatal, a violência, a violação de direitos e a criminalização parece ser um modo de lidar com a população mais pobre, sempre pensada como potencialmente perigosa. São uma população sobrante, um “refugo humano”, no dizer de Bauman (2005), não pensado como útil, produtivo ou consumidor na face sinistra da globalização contemporânea.

Neste verdadeiro genocídio da população afrodescendente, pouco importa se esses meninos estão ou não envolvidos nas dinâmicas criminais, especialmente referidas ao comércio de drogas ilegais, se eles estudavam, trabalhavam ou ajudavam de alguma forma no sustento de suas famílias. Existem situações concretas de vulnerabilidade, bem conhecidas. Mas precisamos aqui acentuar que esta visão não apenas não explica todos os fatos como também pode nos levar a uma moralização da causa dessas mortes, atribuindo ao comportamento da vítima a causa de sua eliminação. Devemos entender que os afetados são quase sempre os adolescentes antes já afetados antes pela precariedade de um sistema de garantia de direitos, que deveria articular as áreas de saúde, alimentação, educação, lazer, cultura, profissionalização, moradia, transporte, entre outros. O diagnóstico é claro. No campo da política pública não fazer nada para deter o extermínio é deliberado.

Como pensar em garantir a vida e todos os direitos para a população mais jovem quando, nas palavras das senhoras de uma favela carioca que entrevistamos recentemente, “a vida não vale nada”, “o perigo é enorme”, “todo dia penso que meu filho pode morrer”? Não é uma percepção irreal. Menos de uma semana depois dessa conversa, um menino de quinze anos da favela mais próxima colocava o lixo fora de casa quando foi atingido por um tiro na cabeça. Enquanto os moradores acusavam a polícia pelo disparo, esta negava categoricamente as acusações.

Acreditamos que aqui se impõe uma questão importante. Em tempos de extermínio, podemos nos contentar com a mera vida, uma vida reduzida à vida nua, destituída da dimensão política, para os jovens (Agambem, 2002)?

Na verdade pensar em garantir somente a sobrevivência é reeditar o Código de Menores, onde uma perspectiva assistencialista e punitiva poderia garantir pelo menos “o pão, um teto, um trabalho decente” para os “menores” a quem ele dizia proteger.

Somente estar vivo não é viver. Lembremos do líder sul-africano Steve Biko: “A gente ou está vivo e orgulhoso, ou está morto. E quando se está morto, a gente não liga mesmo”. Negro, orgulhoso e vivo – eis o medo da elite. E parece que este é o assunto que no Brasil não se pode tocar, que precisa ser negado para reforçar um mito de igualdade racial, esta mistificação ordinária, jamais constatada, que permite e justifica os massacre dos meninos pretos e o velho silêncio que o acompanha.

Em uma sociedade adultocêntrica como a nossa, os adolescentes não apenas ainda não falam por si mesmos como sequer se pensa que eles podem e devem participar da vida cidadã e de todas as decisões que lhes dizem respeito. Não se ouve ou se condena e se criminaliza sua desobediência sobre aquilo mesmo que nós, adultos, não deveríamos nos acostumar. Como fazer ouvir a voz daqueles que não conhecem seus direitos e a quem os direitos também não conhecem, a não ser como uma identidade estabelecida de “adolescente”? Lembremos ainda que reduzi-los a vítimas e ousar pensar e falar por eles é mais uma vez repetir-se na posição autoritária.

A própria expressão parece encerrar uma natureza em si mesma, que tenho visto incessantemente repetida por pais, pela mídia, por gestores públicos, trabalhadores da justiça, da saúde e da educação, estudiosos, por tantos especialistas, que têm se esforçado em fabricar, em reificar. São palavras que descrevem e aprisionam uma criatura instável, vítima de seus hormônios, movida por oscilações que ela não controla nem pode controlar, não confiável, perturbada em sua capacidade de aprender e de se expressar. Sobretudo o adolescente, menino ou menina, é um gerador de problemas. Alguém que parece ter predileção por álcool e drogas, que tende à violência, que engravida fora de hora, que consome ou quer consumir, desenfreados. São características atribuídas que passam a ser percebidas como uma essência, em que “qualidades” e “defeitos” como rebeldia, melancolia, agressividade, impulsividade, entusiasmo, introspecção… passam a ser considerados sinônimos do ser adolescente (Coimbra, Bocco, Nascimento, 2005).

Ora, sabemos os efeitos da estigmatização sobre aqueles que são atingidos por eles: aqui tratamos disso. O que um olhar atravessado por tendências patologizantes produz quando se atende, se escuta, se trabalha com adolescentes, quando eles são julgados? Que conseqüências isso pode ter no tipo de sociedade em que vivemos, que não apenas procura controlar, mas também classificar negativamente as diferenças?

