Enfrentando, por um lado, o total descaso e a omissão do poder público em relação às políticas de saúde, educação e infraestrutura básica e, por outro, a negação do direito de terem suas terras tradicionais demarcadas, indígenas das comunidades Guarani Mbya indignam-se com a paralisação dos processos demarcatórios e com a opção governamental de privilegiar “interesses de setores que exploram as terras, devastam o meio ambiente e nos discriminam”.
Em documento encaminhado ontem (11) ao governador do estado, Tarso Genro, e ao ministro da Justiça, José Eduardo Cardoso, além de solicitarem a urgente demarcação das terras indígenas no Rio Grande do Sul, apresentam propostas específicas e prioridades para algumas terras.
Anexo, ao documento, eles encaminham uma Nota Pública feita pela Via Campesina do estado, em que esta articulação responsabiliza o Estado pelos conflitos fundiários e “denuncia a manobra de grandes fazendeiros latifundiários de vários pontos do Brasil, grileiros de terras indígenas e quilombolas, que usam o argumento de defender os(as) pequenos(as) agricultores(as) como escudo para defender suas terras mal havidas e hoje reconhecidas constitucionalmente como terras indígenas e quilombolas”. Na Nota, a Via Campesina também apresenta propostas concretas para a solução destes conflitos. Leia abaixo os dois documentos.
Documento das comunidades Guarani Mbya, do Rio Grande do Sul, ao governador Tarso Genro e ao ministro da Justiça Jose Eduardo Cardozo
O Conselho de Articulação do Povo Guarani do Rio Grande do Sul (Capg) e as lideranças das comunidades Mbya Guarani reuniram-se mais uma vez, no dia 11 de julho, para discutir os problemas que afetam as comunidades. Nesta oportunidade refletimos sobre a realidade indígena em nosso estado e no país. Foi com muita preocupação que constatamos que o governo federal, nos últimos anos, tem negado nosso direito à demarcação das nossas terras e, para piorar, vem articulando e planejando medidas que limitam ainda mais os nossos direitos. Citamos como exemplo: a Proposta de Emenda à Constituição (PEC) 215/00, que pretende transferir para o Congresso Nacional a demarcação das terras indígenas e também de nossos irmãos quilombolas; a Portaria da Advocacia Geral da União (AGU) de número 303, que pretende impor as 19 condicionantes do julgamento do processo da Terra Indígena Raposa Serra do Sol nos procedimentos de demarcações de terras; e o Projeto de Lei Complementar (PLP) 227/2012 que pretende impor novas regras no procedimento de demarcação de terras e inviabilizar nossos direitos Constitucionais. Nós somos contra e repudiamos a PEC 215/00, a Portaria 303/2012 e o PLP 227/2012.
Senhor Ministro, nós estamos indignados com a iniciativa de paralisação das demarcações. Não entendemos porque o governo, ao invés de cumprir a Constituição Federal, prefere atender interesses de setores que exploram as terras, devastam o meio ambiente e nos discriminam. Nossas comunidades, em sua grande maioria, vivem sem terra, em acampamentos de beira da estrada e sem as mínimas condições de ter uma vida digna porque nos faltam saúde, educação, saneamento básico, água comida. Nos falta tudo e o governo federal, apesar de saber dessa nossa realidade, mandou paralisar as demarcações de nossas terras. Terra que é nossa esperança, que é nossa mãe.
Diante disso, nós, as lideranças Guarani das comunidades da Estiva, Lomba do Pinheiro, Itapuã, Canta Galo, Coxilha da Cruz, Passo Grande, Arroio Divisa, Irapuã, Arroio do Conde, Santa Maria, Lami, Mato Preto, Estrela Velha, Capivari, Varzinha, Torres, Interlagos, Água Grande, Pacheca, Nhacapetum, Petim, Riozinho, Barra do Ouro, Salto do Jacui e Capi Owi, manifestamos nossa insatisfação com a postura do governo federal em suspender as demarcações de terras e exigimos que assuma sua obrigação e cumpra a Constituição Federal.
Senhor Ministro, seguem as propostas que temos e sobre as quais solicitamos que o governo tome as devidas providências:
As demarcações de terras no Rio Grande do Sul são necessárias e urgentes. As famílias estão sofrendo há décadas. Praticamente todas as ocupações Guarani no estado apresentam problemas fundiários. Algumas situações são gravíssimas.
