A Pública – Mais de 80% dos alvos de esquadrões da morte na Bahia são afrodescendentes; delegado nomeado para investigar o assunto é acusado de participar de tortura e assassinato.
Por Lena Azevedo*
Gleidson e Luciano. Dois meninos negros que cresceram juntos em Jaguaribe, na grande área de Cajazeiras, que com mais de 700 mil habitantes de baixa renda é quase outra cidade dentro de Salvador, capital da Bahia.
Gleidson, 20 anos, queria ser torneiro mecânico, já tinha feito um curso técnico e pretendia fazer outro. Vendia TV a cabo para ganhar a vida. A ambição era ter um bom emprego para sustentar a família que um dia iria formar, conta a tia. Luciano, 21 anos, também descrito por parentes como trabalhador e disciplinado, era Ogan de Oxossi (uma espécie de sacerdote no candomblé) no terreiro conduzido pelo pai de Gleidson, ali o babalorixá.
Há dois meses, no dia 13 de maio, ironicamente a data em que se celebra oficialmente o fim da escravidão, os dois amigos e vizinhos foram sequestrados em uma rua perto de suas casas por homens encapuzados que saíram de dois carros, um preto e um prata, e jogados no porta-malas. Por volta de 22h30, moradores vizinho à Estrada Velha do Aeroporto, alguns quilômetros adiante, ouviram tiros nas cercanias de um lugar de desova utilizado por grupos de extermínio. Foram sete disparos em cada um dos garotos, que se somaram às estatísticas de cerca de 20 jovens assassinados por final de semana em Salvador – e pouco mais de uma linha na notícia de jornal.
Os corpos de Luciano e Gleidson foram levados ao IML no início da madrugada do dia 14 de maio, terça-feira, e de manhã os familiares começaram a chegar. Há muita dor e revolta com a previsível impunidade dos assassinos. Não sem motivo, como se veria depois: os laudos cadavéricos, por exemplo, demoraram quatro meses para sair.
Ninguém quer conversar com estranhos, o medo e a desconfiança imperam nas famílias das vítimas. O marido da tia de Luciano foi sintético: “Não sei como foi. Só sei que eu perdi meu sobrinho, perdi alguém que amava muito”. A mãe, disse apenas que Luciano trabalhava e era um “menino de bem”.
Faltava documentação para consumar o reconhecimento dos dois e os legistas do IML trabalham só até às 16 horas. Um princípio de incêndio encerrou o expediente mais cedo e as famílias partem sem os corpos dos meninos.
O IML Nina Rodrigues tem esse nome em homenagem a um médico adepto da teoria lombrosiana, tristemente célebre na América Latina pela famigerada afirmação de que o cérebro do negro é inferior ao do branco. Nina Rodrigues também defendeu a esterilização para aperfeiçoamento da espécie humana como método de prevenção do crime.
Só na tarde de quarta-feira o corpo de Gleidson foi para o Bosque da Paz, o cemitério perto de seu bairro. Luciano só foi sepultado na quinta-feira, porque não tinha vaga no Cemitério Municipal de Brotas. Ele devia ser enterrado às 11h30, mas uma greve de ônibus deixou o trânsito mais caótico do que o habitual e o corpo chegou quase às 13 horas.
O velório no Cemitério de Brotas não dura mais de meia hora. Todo dia tem muitos enterros e a capela é minúscula. A chuva intermitente contribuía para o clima tenso, agravado pela espera. Uma criança foi velada antes e a família se abrigou debaixo da única árvore do cemitério, praticamente um matagal abandonado.
Do lado de fora, policiais com fuzis param motos e carros para uma blitz. Um grupo que fumava crack nos fundos do cemitério decidiu sair dali, assim como uma senhorinha à procura de um bico para garantir o alimento do dia.
Os primos de Luciano, os amigos, os irmãos de terreiro transpiram revolta no olhar e nos punhos fechados. O silêncio é uma maneira de proteger a dignidade das vítimas, ameaçada pela acusação que pesa contra os que são assassinados pela polícia. Alguma ele fez, sussurram os vizinhos.
Luciano era filho de santo e pelas leis do candomblé tem que voltar para o chão, devolver a terra emprestada por Oxalá para dar vida e forma ao homem. Não pode ser enterrado em carneiro (cemitério vertical, com gavetas). Os cantos em yorubá do ritual de despedida, reservado apenas aos irmãos do candomblé, são ouvidos do lado de fora da minúscula capela.
