Com John, o sabor do arquivo

José Ribamar Bessa Freire – Diário do Amazonas

O historiador John Monteiro foi homenageado em Natal (RN), na última quarta feira, durante o XXVII Simpósio Nacional de História organizado pela Associação Nacional de História (ANPUH). Ele morreu há quatro meses num acidente de trânsito em São Paulo, aos 56 anos, no auge de sua produção. Suas pesquisas sobre história indígena foram lembradas pelos historiadores Edson Silva, Regina Celestino e Luiz Felipe de Alencastro, pelo antropólogo João Pacheco e por este locutor que vos fala.

De 1992 a 1994, tive o prazer de trabalhar no projeto Guia de Fontes para a História Indígena com ele e mais 120 pesquisadores, que buscavam documentos sobre índios em arquivos das capitais do Brasil. John era o coordenador nacional e eu o responsável local do Rio de Janeiro. Nas nossas conversas, compartilhávamos as dificuldades, mas também a alegria de localizar documentação inédita, desconhecida ou pouco trabalhada e, em alguns casos, a surpresa de se deixar encontrar por documentos de cuja existência nem sequer suspeitávamos.

Na minha fala em Natal, aqui resumida, destaquei o prazer e os problemas da pesquisa. Nos arquivos do Rio, funcionários juravam que ali nada havia sobre índios. Foi assim no Arquivo Histórico do Exército, onde os militares, embora gentis e prestativos, ignoravam o conteúdo de 118 caixas de um conjunto documental intitulado “Forças em Operações no Paraná e Santa Catarina (Gen.Rondon). Tivemos de abrir caixa por caixa para descobrir papéis com registros sobre a morte de índios na Coluna Prestes.

Já  o Arquivo Público do Estado estava mais organizado, com catálogos, inventários e fichários que no entanto não registravam documentos sobre a temática indígena. O catálogo, que devia facilitar o acesso dos pesquisadores, tornava os índios invisíveis. Abrimos caixa por caixa uma vez mais e achamos escondidos na Coleção Diversoscorrespondência do Barão de Araruama, diretor geral de Índios em 1846, com informações sobre as 15 aldeias indígenas então existentes no Rio.

Muitos documentos foram assim identificados em arquivos das capitais do Brasil, contestando a tese do desaparecimento dos índios elaborada com a cumplicidade da historiografia brasileira, que tentou apagá-los da memória nacional. John Monteiro apostava que essa documentação permitiria não apenas escrever a história indígena, mas “reescrever capítulos inteiros da história do Brasil”. Podia servir de isca para atrair pesquisadores, o que efetivamente ocorreu.

Arquivo tem sabor? Sim, tem. Com John, compartilhamos o prazer físico e o entusiasmo na descoberta de documentos, embora depois sempre venha a ressaca, a dúvida sobre o que fazer com eles, como usá-los na escrita da história. Terminei minha fala mencionando três agradecimentos entre outros que John Monteiro faz no livro sobre as fontes históricas.

O primeiro foi à historiadora Maria Helena P.T. Machado, “companheira que conviveu com o Guia de Fontes desde a primeira hora e que colaborou de diversas maneiras”. O segundo, à antropóloga Manuela Carneiro da Cunha: “se este trabalho fosse só meu, eu o dedicaria a ela” – escreveu John. O terceiro à equipe do Rio de Janeiro, que só reproduzo aqui não como autoelogio, mas para corrigir, se me permitirem, a generosidade de John que fez elogios rasgados a toda equipe do Rio:

“Foi tamanha a dedicação e renúncia dessa equipe que Bessa, pressionado pelos prazos por mim impostos, chegou a abrir mão de uma viagem totalmente paga para um congresso nos EUA”.

Efetivamente, em 1994, John Monteiro testemunhou que a Universidade de New México havia acolhido um trabalho meu sobre a História da Língua Geral na Amazônia para a Conferencia Ibero-Americana, em Albuquerque. Ele estava comigo na sala da UERJ, organizando a documentação dos arquivos do Rio, quando fomos interrompidos por um funcionário, que trazia a passagem e as diárias liberadas pelo reitor.

– Não posso ir – eu disse. E diante de John redigi ali mesmo uma justificativa. Desisti da viagem, alegando que tinha prazos a cumprir com o Guia de Fontes. John se sentiu culpado, insistiu para que eu fosse ao evento, dizendo que podíamos renegociar os prazos. Permaneci irredutível, o que ele interpretou na ocasião como um surto de virtude. Confesso que não esperava que sua generosidade tornasse público o fato. Alguns anos depois, quando estive com ele, contei a verdadeira razão da desistência.

Acontece que eu havia me preparado para ir ao congresso nos Estados Unidos, mas uma situação emergencial levara para fora do país minha mulher e filha e eu ficara sozinho em casa. Sozinho não. Comigo ficaram meu cachorro e meu gato e, dessa forma, não podia viajar porque não tinha com quem deixá-los. Deram-me endereço de um hotel para cães, mas não tive coragem de abandonar as crias. Eu não podia, porém, falar disso nem ao coordenador do Guia e, muito menos, fazer constar num documento oficial da Universidade. A burocracia não iria entender as razões de um cachorro de olhar doce e suplicante.

Só anos depois pude confessar ao John a verdade. Terminei o relato dizendo a ele:

– Parece até exagero dos evolucionistas, mas te asseguro que cachorros e gatos podem contribuir para a qualidade da pesquisa histórica muito mais do que congressos nos Estados Unidos.

John, que conheceu o “Canalha”, nome do meu cachorro, entendeu e respondeu com uma grande risada. É essa imagem dele, rindo, com um sorriso aberto, generoso e tolerante que gostaria de guardar.

P.S – link do texto completo da fala AQUI:

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