Por Pedro Canario, em Consultor Jurídico
A Justiça Federal de São Paulo concedeu liminar para transferir ao Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária (Incra) a posse de um terreno em Ubatuba ocupado por uma comunidade remanescente de quilombolas. A decisão, da 1ª Vara Federal de Caraguatatuba, dá ao Incra e à Fundação Cultural Palmares (FCP) a posse provisória do terreno, pelo prazo de 90 dias, quando a questão deve ser reapreciada. A decisão é da sexta-feira (19/7).
O caso foi levado à Justiça Federal pelo Incra e pela FCP, representados pela Advocacia-Geral da União, por meio de Ação Civil Pública. A intenção das autarquias federais é tornar sem efeito sentença em uma ação de reintegração de posse que deu a um particular a titularidade sobre o terreno de cerca de mil hectares no litoral norte de São Paulo.
A decisão de reintegração de posse é da Justiça estadual, da 1ª Vara Cível de Ubatuba. A decisão foi dada em 1982, em face de um particular tido como líder da comunidade quilombola que hoje está no terreno. Como a disputa, nos anos 1980, se deu entre dois particulares, a União não foi citada e nem apareceu em qualquer dos polos.
O Incra entrou na questão em 2008, depois que o particular João Bento de Carvalho decidiu fazer a cumprir a sentença, que havia transitado em julgado em 1984. A intenção da autarquia é proteger os interesses da comunidade de 40 famílias que está naquela área há quase cem anos e lá já instalou escolas, clubes, áreas de convivência etc.
A intenção ao ajuizar a Ação Civil Pública, portanto, é tornar sem efeito a declaração de posse da terra ao particular: se a terra é ocupada por uma comunidade remanescente de quilombo, a posse deve ficar com ela. Na prática, o que o Incra pediu foi que a posse seja passada ao particular e logo depois transferida ao Incra, que a repassará à comunidade.
A liminar da sexta-feira afirma que “a fumaça do bom Direito” está ao lado do Incra: “Trata-se de comunidade remanescente de quilombo que ocupa a área há décadas e tem posse superveniente coletiva de índole constitucional, devidamente reconhecida”. A decisão argumenta que a Constituição Federal de 1988 deu às comunidades remanescentes de quilombo a posse de todas as terras que ocupavam quando da promulgação do texto constitucional.
Portanto, continua a liminar, “o risco da demora também é evidente, pois se a tentativa dos ora réus tiver êxito em dimensões que extrapolam os limites da coisa julgada entre as partes, há forte risco de inviabilização da vontade constitucional em relação à comunidade do Cambury e o desalojamento de um número considerável de famílias”.
No entanto, a decisão pondera que a existência de uma ação de reintegração de posse exige a análise rápida do caso pela Justiça Federal. “Como forma de dar o mínimo de celeridade”, foi estabelecido o prazo de 90 dias para que a questão seja reapreciada, no mérito, pela Vara Federal de Caraguatatuba.
Processo 0000584-19.2013.4.03.6135
Leia a liminar:
Ação Civil Pública nº 0000584-19.2013.403.6135
Autores: Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária -INCRA e Fundação Cultural Palmares – FCP
Réus: Charlote Lina Alexandra Bento de Carvalho e João Bento de CarvalhoVistos, etc.
Trata-se de ação civil pública, com pedido de liminar, movida pelo Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária – INCRA e Fundação Cultura Palmares – FCP, em face de Charlote Lina Alexandra Bento de Carvalho e João Bento de Carvalho, pela qual a parte autora pretende proteção da posse coletiva da comunidade remanescente de quilombo de Cambury, no município de Ubatuba.A referida comunidade, através da Associação dos Remanescentes de Quilombo do Cambury, foi devidamente certificada pela Fundação Cultural Palmares (fls. 19).
O INCRA emitiu parecer conclusivo sobre a legitimidade da comunidade para fins do art. 68 do ADCT, através do Relatório de Identificação e Delimitação – RTID (fls. 22). Os quilombolas moradores da área foram devidamente identificados e cadastrados pelo INCRA em seu relatório de fls. 29, mais precisamente no quadro de fls. 34/35. O reconhecimento também se deu pela Fundação Instituto de Terras do Estado de São Paulo – ITESP (fls. 39), que emitiu minucioso relatório histórico-antropológico (fls. 43/78).