No cortejo até a cova, a irmã mais nova do rapaz e a mãe não contêm o desespero. Algumas flores e uma coroa feita com papel e plástico, com uma oração católica, adornam tristemente o caixão que desce à terra novamente acompanhado pelos cantos aos orixás, especialmente a Oxossi, o guardião do jovem, para que apesar da morte bruta sua alma encontre um caminho de paz.
A história do menino Luciano acabou em um epitáfio sem nome, identificado apenas como o C 48 QE do Cemitério de Brotas.
Mais de 90% das vítimas são afrodescendentes
Entre 2009 a 2012, 6.483 pessoas foram assassinadas em Salvador – a maior parte das vítimas na faixa dos 19 aos 24 anos. Outra pesquisa, essa realizada pelo Fórum Comunitário de Combate à Violência (FCCV) apontou que entre 1998 e 2004, das 6.308 pessoas assassinadas em Salvador, 5.852 eram negras ou pardas. Um índice de 92,7% frente aos 85% de afrodescendentes que à época formavam a população da capital da Bahia.
A polícia não sabe quantificar o percentual praticado por grupos de extermínio, mas estudos realizados por organizações da sociedade civil e pesquisadores da Universidade Federal da Bahia entre 1996 e 1999 (“A Outra Face da Moeda”, 2000, CJP), quando 3.369 pessoas foram mortas em Salvador, os crimes cometidos por grupos de extermínio representavam 10,8% – e 46% dos acusados identificados eram policiais.
A existência de crimes com características de extermínio em Salvador foi admitida publicamente pelas autoridades baianas durante a greve da Polícia Militar no Estado, de 31 de janeiro a 11 de fevereiro de 2012. À época, o delegado Arthur Gallas, diretor do Departamento de Homicídios e Proteção à Pessoa (DHPP), declarou que 45 homicídios, dos 187 ocorridos nesses 12 dias, tinham características de extermínio: as vítimas, a maioria delas moradores de rua, “foram algemadas ou amarradas, e atingidas na cabeça por assassinos encapuzados, que chegaram ao local em carros com placas clonadas e armados com munição de grosso calibre”.
Apenas sete assassinatos e duas tentativas de homicídio, porém, esses cometidos em duas chacinas que mataram 32 pessoas na noite de 3 de fevereiro, a mais violenta da greve, foram encaminhados para o Ministério Público. Os suspeitos dessas duas chacinas, os militares Donato Ribeiro Lima, Willen Carvalho Bahia, Samuel Oliveira Menezes, e Jair Alexandre dos Santos chegaram a ser presos, mas retornaram às ruas meses depois por determinação judicial sob condição de não se aproximar de parentes das vítimas e com a obrigação de comparecer trimestralmente em juízo, conforme resolução nº 0533/2012, publicada no Diário Oficial de 4 de outubro de 2012.
A polícia também tem aumentado o número de homicídios cometidos em serviço. Dados da Corregedoria Geral da Secretaria de Segurança Pública mostram que, entre 2011 e 2012, as mortes ocorridas nos chamados autos de resistência passaram de 97 para 151, 124 provocadas por PMs, outras 27 por policiais civis, e 22 em ações conjuntas das duas polícias.
E essa violência tem endereço, como constata o Mapa da Violência de 2012: para cada branco assassinado 15 negros são executados na capital. Na região metropolitana de Salvador, a cidade de Simões Filho foi classificada pelo mesmo estudo como a que mais mata negros jovens (400 por 100 mil habitantes) no país. Na capital, os locais mais vulneráveis para negros jovens são os que compõem o Subúrbio Ferroviário (com 22 bairros e 600 mil habitantes) e do Miolo de Salvador (cerca de 800 mil habitantes, distribuídos em 41 bairros populares, localizados entre a BR 324, Avenida Paralela, fazendo divisas com as cidades de Simões Filho e Lauro de Freitas).
Nessas mesmas regiões ficam os bairros com maior índice de atuação dos grupos de extermínio na capital baiana, segundo diversos relatórios, dentre eles o da CPI do Extermínio do Nordeste (2003 a 2005): Boiadeiro, Lobato, Plataforma, Paripe, Periperi, Coutos (Subúrbio Ferroviário), Bairro da Paz, Itapuã, São Caetano, Pirajá, Cajazeiras XI, Patamares, Vila Canária, Sete de Abril, Liberdade, Engenho Velho da Federação, Vale das Pedrinhas, Valéria, Palestina e Nordeste de Amaralina, além de Simões Filho.
