Menina de 11 grávida de estupro no Chile é parabenizada pelo presidente pela “maturidade” de levar a gravidez adiante
por Clara Averbuck – CartaCapital
No Chile, uma menina foi estuprada repetidamente pelo padrasto dos nove (NOVE!) aos onze anos. Engravidou. O caso virou notícia internacional e cada vez que leio algo a respeito, tenho vontade de vomitar.
Primeiro foi a mãe, afirmando que as relações foram consensuais e que aquilo tudo era uma injustiça contra o parceiro dela. CONSENSUAIS. Relações consensuais de um adulto de mais de 30 anos com uma criança, dona mãe? Com a SUA FILHA? Por dois anos? Não. Não mesmo. Essa mãe deveria estar presa junto com o padrasto, já que é incapaz de defender ou dar qualquer apoio a sua filha.
Mas o horror não para por aí. O presidente do Chile declarou à imprensa que a menina “surpreendeu a todos com sua profundidade e maturidade ao dizer que, apesar da dor causada pelo homem que a estuprou, ela quer ter e cuidar do bebê”.
Caro senhor presidente do Chile, o senhor acha mesmo que uma criança abusada tem qualquer condição de tomar uma decisão dessas, a decisão de cuidar de outra criança? A menina disse, na televisão, que seria como ter uma boneca em seus braços. Eu, que já era adulta ao ter a minha filha, não posso imaginar nada mais distante de um bebê do que uma boneca, um objeto de plástico que não respira, cresce, não chora, não mama, não demanda.
Os “pró-vida” estão todos muito orgulhosos da menina. Que menina! Mas é claro que essa pobre criança foi levada a tomar essa decisão, foi levada a acreditar que isso seria o certo. Ou seja: não querendo acabar com “uma vida inocente”, acabam com outra vida inocente, a da menina abusada, estuprada e exposta dessa maneira.
O correto seria orientar a menina a interromper a gravidez, esclarecendo as fases de desenvolvimento do feto e explicando que ele só passa a ter atividade cerebral a partir da 12a semana de gestação. A pataquada religiosa deveria ser deixada de lado e a ciência deveria ser escutada. Nenhuma religião consegue provar onde começa a vida, então, usemos a lógica e os sistemas conhecidos.
Nas palavras do geneticista Eli Vieira, “para estabelecer se um embrião é um cidadão, o Estado deve ser informado pela ciência sobre quando surgem no desenvolvimento os atributos mais caracteristicamente humanos. Se a morte do cérebro é o critério médico que o Estado aceita para considerar o indivíduo humano como morto, o início do cérebro deve ser logicamente e necessariamente o critério para considerar o início do indivíduo, e não a fecundação.”
O aborto é ilegal no Chile. Como acontece em qualquer país onde as mulheres têm seus direitos reprodutivos negados, isso não impede que abortos sejam realizados. Por lá, 12% das mortes maternas ocorrem devido a abortos ilegais. No Brasil, esse número chega a 22%. Entre 2000 e 2002, estima-se que foram realizados entre 132,000 e 160,000 abortos ilegais no Chile. 40 milhões de abortos ocorrem por ano em todo o mundo. 10% (quatro milhões) ocorrem no Brasil, sendo um aborto em cada oito mulheres, 11.100 por dia, 463 por hora e 7,7 por minuto. A curetagem após aborto foi a cirurgia mais realizada no Sistema Único de Saúde (SUS), com 3,1 milhões de registros entre 1995 e 2007. Ou seja, se o aborto fosse descriminalizado e realizado de forma segura, menos dinheiro público seria gasto em procedimentos do tipo.
O Conselho Federal de Medicina do Brasil recomenda que o aborto seja descriminalizado até a 12a. semana. Em países onde o aborto é permitido, esse tempo varia entre 10 e 13 semanas. Por enquanto, o aborto é crime no Brasil, salvo em caso de estupro ou de risco de vida materno, mas isso pode ser ameaçado se o Estatuto do Nascituro for aprovado.
Voltando ao Chile: o presidente disse que é “a favor de proteger a vida humana e dignidade a partir do momento da concepção até a morte natural”. Me parece que ele é um daqueles que só se compadeceria caso um estupro que resultasse em gravidez, ou mesmo uma gravidez indesejada, acontecesse com alguém muito próximo a ele. Esse discurso geralmente desmorona nesses momentos. A maior parte dos pró-vida só são pró-vida quando se trata de teoria – e da vida dos outros, bem longe deles, ou, ainda, apenas as vidas dos que ainda não nasceram. Fosse um caso de gravidez adolescente na família, muitos recorreriam a clínicas clandestinas e esqueceriam a moral que tanto pregam. Fosse o caso de uma amante grávida, pagariam o aborto e o silêncio e esqueceriam toda essa “moral”.
E enquanto ficamos à mercê da “moral” dos pró-vida, a vida daquela menina – e de tantas outras meninas e mulheres nos países em que o aborto é crime – se esvaem pelo ralo.
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Enviada para Combate Racismo Ambiental por José Carlos.