Na inicial, a parte autora informa que, através da ação de reintegração de posse nº 0000003-15.1976.8.26.0642, em curso na 1ª Vara da Comarca de Ubatuba, os ora réus obtiveram êxito no seu intento em face de Genésio dos Santos. A referida ação foi ajuizada em 1976 e teve o trânsito em julgado da decisão favorável aos autores em 1984, portanto, antes do advento da Constituição Federal de 1988.
Os autores da reintegração de posse e réus da presente ação civil pública deram início ao cumprimento da sentença somente em 2007, depois do reconhecimento da comunidade como remanescente do quilombo de Cambury.
As entidades federais ora autoras alegam que o cumprimento da reintegração de posse pode redundar em sério prejuízo ao procedimento em curso de identificação, demarcação e futura titularização da área em prol da comunidade quilombola, nos termos do art. 68 do ADCT.
O Ministério Público Federal manifesta-se em prol da concessão do pedido de liminar (fls. 101/111). É o relatório.
Passo a decidir o pedido de liminar.
Trata-se de questão delicada e risco social grave. Primeiro, ressalto, como pressuposto, o respeito à decisão transitada em julgada na Justiça Estadual e à competência do Juízo da 1ª Vara da Comarca de Ubatuba no cumprimento da sentença.
O Judiciário é único, mas cada órgão jurisdicional possui a devida competência fixada na Constituição Federal, leis e normas de organização judiciária.
Compete à 1ª Vara da Comarca de Ubatuba dar cumprimento à decisão transitada em julgado envolvendo demanda possessória entre particulares individualmente identificados. No caso, o cumprimento da sentença dar-se-á em relação a Genésio dos Santos, em face dos limites subjetivos da coisa julgada.
Por outro lado, há a competência da Justiça Federal fixada constitucionalmente em relação a conflitos envolvendo coletivamente as comunidades remanescentes de quilombos e nas causas de interesse de autarquia e fundação federal (art. 109, I da C.F.).
Ademais, o direito ora invocado tem fundamento na Convenção 169 da Organização Internacional do Trabalho – OIT, devidamente internalizada pelo Decreto nº 5.051/04 (art. 109, III da C.F.).
A autarquia e a fundação autoras estão expressamente legitimadas para a proposição de ação civil pública em defesa de interesse difuso ou coletivo (art. 1º, III e IV c.c. art. 3º da Lei nº 7.347/85) e têm autorização expressa para a defesa dos interesses das comunidades remanescentes, conforme exposto na inicial.
O conflito de natureza possessória apreciado pela 1ª Vara da Comarca de Ubatuba envolve partes privadas devidamente identificadas. Já o conflito ora trazido na presente ação civil pública é diverso.
Primeiro, trata-se de posse superveniente à ação possessória e que tem seu fundamento de validade no próprio texto da Constituição, que foi promulgada após o trânsito em julgado da referida ação. Vale aqui a transcrição do art. 68 do ADCT: “Art. 68. Aos remanescentes das comunidades dos quilombos que estejam ocupando suas terras é reconhecida a propriedade definitiva, devendo o Estado emitir-lhes os títulos respectivos”.
A nova Constituição assegurou aos remanescentes das comunidades dos quilombos que estivessem ocupando suas terras, em 05/10/88, independentemente a que título, o direito não só à posse, mas também à própria propriedade. Não se trata de propriedade ou posse individualizada e sim coletiva. O direito é de toda a comunidade, tendo caráter nitidamente coletivo, pois esta era a índole da posse das comunidades quilombolas e indígenas.
Estamos tratando de uma posse coletiva superveniente e de origem constitucional, portanto, diversa da tratada na ação de reintegração de posse ainda em curso na Justiça Estadual. Em face da sua natureza singular e originária, a posse da comunidade remanescente do quilombo se sobrepõe à anterior por força do próprio dispositivo constitucional.