O tempo passa, mas o modo de agir desses grupos permanece inalterado. Homens com capuzes (chamado de brucutu) sequestram jovens durante a noite e a madrugada, usando carros com placas frias. As vítimas são eliminadas e os corpos deixados em pontos de desova próximos ao local do sequestro.
Acusado de participar de extermínios, delegado chefia investigações
A partir das informações trazidas pelo Mapa da Violência, o governo Jaques Wagner montou duas frentes de trabalho no município de Simões Filho para investigar homicídios e também os locais de encontro de cadáveres. O coordenador de ambas as frentes, porém, é o delegado titular do município, Adan Filho,, apontado pela CPI de Extermínio do Nordeste (2005) como integrante de um desses grupos. Segundo os parlamentares, 30 crimes desse tipo são atribuídos ao delegado, entre eles tortura e homicídios (veja box).
As estatíticas apresentadas por Adan Filho são contraditórias. Segundo ele, no ano passado, 77 das 184 vítimas de assassinatos em Simões Filho (a estatística oficial da Secretaria de Segurança Pública contabiliza 151 no mesmo período no município), foram encontradas em um antigo local de desova muito utilizado por esquadrões, “na região de um centro industrial com entorno de mata atlântica bem densa, em local pouco habitado”. O delegado afirma ainda que 50 corpos eram provenientes de bairros da periferia de Salvador, na divisa com o município. Ou seja, 41,8% das vítimas localizadas nessa área de desova foram executadas por esses grupos, que incluem integrantes das policias militar e civil, agentes de segurança privada e comerciantes da periferia de Salvador região metropolitana.
Uma cifra impressionante, mas que pode ser ainda maior de acordo com outras informações apresentadas pelo mesmo delegado. Segundo ele, até outubro do ano passado quatro corpos por semana eram desovados nesse local. Sendo assim, ao final de 12 meses, 192 pessoas teriam sido mortas por esses grupos, e não apenas as 77 contabilizadas, oito além superior do número total de homicídios anunciados por ele (184).
Ele também diz que, com a instalação de câmeras de videomonitoramento e a realização de blitzes a partir de outubro de 2012, o quantitativo de cadáveres encontrados no local baixou pela metade. “Evidentemente, outros municípios próximos tiveram um acréscimo, porque os grupos começaram a desovar em Itinga (bairro de Lauro de Freitas), Mata de São João e Camaçari”, completa.
Isso significaria que os grupos de extermínio majoritariamente instalados no Subúrbio Ferroviário, em vez dos 12 km até Simões Filho, estariam percorrendo distâncias de 24 km (Lauro de Freitas) a 45 quilômetros (para desovar em Camaçari) sem interceptação policial.
80% dos crimes em Salvador não são investigados de acordo com MP
O Ministério Público Estadual acusa a polícia de não investigar 80% dos homicídios em Salvador e região metropolitana. Dos 1.659 assassinatos registrados em 2012, 1.340 não tiveram sequer inquérito instaurado, estima o coordenador do Grupo de Atuação Especial de Combate às Organizações Criminosas e de Investigações Criminais (Gaeco) do Ministério Público da Bahia, promotor Ariomar Figueiredo.
“E estou sendo muito generoso quando falo que, do total de homicídios no ano, só 20% de inquéritos chegam ao MP. O percentual na prática está bem abaixo disso”, afirma Figueiredo. Embora o número de execuções seja alto, não mais de dois grupos de extermínio são indiciados por ano, segundo ele, porque falta inquérito para formalização da denúncia.
Dos casos que viraram denúncias efetivas ao Judiciário, a maioria não tinha perícia técnica e muitos foram devolvidos para novas investigações ou arquivados por inconsistência. “A polícia diz que faz perícia em todos os casos, mas essa documentação nunca vem anexada”, diz Figueiredo.
O promotor explica ainda que o laudo cadavérico, importante para o oferecimento da denúncia, demora muito tempo para ser emitido pelo IML – entre três a quatro meses, como no caso de Gleidson e Luciano. “Seria importante termos o laudo em mãos em 48 horas no máximo, mas ele não sai porque os delegados insistem em pedir exames de alcoolemia e toxologia da vítima. Não estou dizendo que eles são desnecessários. Entendemos que são exames orbitais. O principal para nós é saber a quantidade de tiros, o tipo de arma, ter o croqui do corpo com entrada e saída dos projeteis, o resultado da perícia, as fotografias”.