Entrevistamos recentemente um psicólogo que trabalha no Judiciário, que disse entender que era parte de seu trabalho “conscientizar os meninos infratores que chegam a meu atendimento que a sociedade os teme e os odeia; que eles precisam saber disso e se defender; formular estratégias de vida. Que se eles morrerem, só a família vai chorar ou reclamar. Ninguém vai falar nada! Nós somos meia dúzia, os que se importam com eles!”. Solidão e tristeza na voz de “quem se importa” e ainda tenta.

Cumpre a todos nós romper com o mascaramento da realidade, divulgando os fatos, alimentando as informações. Temos, porém, que superar o “teatro das denúncias”, que nos paralisa no horror ou que pode dar ensejo a novas “acomodações” com “mais do mesmo”. Temos que cobrar e propor novas ações concretas, dando visibilidade e escuta aos corpos e às vozes dos meninos e meninas, de suas famílias e de seus coletivos; pensando junto com eles novas saídas. Mas chamando mais gente para a discussão, apostando na formação, sem sermos nem nos sentirmos tão poucos. E a discussão da mídia, em seu papel de fabricante de subjetividades, precisa mais uma vez e sempre ser retomada.

Entendendo os direitos humanos como produções históricas bem datadas, interessa-nos pensar a singularidade de cada adolescente, de cada um, e a partir daí propor e formular novos direitos, novas possibilidades de afirmação da vida, novas respostas criativas à enorme possibilidade do (bio)poder de controlá-la.

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Referências Bibliográficas

AGAMBEN, G. (2002) Homo sacer – O poder soberano e a vida nua 1. Belo Horizonte: Editora UFMG.
Anistia Internacional (2009) “Declaração Pública: Violência no Rio de Janeiro – o desafio de mudar”. Disponível em: http://www.torturanuncamais-rj.org.br/denuncias.asp? CodDenuncia=185
BATISTA, V. M. (2003) O medo na cidade do Rio de Janeiro: dois tempos de uma história. Rio de Janeiro: Revan.
BAUMAN, Zigmund. (2004) Vidas desperdiçadas. Rio de Janeiro: Ed. Jorge Zahar.
COIMBRA, C., BOCCO, F. e NASCIMENTO, M. L. Subvertendo o conceito de adolescência. Arquivos Brasileiros de Psicologia. Junho 2005, vol.57, no.1, p. 2-11. Disponível em: http://pepsic.bvs-psi.org.br/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S180952672005000100002 &lng=pt&nrm=iso>.
FLAUZINA, A. L. (2008) Corpo negro caído no chão – O sistema penal e o projeto genocida do Estado brasileiro. Rio de Janeiro: Editora Contraponto.
Laboratório de Análise da Violência (LAV/UERJ), Secretaria Especial de Direitos Humanos (SEDH), Observatório de Favelas e UNICEF (2009) Índice de homicidios na adolescência – Análise preliminar. Brasília: SEDH.
MOREIRA, D. org. (2005) Relatório de Desenvolvimento Humano Brasil 2005 – Racismo, pobreza e violência. Brasília, PNUD.
WAISELFISZ, J. (2004) Mapa da violência IV – Os jovens no Brasil. Brasília: UNESCO, Instituto Ayrton Senna, Secretaria Especial de Direitos Humanos.
WAISELFISZ, J. Mapa da Violência 2006: os jovens do Brasil. Brasília: OIE, 2006. 162 p. Disponível em site: http://www.oei.org.br/mapaviolencia.pdf. Último acesso em 14/05/2008.
WAISELFISZ, J. Mapa da Violência dos Municípios Brasileiros 2008. Brasília: RITLA, Instituto Sangari, Ministério da Saúde, Ministério da Justiça, 2008. 111 p. Disponível em: http://www.ritla.net/index.php?option=com_content&task=view&lang=en&id=2313. Último acesso em 14/05/2008.

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(1) Maria Helena Zamora é doutora em Psicologia. Vice-Coordenadora do Laboratório Interdisciplinar de pesquisa e Intervenção Social – LIPIS da PUC-Rio.

(2) Claudia Canarim é psicóloga. Pós-Graduada em Análise Institucional, Esquizoanálise e Esquizodrama pela Fundação Gregorio Baremblitt – MG.

*Publicado originalmente em Direitos Humanos no Brasil 2009: Relatório da Rede Social de Justiça e Direitos Humanos, organizado por Evanize Sydow e Maria Luisa Mendonça. Editora Fundação Heinrich Böll. p.161-167.

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