A jurisprudência tem reconhecido a preponderância do direito das comunidades remanescentes sobre a posse e a própria propriedade anteriores, como se depreende da seguinte decisão:
“ADMINISTRATIVO. COMUNIDADE REMANESCENTE DE QUILOMBO. ATO ADMINISTRATIVO. PRESUNÇÃO DE LEGITIMIDADE E VERACIDADE. TÍTULO RATIFICATÓRIO. PROCESSO ADMINISTRATIVO. VALIDADE. DECADÊNCIA. PRESUNÇÃO “JURIS TANTUM” DO REGISTRO.
1. O ato administrativo goza de presunção de legitimidade e veracidade, justificando-se a pretensão do INCRA de investigar se a área é ou não remanescente de quilombos, pois em decorrência desse atributo presumem-se verdadeiros os fatos alegados pela Administração. Também se presume verossímil o “título ratificatório” emitido pelo INCRA aos particulares, mas o processo que o antecede tem por objetivo verificar questões de segurança nacional e agrárias, de modo a verificar se o imóvel cumpre as determinações do Estatuto da Terra e se está apto a cumprir a função social da propriedade.
2. Inexistente nos autos prova inequívoca de que a área objeto de litígio pertence ou não à comunidade quilombola, é injustificável a alegação de nulidade do procedimento de identificação, reconhecimento, delimitação, demarcação e titulação das terras ocupadas por remanescentes das comunidades dos quilombos de que trata o art. 68 do ADCT, regulamentado pelo decreto n.º 4.887/2003. 3.
Deflagrado o processo administrativo, a questão será analisada em todo o seu aspecto, com a devida observância do contraditório e da ampla defesa, quando então poderá se definir se o imóvel integra ou não a comunidade quilombola. Precedente do E. TRF da 5ª Região.
4. O decreto n.º 4.887/2003, art. 17, incorporou ao ordenamento jurídico pátrio os caracteres da inalienabilidade, indisponibilidade e imprescritibilidade das terras remanescentes das comunidades de quilombos. Seja por expressa previsão formal na legislação, seja porque a Constituição explicitamente diz ser dever do Estado a emissão dos títulos de propriedade definitiva aos remanescentes das comunidades dos quilombos (ADCT, art. 68), não há que se falar em decadência do direito dos quilombolas de reaverem as terras.
5. O registro do título translativo no Registro de Imóveis não gera presunção absoluta do direito real de propriedade, apenas relativa (CC/1916, art. 527 e CC/2002, art. 1.231). Na hipótese dos autos, não há que se apegar ao fato de haver título ratificatório com força de escritura pública outorgado pelo INCRA à particular em 1983, para retirá-lo do domínio público. Mesmo que os particulares sejam portadores de título, ele poderá ser inoponível à União, mesmo sendo a transcrição imobiliária muito antiga, uma vez que a titularidade de áreas remanescentes de quilombos tem natureza originária.
6. É indevido excluir do processo administrativo n.º 54.290.000373/2005-12 o imóvel em litígio, sendo devido aguardar a deflagração de regular processo administrativo no qual poderá se definir se o imóvel integra ou não terra remanescente das comunidades quilombolas, inclusive para fins do art. 68 do ADCT.
7. Preliminares rejeitadas. Apelação do INCRA a que se dá provimento. Apelação de Francisco Seiki Arakaki e Valter Arakaki a que se nega provimento. Decisão de concessão de tutela antecipada suspensa”. (TRF da 3a Região, 1a T., Proc. 0002501-60.2008.4.03.6002, rel. Des. Fed. José Lunardelli, j. em 21/06/2011, DJE 08/07/2011). Grifei
Como se depreende da decisão, cuja ementa acima é transcrita, nem o título de propriedade anterior pode ser oponível ao direito das comunidades remanescentes de quilombos. Mesmo raciocínio aplica-se à posse anterior, mesmo que reconhecida por sentença transitada em julgado anterior à Constituição de 1988.