Mesmo quando chegam ao júri, casos que envolvem policiais têm resultados insuficientes, diz o promotor: “Há hoje uma legislação mais rigorosa se constatado que o crime foi cometido por um grupo de extermínio, mas na hora da efetivação dessas punições há um abrandamento. Crime de policial militar, por exemplo, a gente faz uma hora e meia ou mais de sustentação oral no júri, mostrando que o cidadão responde a mais três ou quatro crimes, comprovando que as testemunhas são ameaçadas, mas os próprios jurados ficam atemorizados. Resultado: os camaradas saem sem condenação, muitas vezes reintegrados à corporação”, relata o promotor.
Segundo ele esses esquadrões da morte normalmente agem nos bairros mais pobres de Salvador, que têm população majoritariamente negra. “Esses grupos surgiram como uma ação de ‘assepsia’, como justiceiros, para eliminar da área aqueles que representassem uma ameaça ao negócio local, normalmente na periferia. Agem com uma lógica própria. Bandido para essas pessoas é quem eles acham que é. O perfil das vítimas é invariavelmente jovem e negro, com passagem ou não pela polícia. A lentidão da Justiça, a sensação de impunidade e uma certa chancela da sociedade colaboram para o aumento de homicídios”, detalha a promotora Ana Rita Cerqueira Nascimento, integrante do Conselho Nacional do Ministério Público e responsável por denúncias que levaram à condenação por homicídios diversos cinco policiais militares e um civil que integravam um grupo de extermínio em Santo Antonio, a 150 Km de Salvador.
Ela acrescenta que nos últimos anos os promotores notaram uma mudança no perfil dessas organizações. “Hoje, vemos esses grupos com uma dinâmica de milícia, associados ao tráfico”, diz, confirmando a percepção de Figueiredo:“O extermínio é muito fluído. Temos casos de pessoas que eram ligadas ao crime e denunciaram policiais civis que iniciaram como ‘parceiros’ do tráfico e, de olho no rendimento, mataram o traficante e posteriormente começaram a eliminar os próprios colegas”, conta. “Por isso, não faço muita separação se é grupo de extermínio formado por policial civil, por militar, segurança particular, se é X-9, ou traficante, o fato é que resulta sempre na mesma coisa: a morte de um ser humano”, conclui o promotor.
Delegado nomeado para investigar matadores é acusado de tortura e homicídios
O delegado Adailton Adan, indicado no final de 2012 pelo governo para coordenar duas frentes de trabalho que investigam pontos de desova utilizados por grupos de extermínio e a dinâmica dos homicídios em Simões Filho (cidade da região metropolitana), foi apontado pela CPI de Extermínio do Nordeste (2005) como integrante de um desses grupos. Ao todo, os parlamentares informaram a existência de 30 crimes atribuídos o delegado, entre eles tortura e homicídios.
No Tribunal de Justiça da Bahia, existem vários processos em que Adan figura como réu em ações penais em cidades no interior da Bahia e na Capital. São três ações em Feira de Santana (duas em varas criminais e outra na Fazenda Pública, movida pelo Ministério Público Estadual); uma em Itaberaba, em que o delegado e mais dez acusados, entre eles policiais civis e militares, respondem a processo de tortura contra 19 pessoas.
Em Juazeiro, Adan responde por quatro ações penais e em Salvador, mais duas em varas criminais, sendo uma delas também por tortura. A denúncia contra Adan e mais nove (não especifica se são policiais civis), neste caso foi feita pelo Ministério Público Estadual sob acusação de tortura cometida na cidade de Candeias, Região Metropolitana de Salvador.
Adailton Adan recorreu ao Superior Tribunal de Justiça para anular a condenação de um dos processos de Feira de Santana. Seu advogado, Pedro Ferreira Batista, requereu a nulidade da ação penal “por estar embasada em procedimento investigatório presidido pelo Ministério Público” e defendeu a prescrição da pena. O delegado foi condenado, em 3 de abril de 2003, a seis meses de detenção e suspensão da função policial por 60 dias, com perdas de vencimento e vantagens correspondentes ao período pela prática de lesão corporal e abuso de poder. Em 2006, Adan ingressou com um habeas corpus no STJ, caso que foi analisado somente em 11 de fevereiro de 2008, pela ministra Laurita Vaz. A ministra votou, neste caso em que é acusado de prática de tortura, pela extinção da pena em função da prescrição (o prazo prescricional é de dois anos e até 2006 ele não havia cumprido a sentença). Leia o documento do voto da ministra Laurita Vaz aqui.
