Por Brunello Stancioli* e Nara Pereira Carvalho** – Revista Consultor Jurídico
Proposto em 2007 por meio do projeto de lei 478, o Estatuto do Nascituro tem recebido uma série de críticas à sua promulgação. Com conteúdo frequentemente associado a preceitos religiosos, a proximidade da vinda do papa ao Brasil neste mês de julho contribuiu para que as manifestações se acirrassem.
No entanto, os debates em torno do projeto têm se centrado em temas atinentes ao aborto apenas – a provável inviabilização da sua prática nos casos de estupro, a apelidada “bolsa estupro”, o direito ao livre uso do corpo pelas mulheres etc. Embora se tratem de colocações plausíveis, cuja abordagem é necessária face uma possível aprovação do Estatuto, pouco ou nada se tem dito sobre as repercussões que ele também terá em outras duas questões de grande relevância hoje:
a)a inviabilização da prática das pesquisas com células-tronco embrionárias;
b)a inviabilização da fertilização in vitro.
Nascituro in vitro?
Ao tratar da proteção ao nascituro, o projeto traz, em seu artigo 2º, a definição legal do termo, até então ausente no ordenamento jurídico brasileiro. Nascituros seriam todos os embriões, inclusive os que não estão em desenvolvimento no útero materno:
Art. 2º Nascituro é o ser humano concebido, mas ainda não nascido.
Parágrafo único. O conceito de nascituro inclui os seres humanos concebidos “in vitro”, os produzidos através de clonagem ou por outro meio científica e eticamente aceito.
Retoma-se, assim, questão já discutida pelo Supremo Tribunal Federal, quando em pauta a ADI-3.510, que tinha por objeto a constitucionalidade do artigo 5º da Lei de Biossegurança (Lei 11.105/2005), o qual passou a autorizar as pesquisas com células-tronco embrionárias no país. Na decisão, de 2010, concluiu-se pela viabilidade das pesquisas e, em diversas oportunidades do julgamento, abordou-se o significado de nascituro, reforçando-se que este é o ser em desenvolvimento no útero materno (ADI-3.510, voto dos ministros Ayres Britto, p. 39; Cezar Peluso, p. 6; Eros Grau, p. 5; Lewandowski, p. 22; Marco Aurélio, p. 10), e da inexistência de direitos da personalidade dos embriões a serem utilizados nas pesquisas.
Para logo se vê, destarte, que aí, no texto legal, embrião não corresponde a um ser em processo de desenvolvimento vital, em um útero. Embrião é aí, no texto legal, óvulo fecundado congelado, isto é, paralisado a margem de qualquer movimento que possa caracterizar um processo. Lembre-se de que vida e movimento. Nesses óvulos fecundados não há ainda vida humana. […] Não ha vida humana no óvulo fecundado fora de um útero que o artigo 5º da Lei n. 11.105/05 chama de embrião. A vida estancou nesses óvulos. Houve a fecundação, mas o processo de desenvolvimento vital não é desencadeado. Por isso não tem sentido cogitarmos, em relação a esses “embriões” do texto do artigo 5º da Lei n. 11.105/05, nem de vida humana a ser protegida, nem de dignidade atribuível a alguma pessoa humana (ADI-3510, voto do ministro Eros Grau, p. 8-9).
Nesse sentido, o projeto vai de encontro a tema já pacificado pelo STF, ao colocar, por exemplo, e explicitamente, os direitos à vida, à integridade física (artigo 3º) e à convivência familiar (artigo 4º) do embrião congelado, numa provável tentativa de coibir a existência de embriões criopreservados. Contudo, tais disposições acabam por repercutir na prática das pesquisas com células-tronco embrionárias e na própria fertilização in vitro.
A inviabilização das pesquisas com células-tronco embrionárias
Uma das consequências imediatas da aprovação do projeto de lei é a impossibilidade de realização das pesquisas com células-tronco embrionárias no país – as quais já foram autorizadas por lei e declaradas constitucionais.
Primeiro porque tais pesquisas pressupõem a existência de embriões que nunca serão implantados no ventre materno – e, portanto, nunca terão a convivência familiar que o projeto de lei lhes assegura. Segundo porque a extração das células-tronco implica a destruição do embrião do qual as células são retiradas, de modo que os direitos à vida e à integridade física do embrião congelado seriam desrespeitados.
Mais além, o projeto prevê, em seu artigo 25, pena de detenção de um a três anos e multa àquele que congelar, manipular ou utilizar nascituro como material de experimentação. A pesquisa é impedida de inúmeras formas e, curiosamente, tal aspecto tem passado bastante despercebido nas discussões do Legislativo ou mesmo da sociedade civil – ao contrário do que ocorreu à época em que a ADI-3.510 foi julgada no STF.
A inviabilização da fertilização in vitro
Da mesma maneira, os citados artigos 3º e 4º do projeto também importam prejuízos à fertilização in vitro, pois a única forma de compatibilizar o projeto com a técnica seria que todos os embriões fertilizados em laboratório fossem implantados.
Tal prática, no entanto, é pouco utilizada. Visando à maior efetividade possível do procedimento, via de regra, são fertilizados mais embriões do que os implantados, e apenas os viáveis, dentro do limite previsto pela Resolução 2.013/2013 do Conselho Federal de Medicina, são implantados na mulher.
Assim, e considerando que o procedimento de fertilização in vitro é custoso, seja pela perspectiva financeira, seja pela medicação e dosagens hormonais a que a mulher é submetida, seja pelas expectativas sentimentais envolvidas, não se implanta o número exato de embriões que foram fertilizados.
Outra questão a ser considerada é que o diagnóstico pré-implantatório, prática auxiliar à fertilização in vitro, também seria inviabilizado pelo Estatuto do Nascituro, já que, através dele, seriam identificadas doenças graves num embrião, e que, a partir de então, não seria mais considerado no procedimento de fertilização. Pelo Estatuto, qualquer discriminação entre embriões estaria vedada.
Um Retrocesso não Explícito
Para além das implicações atinentes ao aborto, o projeto de lei sobre o Estatuto do Nascituro repercute nas pesquisas com células-tronco embrionárias e na fertilização in vitro, questões que vêm sendo debatidas e reconhecidas ao longo de anos.
Simultaneamente, e sem serem apresentadas justificativas para tanto, são limitados o livre planejamento familiar (direito humano-fundamental, conforme artigo 226, parágrafo 7º, da Constituição de 1988) e o progresso científico, em meio a um retrocesso que não foi sequer explicitado.
Numa democracia, é importante que o devido processo legislativo seja acompanhado por debates públicos, nos quais se tenham clareza e se evidenciem os fundamentos que amparam a produção da norma. Nada disso foi feito em relação a esse projeto de lei. Frustram-se, de maneira insidiosa, democracia, ciência e livre planejamento familiar.
*Professor na Faculdade de Direito da UFMG, mestre e doutor pela UFMG e Pós-Doutor pela Universidade de Oxford
**Mestra e doutoranda em Direito pela UFMG, professora da graduação em Direito na Universidade Federal de Juiz de Fora e membro do Grupo Persona, da UFMG
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Enviada para Combate Racismo Ambiental por José Carlos.