Ademais, não posso deixar de registrar que a gleba em questão em questão está situada não apenas em uma área destinada à remanescentes de quilombo, em procedimento de demarcação, mas também pertence ao Parque Nacional da Serra da Bocaina e ao Parque Estadual da Serra do Mar.
Podemos falar de uma área triplamente protegida no aspecto ambiental e cultural. Por ter competência para apreciar ações envolvendo comunidades remanescentes de quilombos e indígenas no litoral norte paulista, tenho conhecimento de fatos que não posso deixar de explicitar, pois contribuem para o fundamento da decisão.
Em virtude da sobreposição na área de dois parques e da comunidade quilombola, foi instalado conflito administrativo entre o Instituto Chico Mendes de Conservação e Biodiversidade – ICMbio, de um lado, e do INCRA e Fundação Cultural Palmares, do outro. Tal conflito foi submetido à Câmara de Conciliação e Arbitragem da Administração Federal – CCAF em 2003 (Proc. 54000.00183/2013) e ainda aguarda solução.
A demora na solução da divergência entre entidades no âmbito do Poder Executivo contribui, e muito, para o surgimento de conflitos como o presente. Enquanto se discute qual interesse público deve prevalecer ou em que termos vão se conciliar, os interesses privados, como os dos ora réus, procuram prevalecer.
Após a solução do conflito administrativo, o procedimento de titulação da comunidade poderá seguir seu curso. Neste ponto, a demora administrativa não pode ser interpretada em favor da Administração.
Em síntese, reconheço a existência dos requisitos autorizadores da concessão do pedido de liminar.
A fumaça do bom direito está patente pois se trata de comunidade remanescente de quilombo que ocupa a áreas há décadas e possuem posse superveniente coletiva de índole constitucional, devidamente reconhecida.
O risco da demora também é evidente pois se a tentativa dos ora réus tiver êxito em dimensões que extrapolam os limites da coisa julgada entre as partes, há forte risco de inviabilização da vontade constitucional em relação à comunidade do Cambury e o desalojamento de um número considerável de famílias.
No entanto, excepcionalmente, deve-se fixar prazo para vigência da liminar a ser concedida como forma de dar o mínimo de celeridade ao procedimento administrativo de reconhecimento, demarcação e titulação das terras ocupadas pela comunidade remanescente.
Por derradeiro, ressalto que estamos tratando de área ocupada por comunidade quilombola reconhecida e que, ao mesmo tempo, pertence a dois parques, um federal e outro estadual. O interesse público deve prevalecer.
Diante do exposto, defiro o pedido de liminar para assegurar a posse da comunidade remanescente do quilombo do Cambury em face dos réus, que poderão exercer o direito em relação a Genésio dos Santos, em respeito e nos termos do decidido na ação de reintegração de posse nº 0000003-15.1976.8.26.0642 da 1ª Vara da Comarca de Ubatuba.
Fixo, excepcionalmente, o prazo de vigência da presente decisão liminar de 90 (noventa) dias. Decorrido tal prazo, voltem os autos conclusos para reapreciação do pedido de liminar, tendo em vista as informações a serem apresentadas pelas autoras sobre o prosseguimento do procedimento administrativo acima citado.
Concedo o prazo de 10 (dez) dias para a parte autora juntar aos autos as principais peças da ação de reintegração de posse nº 0000003-15.1976.8.26.0642, em curso na 1ª Vara da Comarca de Ubatuba.Oficie-se à 1ª Vara da Comarca de Ubatuba.
Considerando que a área em questão também pertence ao Parque Nacional da Serra da Bocaina e ao Parque Estadual da Serra do Mar, oficie-se ao Instituto Chico o do primeiro e a Fundação Florestal, responsável pelo segundo.
Oficie-se, também, à Câmara de Conciliação e Arbitragem da Administração Federal – CCAF, dando-lhe ciência da decisão.
Oficie-se, ainda, à Policia Militar Ambiental para que tenha ciência da presente decisão.
Intime-se a Associação dos Remanescentes de Quilombo do Cambury, dando-lhe ciência da decisão.
Intimem-se. Citem-se.