Crueldade e impunidade marcam crimes de policiais
Perseguidas pelos matadores, famílias sofrem com falta de apoio do Estado e com desleixo nas investigações; casos já foram encaminhados para ONU e OEA
A Salvador que atrai milhares de brasileiros e estrangeiros para o Carnaval com seus ritmos afro vive um apartheid violento nas ruas, como se a imensa maioria negra não tivesse direitos. Enquanto o Índice de Desenvolvimento Humano (IDH) do bairro mais rico da capital, Itaigara, com 17 mil habitantes, é semelhante ao da Noruega (IDH 0,971), os 45 mil moradores de Periperi (IDH 0,668), localizado no Subúrbio Ferroviário, que concentra mais de 50% dos homicídios da capital baiana, tem qualidade de vida pior do que a do Gabão.
É esse caldo de cultura que favorece o descaso das autoridades baianas na investigação e no apoio aos familiares das vítimas de matadores – praticado por policiais militares e civis, seguranças particulares e outros integrantes de milícias, quase sempre por preconceito ou vingança. O relato de alguns dos principais casos documentados por familiares e movimentos sociais é mais contundente que qualquer explicação. Leia abaixo:
1996- Um menino estava em frente a um supermercado na região da Paralela e sem querer pisou no pé de um policial, um típico matador. Foi perseguido e assassinado a tiros. O mesmo policial esperou que o irmão do garoto assassinado completasse 18 anos e o executou, “para evitar que ele pensasse em se vingar”. O caso é um dos 20 pesquisados pela socióloga Vilma Reis no trabalho de graduação “Operação Beiru: falam as mães que tombaram”. Vilma conta que no dia da entrevista com essa mãe a casa começou a ser rondada. “Uma coisa é a vítima te dizer que está sendo seguida, outra é você constatar. Naquela hora eu pensei: coloquei aquela mulher em risco. Saí muito angustiada. Não aguentei e voltei. E ela me disse: “Todos os dias eu vivo isso. É o mesmo policial que matou meus dois filhos’. Ou seja, o assassino desenvolveu uma espécie de posse em relação àquela família. É uma coisa louca e de um desmando total. Aquela mulher recorreu a diversas instituições sem conseguir encontrar nenhum tipo de proteção, ou responsabilização do assassino pela morte dos filhos.”
2001 – Caso narrado na CPI de Extermínio no Nordeste (2005) que ocorreu no interior da Bahia, em um lugar chamado Cruz das Almas: “Na semana em que um policial militar foi assassinado por alguém de nome Daniel, cinco jovens foram executados no final de semana porque se chamavam Daniel ou tinham parente chamado Daniel”.
2007 – 1º de Março. Clodoaldo Souza, o Negro Blul, 22, e Cléber de Araújo Álvaro, chamado de Bronka, 21, ambos do movimento hip hop e da “Campanha Reaja ou Será Morto, Reaja ou será morta” foram atacados depois de uma apresentação no Pelourinho, centro de Salvador, quando retornavam a pé a Nova Brasília, onde moravam. Bronka sobreviveu porque se fez de morto. E foi ele quem relatou o crime: “A gente já tinha passado pelo ponto de desova da Estrada Velha do Aeroporto, quando fomos parados por policiais militares em uma viatura. Eles pediram que a gente levantasse a camisa para ver se tinha arma. Pouco depois deles saírem, apareceram dois homens armados e à paisana. Eles nos obrigaram a ficar de joelhos, a, colocar as mãos na cabeça e tirar os bonés. A gente chegou a falar que não tinha feito nada, mas eles foram metendo bala na covardia. Blul chegou a pedir: “Por favor, minha vida”. E os caras, debochando disseram: “e agora, negão, cadê vocês? Reaja”. Os assassinos fugiram e deixaram no chão uma escopeta.