Um grave problema, atual e futuro, diz respeito ao pagamento das indenizações aos ocupantes não indígenas de nossas terras e esta é uma obrigação da Fundação Nacional do Índio (Funai), pois cabe a ela o pagamento das benfeitorias de boa fé. Pedimos entendimentos entre os governos federal e estadual no que se refere a essa situação.
Além disso, exigimos que sejam atendidas as demandas relativas às terras abaixo relacionadas:
1) Cantagalo
O Cantagalo é uma das aldeias mais antigas no estado. Os estudos já foram concluídos, tudo já foi feito, mas os agricultores ainda estão lá. Não aceitamos mais a demora na retirada dos ocupantes brancos. Já se passam anos da decisão do ministro e mais de quatro anos desde que a terra foi homologada pelo presidente da República, mas até agora eles estão lá. Tem famílias que estão pensando em ir embora. Além da demora na demarcação, as cercas estão abertas e os animais dos vizinhos entram na terra e comem as plantações da comunidade indígena. A comunidade está muito revoltada com a demora.
2) Mato Preto
Solicitamos que o Senhor Ministro publique imediatamente a Portaria Declaratória de nossa terra, uma vez que os estudos de identificação e delimitação foram concluídos e comprovam a tradicionalidade da ocupação Guarani naquelas terras. Quanto aos agricultores que ocupam nossas terras cabe ao governos federal e estadual estabelecerem um processo de diálogo para proceder as formas de indenização dos agricultores, no caso dos possuidores de títulos legítimos que sejam indenizados também pelas terras.
3) Irapuã
Agora que finalmente a Funai publicou o relatório circunstanciado de identificação e delimitação de nossa terra, solicitamos rapidez nos demais passos, que são a Portaria Declaratória e o Decreto de Homologação e, com isso, nossas famílias poderão ocupar e utilizar a terra e construir nossas casas longe da beira da estrada.
4) Estrela Velha
O Grupo Técnico (GT) constituído pela Funai iniciou seus trabalhos em 2008, no entanto até esta data não foi concluído. A TI Kaguy Poty seria uma das mais fáceis de encaminhar a demarcação no estado, pois os não indígenas manifestam interesse de sair da terra. Por causa da demora do GT, estão começando a mudar de ideia, e conflitos podem ocorrer. Exigimos que a pessoa responsável pelos trabalhos seja cobrada pela Funai para apresentar uma solução imediata.
5) Capivari, Lomba do Pinheiro, Estiva e Lami
Para estas antigas terras guarani foi criado um GT no ano de 2012, mas os estudos estão paralisados. Estas comunidades vivem em situações difíceis, com pequenas áreas para muitas famílias. Exigimos que o prometido seja cumprido, e essas terras sejam demarcadas. ESTA É A PRIORIDADE PARA 2013.
6) Itapuã, Ponta da Formiga, Morro do Coco, Arroio do Conde, Petim e Passo Grande
Estas terras já foram estudas pelo GT de identificação e delimitação nos anos de 2008 e 2009. Estamos aguardando a publicação do relatório circunstanciado. Solicitamos que os responsáveis e a Funai agilizem os procedimentos, pois as comunidades estão em áreas muito pequenas e aguardam as soluções o mais rápido possível.
7) Coxilha da Cruz
Aguardamos a solução para a completa regularização da Tekoha Porã desapropriada pelo governo estadual no ano de 2000, mas até hoje aguardando a finalização das indenizações e a regularização da terra. O governo estadual não cumpriu com o protocolo de intenções para terminar o pagamento dos proprietários. Atualmente a comunidade ocupa apenas a metade da área desapropriada, que é de 201 hectares.
8) Mata São Lorenço e Esquina Ezequiel
A Mata São Lourenço é uma das poucas áreas com matas boas na região das missões. A Funai deve encaminhar um GT, antes que essa mata seja terminada para dar lugar à monocultura. A Esquina Ezequiel, nas margens do Arroio Piratini, deve estar junto com o GT para a Mata São Lourenço, pois também é uma área importante para a formação de aldeia na região das Missões.
9) Santa Maria
A situação das famílias no município de Santa Maria é precária porque vivem numa área cedida pelo estado do Rio Grande do Sul, que não é suficiente para garantir a vida de nossas famílias. Por isso reivindicamos que a Funai crie um grupo de trabalho para a identificação e delimitação da terra Arenal.
10) Águas Brancas
Solicitamos que o processo para ocupação da TI Águas Brancas seja encaminhado, pois ela já está declarada em portaria.
