Elaíze Farias – Saúde do Vale do Javari: um pesadelo sem fim para os povos indígenas

Aldeia Soles, durante o período da cheia do rio Jaquirana
Aldeia Soles, durante o período da cheia do rio Jaquirana

Por Elaíze Farias

A falta de soro antiofídico nos polos bases de saúde na Terra Indígena do Vale do Javari, no sudoeste do Estado Amazonas, fronteira com o Peru, causou a amputação dos membros de duas crianças indígenas este ano. Os meninos da etnia marubo Natalino Dorlis, de 10 anos, e Clebson Dionísio, de 12, tiveram suas pernas amputadas. Uma terceira pessoa, uma indígena da etnia mayoruna de nome Branca Unan, de 50 anos, morreu após ser picada por cobra.

Um adolescente da etnia kulina morreu (a doença não foi informada) porque o transporte aéreo não teria sido fretado a tempo pela Secretaria Especial de Saúde Indígena (Sesai).

As informações sobre a amputação das crianças e as duas mortes constam em um longo documento que a União dos Povos Indígenas do Vale do Javari (Unijava) divulgou na semana passada e foi reiterado nesta terça-feira (09) para organizações indígenas e indigenistas, aliados individuais dos povos indígenas, acadêmicos, professores e jornalistas de todo o país. No documento reenviado nesta terça-feira, os indígenas adicionaram uma série de reivindicações encaminhadas ao Ministério Público Federal do Amazonas (leia ao final).

Falta tudo

Situação precária da sede do polo base da aldeia 31, do povo mayoruna.
Situação precária da sede do polo base da aldeia 31, do povo mayoruna.

O soro antiofídico é apenas um dos medicamentos que faltam nos polos bases de saúde e é um pequeno retrato do pesadelo vivido pelos povos indígenas do Vale do Javari há vários anos.

O documento da Univaja denuncia que “falta de tudo nos polos bases”. Faltam soro antiofídico, luva e medicamentos. E entre os remédios que são enviados, muitos deles chegam vencidos. Também faltam insumos para o transporte de embarcações que fazem as remoções dos doentes: gasolina, óleo lubrificante, vela, hélice de motor, etc. Para completar, não existem profissionais de saúde suficiente: médicos, enfermeiros, odontólogos e técnicos em enfermagem.

E os (poucos) profissionais dispostos a atuar na área ainda “são cobrados pelos indígenas e respondem que não sabem o que fazer” diante da precariedade da situação, segundo o documento.

A Univaja lembra que em 14 anos de existência do Distrito Sanitário de Saúde Indígena (Dsei) Vale do Javari, mais de 300 indígenas daquela região morreram. A população do Vale do Javari, cuja TI fica localizada no município de Atalaia do Norte, é pouco mais de 3 mil pessoas, distribuídas em cinco etnias contatadas (sem falar nos grupos isolados): marubo, kanamari, mayoruna, matis e kulina. Um pequeno grupo de índios korubo também já foi contatado.

Espera e fome

O documento da Univaja relata uma série de situações desfavoráveis, para dizer o mínimo, ao tratamento de saúde das populações indígenas do Vale do Javari. Algumas já bastante conhecidas e denunciadas em nível nacional e internacional, mas sem solução até hoje.

Um destes descasos refere-se a pacientes e acompanhantes que são encaminhados para a capital amazonense e que acabam aguardando durante um longo período para receber atendimento, agravando ainda mais a situação do doente. “Uns voltam com vida e outros são devolvidos apenas o corpo”, dizem as lideranças.

Nas viagens a Manaus, há casos de acompanhantes e pacientes que passam fome e são esquecidos no aeroporto e no cais (porto) de Manaus. Também não há dieta apropriada para os pacientes e o atendimento não respeita a diversidade cultural.

Já nos municípios de Atalaia do Norte e no vizinho deste, Tabatinga, os hospitais não possuem condições de atender as populações indígenas e há falta de médico especialista.

As lideranças destacam ainda que há dez anos os agentes indígenas de saúde não recebem capacitação. Os profissionais que entram no Vale do Javari também não possuem formação em antropologia e desconhecem a política indigenista, cujo conhecimento é fundamental para atuar em uma terra com grande diversidade étnica e cultural.

Indígenas do povo mayoruna em frente ao polo base da aldeia 31
Indígenas do povo mayoruna em frente ao polo base da aldeia 31

Hepatite

O programa de tratamento de hepatite viral, que havia sido lançado com pompa pelo governo federal há alguns anos, também corre o risco de fracassar.