Bronka foi levado para o Hospital Geral Estadual (HGE), em Salvador. A família, temendo pela vida do rapaz, já que o crime tinha como autores policiais, chamou Andreia Beatriz Silva dos Santos e Hamilton Borges, coordenadores da Campanha Reaja. “Acionamos o governo para que Bronka fosse transferido para outro hospital, porque não tinha segurança no HGE, não confiávamos na polícia. Ele foi transferido para o Hospital das Clínicas. Fizemos tudo para que ele não fosse descoberto, mas o próprio governo o entregou para a delegada da 10ª, que queria ouvi-lo. Ele, que era a vítima, passou a ser suspeito virou, na perspectiva do Estado, réu. Sumiram com os documentos dele do hospital, de sua casa, sequestraram sua a mãe”, lembra Andreia Beatriz.
Hamilton teve que se esconder da polícia por exigir do governo que cumprisse a obrigação de investigar o caso. “Eu tive que ficar um tempo num terreiro, na casa de Oxumaré. Mas em vez de fugir, porque eu não devo nada, fui a um evento do Ministério Público, que estava cheio de gente da segurança pública, polícia militar, civil. Cheguei lá, me identifiquei e disse: ‘Vocês estão me procurando, tem que ser oficialmente. Eu tô aqui. Porque vocês estão me procurando? Gerou aquele constrangimento’. Outras três meninas que faziam o mesmo tipo de trabalho de Blul tiveram as casas invadidas, vasculhadas. Nossos telefones foram grampeados, várias pessoas nossas presas e não eram usuários de droga nem nada, mas eles (policiais) plantavam drogas para criminalizar as pessoas. Tudo isso foi o que gerou a partir da morte de Blul”, relata.
Andreia Beatriz, lembra que a Campanha Reaja conseguiu, com doações, mudar a família de bairro, já que o governo não estava garantindo a proteção de Bronka e familiares.
“O Estado vitima por vários aspectos quando fere, tenta matar, como quando negligencia, não dá o atendimento do SUS. Tudo foi feito por nós, porque o governo não fez nada, pelo contrário. Até a medicação tivemos que providenciar. Montamos uma rede de cuidados: cuidado físico, de saúde mental da família. Ele ficou quase um ano sem andar, com projeteis alojados no corpo, na virilha, que afetou bastante o movimento. Voltou a andar, mas continuou com sequelas até ser morto”. Seis anos depois da chacina, em 18 de maio de 2013, Bronka foi executado com um tiro na cabeça disparado no meio da rua, no bairro onde morava (ele e a família tinham se mudado de Nova Brasília após a chacina de 2007).
2007 – Conhecida como Chacina do Calabetão, um bairro na periferia de Salvador. A líder do Movimento Sem Teto da Bahia, Aurina Rodrigues Santana, 44 anos havia denunciado policiais militares por tortura de seus dois filhos adolescentes, em maio. Os PMs invadiram a casa de Aurina e deram chutes, socos, bateram com barras de ferro e sufocaram seus filhos com sacolas plásticas. Os militares ainda jogaram óleo quente na cabeça do rapaz.
Em 14 de agosto, uma semana após o depoimento de Aurina e dos filhos na Corregedoria da PM, em que ela e os adolescentes afirmaram que poderiam reconhecer os torturadores, a casa da família foi invadida por policiais. Foram mortos a tiros Aurina Rodrigues Santana, o filho Paulo Rodrigo Santana, 19, e Rodson da Silva Rodrigues, 28, companheiro da líder dos Sem Teto. A filha mais nova, de 13 anos, escapou porque não estava em casa na hora do crime.
Os executores ainda deixaram junto aos corpos 48 trouxas de maconha e 30 pedras de crack numa tentativa de envolver a família com o tráfico de drogas e atribuir as mortes à disputa entre grupos rivais de traficantes. O Centro de Defesa da Criança e do Adolescente Yves de Roussan (CEDECA/BA), o Movimento Negro Unificado (MNU), a Justiça Global, e outras dez organizações não governamentais enviaram denúncia à ONU. Nenhum PM foi responsabilizado pelos crimes.
2008 – 22 de janeiro. Parente de um policial teve a bicicleta roubada. O trapezista Ricardo Matos dos Santos, 21, jogava futebol com vizinhos em uma quadra no bairro Boca do Rio, comunidade Bate Facho, por volta das 23h55. Dois carros pararam em frente ao campo e futebol, homens desceram abrindo fogo contra todos. “Ricardo foi atingido na perna e caiu. Ainda assim ficou de pé, levantou os braços e se identificou. Ele ainda disse aos policiais que não era quem eles procuravam, mas foi colocado no chão e executado com mais sete tiros”, relata o pai do rapaz, Jorge Lázaro Nunes dos Santos.