Senhor Ministro, estas são nossas reivindicações mais emergenciais. Exigimos que a Funai priorize esta realidade e demarque e garanta a posse da terra para as nossas comunidades. Não estamos pedindo nenhum favor ao Senhor, apenas exigimos que se cumpra a Constituição Federal.
Atenciosamente.
*Em anexo apresentamos as propostas feitas pelo Movimento dos Pequenos Agricultores e pelas entidades que compõem a Via Campesina para o pagamento das indenizações dos agricultores que ocupam terras que estão em demarcação.
***********
Nota e Propostas da Via Campesiana – Rio Grande do Sul
Em defesa dos pequenos agricultores (as) que residem em áreas indígenas e quilombolas
Diante da situação difícil e dolorosa vivida por pequenos(as) agricultores(as) residentes em áreas identificadas e reconhecidas constitucionalmente como áreas indígenas e de quilombolas, os movimentos que compõe a Via Campesina vêm diante da sociedade e dos governos federal e do Rio Grande do Sul, defender o seguinte:
O Estado é Responsável
Esta situação foi criada no passado pelo próprio Estado colonizando, vendendo, escriturando e cedendo aos pequenos(as) agricultores(as) terras que pertenciam aos povos indígenas e à população negra. Portanto, cabe ao Estado mediar o conflito instalado, negociar e encontrar soluções que atendam aos direitos dos pequenos agricultores(as) que foram colocados, em épocas passadas, em áreas reconhecidas pela Constituição como terras indígenas e quilombolas.
A Via Campesina reconhece e defende os direitos dos índios e quilombolas às suas terras e territórios reconhecidos pela Constituição.
Solução Existe, Basta Vontade Política
A Via Campesina propõe aos governos, baseada inclusive em ações já desenvolvidas e negociadas em governo passados, como forma de resolver a situação, reassentar as famílias de pequenos(as) agricultores(as) residentes em áreas reconhecidas como indígenas ou quilombolas, garantindo a todos os seus direitos à terra, casa e vida digna.
A Via Campesina propõe:
Módulo Mínimo por Família – mais de 18 hectares
Reassentamento de todas as famílias com área de terra do tamanho mínimo do módulo da região (na maioria dos casos, áreas maiores de 18 hectares);
Terra para Filhos e Filhas Maiores de 18 anos
Reassentamento dos filhos e filhas maiores de idades das famílias residentes em áreas indígenas ou quilombolas, também com área do tamanho do módulo da região;
Terra Por Terra
Reassentamento de pequenos agricultores de até quatro módulos que tenham áreas maiores de um módulo nas áreas indígenas ou quilombolas, reassentados com área igual a que tem atualmente, recebendo terra por terra.
Terra na Região onde vivem as Famílias
Reassentar as Famílias na mesma região onde está sendo reconhecida a área indígena ou quilombola.
Casa, Energia, Água, Escolas e Infraestrutura
Estes reassentamentos terão que receber condições de moradia, luz, água e infraestrutura para garantir condições dignas de vida para as famílias a serem reassentadas.
Denunciamos as Manobras de Políticos e Latifundiários Grileiros de Terras Públicas
A Via Campesina não aceita, rechaça e condena toda e qualquer forma de violência cometida contra indígenas e quilombolas em luta por seus direitos.
A Via Campesina não aceita que erros e injustiças históricas promovidas pelos vários governos ao longo dos anos, o que implica responsabilidade do Estado, sejam hoje usados para jogar pobres contra pobres, negando os direitos de ambos e gerando insegurança, angústia e incertezas para todos, acirrando ânimos estimulando conflitos.
A Via Campesina denuncia a manobra de grandes fazendeiros latifundiários de vários pontos do Brasil, grileiros de terras indígenas e quilombolas, que usam o argumento de defender os pequenos(as) agricultores(as) como escudo para defender suas terras mal havidas e hoje reconhecidas constitucionalmente como terras indígenas e quilombolas.
Denunciamos também as tentativas legislativas (Projetos de Lei, PECs) de desmonte dos direitos constitucionais dos povos e comunidades tradicionais, pois são os mesmos que bloqueiam o avanço da reforma agrária e da agricultura camponesa.
Diante da gravidade do que está em disputa, a Via Campesina conclama todos os setores populares e progressistas a se manifestarem em defesa dos direitos de reassentamento dos pequenos(as) agricultores(as), em defesa dos direitos dos indígenas e quilombolas e exigir do Estado brasileiro que cumpra com suas responsabilidades e atribuições.
Porto Alegre, 07 de junho de 2013
Via Campesina Rio Grande do Sul