Segundo os indígenas, a Casa de Apoio de Tabatinga para onde são levados os pacientes portadores de hepatite viral está quase “parando por falta de pagamento do aluguel”. São 16 meses de prestação atrasada.

A precariedade da situação está desanimando os indígenas e levando muitos deles a desistir do tratamento. Muitos dos portadores já pegaram outras doenças, sobretudo  dengue, pois o espaço é inadequado e inseguro.

“Faltam condições de limpeza, iluminação e faxina na referida estrutura. Não há materiais de limpeza do DSEI e os índios estão desestimulados no serviço de saúde. Não tem mais dieta para os pacientes por falta de alimentação e o fornecedor diz que não tem condições de fornecer se não houver pagamento dos que já foram fornecidos para DSEI”, diz trecho do documento.

Segundo as lideranças, o médico que acompanha os pacientes portadores de hepatite tem apresentado a situação da estrutura da Casa de Apoio de Tabatinga ao chefe “no sentido de melhorar a situação de saúde mais humanizada. No entanto, não foi tomado providências”.

Esta situação está fazendo com que “os indígenas se sintam abandonados e cobram de suas aldeias que tomem providências no sentido de melhorar a atenção no local”, diz trecho do documento.

Estrutura de polo base da Aldeia 31, onde quase não há medicamento.
Estrutura de polo base da Aldeia 31, onde quase não há medicamento.

Outra situação envolve a estrutura da sede do Dsei do Vale do Javari, que segundo os indígenas estão com seus carros parados por falta de peças de reposição. “O barco que fazia transporte entre Benjamim Constant a Tabatinga para apoio aos portadores em tratamento está parado. Apenas têm dois barcos tipo deslizador para atender as remoções no interior da Terra Indígena do Vale do Javari, causando dessa forma a insatisfação”, diz o texto.

O documento foi elaborado por lideranças indígenas dos povos marubo, mayoruna, matis e kanamari na sede da Associação Marubo de São Sebastão (Amas) no último dia 6 e enviado para vários aliados indígenas individuais e coletivos  por email.

O texto é encerrado com vários pedidos enviados ao Ministério Público Federal do Amazonas. Leia a seguir a demanda dos povos indígenas:

“Que MPF exija as três esferas de governo para estruturar os hospitais de referências dos DSEIs, com equipamentos necessários e investimentos em recursos humanos de diversas especialidades, considerando o cumprimento da Lei n. 9.836/1999, artigo 19-G, parágrafo II – O SUS servirá de retaguarda e referência ao Subsistema de Atenção a Saúde Indígena, devendo, para isso, ocorrer adaptações na estrutura e organização do SUS nas regiões onde residem as populações indígenas, para propiciar essa integração e o atendimento necessário em todos os níveis, sem discriminação, qualificando seus profissionais sobre atendimento diferenciado as populações indígenas, de forma humanizada, com equidade respeitando as culturas das populações indígenas;

Considerando que o Município e Estado recebem recurso de incentivo do Ministério da Saúde para atenção a saúde indígena nos hospitais de referencia, que o MPF crie instrumentos de fiscalização junto aos estados e municípios nas ações de atenção básica, media e alta complexidade, considerando que os gestores municipais e estaduais não respeitam os conselhos de saúde indígena para acompanhamento dessas ações;

Que o MPF exija a SESAI/DSEI para estruturar o ambiente de trabalho dos profissionais da saúde indígena, tais como: infra-estrutura adequada, transportes, insumos, equipamento de trabalhos e medicamentos nos pólos base e nas aldeias;

Que o MPF exija do MS/SESAI efetivar o termo de compromisso através de Contrato Organizativo de Ação Pública da Saúde – COAP, estabelecendo compromissos dos gestores municipais, estaduais e Controle Social Indígena (CONDISI) no cumprimento das aplicações dos recursos na saúde indígena, repassados através de incentivo do Ministério da Saúde – MS;

O MS/SESAI deve garantir junto às três esferas de governo uma assistência  humanizada, de excelência e de qualidade no serviço prestado na referencia e contra-referencia, e agilidade nos processos administrativos para minimizar as questões epidemiológicas no DSEI;