O trapezista Ricardo Matos morava em Belo Horizonte, trabalhava no Le Cirque e estava fazendo formação para ingressar no Cirque du Soleil e mudar para a França. Ele tinha ido passar as férias com a família. Após o crime, os pais e quatro irmãos mais novos de Ricardo tiveram que deixar a casa própria, onde moravam. Os parentes chegaram a ser incluídos no Programa de Proteção à Testemunhas (Provita) por pressão do movimento social, articulado em torno da Campanha Reaja e do Circo Picolino, mas desligados em novembro do mesmo ano sob alegação de “reiteradas quebras de normas, incompatíveis com a permanência na proteção”.
Estado não apoia vítimas nem investiga crimes
Hamilton Borges, do Quilombo Xis e da Campanha “Reaja ou será morto, reaja ou será morta”, conta que sucessivas vezes cobraram do estado proteção à família. “Nós questionamos o desligamento. Quebrar norma é o pai correr atrás de tudo quanto é instituição para ver o caso de seu filho chegar a julgamento? Este caso só andou por insistência de Lázaro. Desqualificar familiares de vítimas tem sido uma estratégia muito conveniente para o Estado”, reclama Hamilton.
Segundo ele, Jorge Lázaro tentou que sua família fosse incluída no PPCAM, em função de ter filhos adolescentes sob ameaça de vida, e a reinclusão no Provita. “Os dois programas negaram e no dia 10 de março de 2013 mataram o irmão de Ricardo, Enio Matos (19 anos), a tiros no Bairro da Paz. O Estado é responsável por esses extermínios”, acusa o ativista.
A família dos dois meninos desmoronou após o homicídio de Ricardo e passou a não ter paradeiro certo. A mãe entrou em depressão profunda. O pai tomou como missão de vida responsabilizar os três PMs acusados do primeiro crime, já que do segundo não há nem testemunhas ou informações, e percorreu uma infinidade de instituições públicas em busca de justiça: SSP, Polícia Civil, Comissão de Direitos Humanos da Assembleia Legislativa, Secretaria de Direitos Humanos e Justiça da Bahia, Ministério Público estadual e Federal, Ouvidoria, entre outras. Nessa busca, conseguiu um documento com escutas telefônicas autorizadas que revelam pouco do caso, mas deixam entrever que existe participação de um oficial e que seria protegido pela instituição, além de uma “irmandade”, uma ação de grupos de extermínio com participação de PMs.
Após a morte de Ênio, pressionado pelos movimentos sociais, o governo arrumou uma proteção para a família no mínimo inusitada: colocou a mãe e duas filhas adolescentes numa casa que abriga mulheres vítimas de violência, e Jorge Lázaro e o menino de 14 anos em um abrigo para moradores de rua na periferia de Salvador. Há seis anos os filhos não frequentam a escola, a família não tem renda nem perspectiva para sair dessa situação.
Na prática, eles só contam com a solidariedade dos movimentos sociais. A Campanha Reaja buscou doações de dinheiro, alimentos e roupas e está tentando conseguir um local seguro para juntar novamente a família. A ideia é que os jovens consigam retomar os estudos e os pais sejam assistidos por psicólogos e retomem a vida. As sequelas são muitas. A dor e a loucura são muito próximas e o futuro parece algo muito distante da realidade dos Matos.
No próximo dia 27 de julho acontecerá uma audiência de instrução e julgamento dos acusados da morte de Ricardo Matos: os soldados Marco Antônio Carvalho Santa Bárbara, José Roberto dos Santos e Adilson José da Silva Souza, que à época eram lotados na 39ª Companhia Independente (Imbuí/Boca do Rio).
O caso está sendo enviado pelo Quilombo Xis e Justiça Global para a Comissão de Direitos Humanos da OEA.
2012 – Quarta-feira, 22 de agosto, 17h30. Um dia chuvoso e frio em Salvador. O barbeiro Emerson da Fonseca, 25 anos, que a família chamava de Pururuca, dormia com a filha de três meses em um dos cômodos da casa, num dos becos no Nordeste de Amaralina, quando três homens que se diziam policiais abriram a porta da sala que estava destravada. A avó de Emerson, dona Maria José, uma senhora de 76 anos, até pensou que era o outro neto de 17 anos. Assustou-se ao ver aqueles homens de preto, com coletes à prova de balas, capuz e luvas.
Os homens apontaram a arma para avó e para a filha, tia de Emerson, que estava deitada no quarto colado à sala e pegaram o Emerson. Impossibilitada de andar por sofrer de hidroencefalia, a tia começou a gritar: “Deixe ele moço”. Um dos policiais apontou a arma para ela e a mandou calar a boca. A mãe do jovem, Joselita da Fonseca, conhecida como Nega, que vive de vender salgados com a mãe em uma barraca do bairro, estava nos fundos da casa. Ao ouvir os gritos correu. Perguntou à polícia para onde iam levar o filho, porque queria ir junto. Eles disseram que o levariam para a DP de Roubos e Furtos e um dos homens bateu no peito de Nega impedindo que ela tentasse ir com eles. “Eu ainda disse que meu filho não era ladrão, que estavam levando a pessoa errada”, contou. Além de levarem Emerson, os policiais carregaram o celular do rapaz e da avó.
Nega começou naquela noite uma peregrinação por delegacias. Não havia nenhum registro de entrada do rapaz em qualquer lugar. Ela quis dar queixa do sequestro, mas a unidade de polícia local se recusou. “A escrivã disse que o povo já estava ligando para saber dele, porque todo mundo sabia que o menino tinha boa índole, que era de família, nunca fez nada de errado”. No segundo dia de buscas, enquanto esperava um delegado chegar, Nega recebeu um telefonema. O corpo de Emerson tinha sido encontrado no Bairro da Paz, em uma área de desova.
Semanas antes Emerson e alguns amigos tinham ajudado a separar uma briga entre uma pessoa e o filho de um policial. Depois disso, vários dos apaziguadores foram assassinados. “Um deles foi morto há uns seis meses na frente do mercado, quando atravessou a rua. Um cara de moto parou e deu tiro nele. O que estava na briga mesmo morreu primeiro que meu filho. Foi um dia de domingo. A história que saiu é que ele trocou tiros com polícia”, conta Nega, que destaca “Curiosamente, as câmeras [da UPP da comunidade] quebraram no dia da invasão de minha casa e voltaram a funcionar dois dias depois”, diz. O assassinato de Emerson foi arquivado como homícidio sem autoria definida.
2013 – No dia 13 de junho, o supervisor de camareiro e capoeirista Carlos Alberto Junior, 21 anos, nascido e criado em Nordeste de Amaralina, estava de folga e seguia para a praia quando, segundo moradores, ele foi rendido pelos policiais na rua e levado para um quintal, onde foi executado com um tiro na cabeça. Antes de ser morto, o rapaz ainda gritou: “Não me matem, sou trabalhador”. De nada adiantou. Os PMs, segundo testemunhas, após assassiná-lo, colocaram pedras de crack e um revólver na mão do rapaz para alegar “troca de tiros com traficantes”.
Revoltados com a morte, moradores incendiaram objetos na rua e fecharam o trânsito de duas vias no Nordeste de Amaralina. Um dos cartazes do protesto chamava a atenção: “O Estado não pode financiar o extermínio”. O rapaz morreu perto de onde mataram, há dois anos, seu primo, o menino Joel Conceição Castro, 10 anos, assassinado dentro de casa também em uma ação da PM. Os 11 militares envolvidos aguardam o julgamento em liberdade.
O pai de Carlos Alberto Santos, conhecido como Mestre Bozó, não esconde a revolta: “Beço (como chamavam Carlos) era um trabalhador. Deixou um filho de dois anos e uma mãe que passou por duas cirurgias de câncer de mama e está na cama. Ele não era um bandido. E enquanto eu tiver vida vou cobrar a punição desses PMs”.
Sete policiais envolvidos com o crime, segundo o comando da PM, foram afastados. O Inquérito Policial Militar tem 40 dias de prazo para conclusão. Moradores de Nordeste de Amaralina disseram que na mesma noite do homicídio os mesmos policiais rondaram a área em um carro descaracterizado, como forma de pressionar possíveis testemunhas.
*Lena Azevedo é jornalista investigativa há 32 anos. Trabalhou em jornais em Campinas e em Vitória, onde ajudou a fundar o Notícia Agora e pesquisa desde 2003 o crime organizado e violações de direitos humanos no Espírito Santo. Esta reportagem foi realizada através do Concurso de Microbolsas de Reportagem da Pública.