Que o MPF exija a SESAI para dar suporte técnico e operacional para os DSEIs exercer seus projetos e planos emergenciais e garantir autonomia aos DSEIs para instruir processos licitatórios para aquisição de medicamentos da RENAME Indígena e medicamentos especializados em tempo hábil para as comunidades indígenas;

Que o MPF exija a SESAI/DSEI para tomar providências sobre medicamentos enviados em fase de vencimentos para os pólos base pelos farmacêuticos dos DSEIs, criando assim risco a saúde das populações indígenas com acúmulo de materiais vencimentos e lixos, contaminando assim o solo e lençóis freáticos;

Considerando que o MS/SESAI vem apenas adquirindo medicamentos genéricos, que MPF exija aquisição dos medicamentos não – genéricos para atenção à saúde indígena nos Pólos Bases;

Que o MPF articule com órgãos de controle e fiscalização externa do governo CGU (Controladoria Geral da União), TCU (Tribunal de Conta da União), a flexibilização de legislações que regulam os processos licitatórios na Lei n. 8.666, dos contratos e de serviços de manutenção dos barcos, carros, aeronaves, reformas e contratos de licitação de compras de insumos e equipamentos, como: medicamentos, equipamentos médicos hospitalares, odontológico, considerando que a implementação da saúde indígena, tem sido afrontada de forma grave, contrariando a legislação do Subsistema de Atenção a Saúde Indígena, Lei n. 9.836/1999, disposto no artigo 19/F deve-se-à obrigatoriamente levar em consideração a realidade local e as especificidades da cultura dos povos indígenas e o modelo a ser adotado para atenção à saúde indígena, que se deve pautar por uma abordagem diferenciada e global, contemplando os aspectos de assistência a saúde, saneamento básico, nutrição, habitação, meio ambiente, demarcação de terras, educação sanitária e integração institucional;

Que o MPF exija a SESAI/DSEI para priorizar a elaboração dos projetos de saneamento e edificações da saúde indígena, a fim de acelerar as construções das CASAIs, dos pólos bases, postos de saúde e sistema de abastecimento de água potável nas aldeias indígenas, considerando as populações indígenas de maior vulnerabilidade;

Considerado os fatores que vem ocasionando a demora de atenção, que MPF exigir do MS/SESAI através dos DSEIs uma articulação entre os gestores estaduais e municipais para criação do Sistema de Regulação Indígena (SISREGI) para atendimento aos pacientes indígenas na média e alta complexidade, objetivando a redução de tempo de espera dos indígenas nas CASAIs;

Considerado os fatores que vem ocasionando a demora de atenção, que MPF exigir do Ministério da Saúde criar políticas estratégicas em suas esferas de governo para o atendimento as populações indígenas no SUS, respeitando as suas diversidades e atenção diferenciada, bem como reconhecer, valorizar e respeitar o conhecimento de medicinas tradicionais indígenas para integrar durante o tratamento dos pacientes indígenas nas unidades de referencias, assistido pela rede SUS;

Considerado o não cumprimento do Estado e Município em observância a Lei n. 8.080/90 e 8.142/90 que regem o SUS devem cumprir as deliberações, recomendações e resoluções dos conselhos de saúde indígena como a instancia de controle social, em cumprimento da legislação do Subsistema de Atenção à Saúde Indígena, instituído por Lei N. 9.836 de 23 de Setembro de 1999 que MPF exija do MS/SESAI, que seja cumprido, e que os gestores do SUS e Subsistema de Atenção a Saúde Indígena (SASISUS) se articulem para organizar as ações e serviços de saúde, garantindo o atendimento de qualidade as populações indígenas na área de abrangência de cada DSEIs;

Que MPF exija o Ministério da Saúde – MS para criar uma portaria que garanta as práticas da medicina tradicional, pajelança e parteira indígena, como forma de preservar a cultura da sua etnia de forma integrada nas três esferas de governo e nos DSEIs;

Que o MPF exija o MS/SESAI para a realização de 100% de inquérito sorológico das hepatites virais (A, B, C, D e E) nos DSEIs, garantindo a entrega dos resultados do Inquérito Sorológico das hepatites virais aos pacientes indígenas, bem como garantir 100% de tratamento e assistência social aos pacientes indígenas e protocolo para o tratamento de Mansonelose “filaria” no DSEI-JAVARI e com apresentação de índices epidemiológicos”.

* Fotos: Elaíze Farias

Elaíze Farias – Povos Indígenas, Comunidades Tradicionais e Questões Amazônicas.

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