Por Lúcio Flávio Pinto*, em Cartas da Amazônia
É legal ou legítimo que uma empresa privada tenha nos seus arquivos prontuários de pessoas que lhe interessam, incomodam ou são seus inimigos? Pois a Vale, a segunda maior mineradora do mundo, tem. Não se tratam de fichas, anotações ou clippings. A designação que a empresa deu a esses registros personalizados é mesmo de prontuários, consagrados pelo aparelho policial e tingidos de negro pelo aparato de repressão.
O batismo não deixa de ser um ato falhado, psicanaliticamente falando. O serviço de informações e inteligência da maior empresa privada do Brasil, da qual o país depende como nunca antes, é conduzido também por ex-agentes do serviço de informações do governo, novos ou mais antigos, remanescentes da era do SNI e integrantes da Abin, hibridismo da época da ditadura com a democracia.
A coordenadoria de serviços especiais corporativos, ligada à auditoria interna, subordinada, por sua vez, ao conselho de administração, foi criada em 2003. Seu objetivo era prevenir perdas e combater fraudes dentro da empresa. Parece que a princípio ela se circunscreveu a essa missão, mas logo deu início a atividades ilegais de espionagem, recorrendo a grampos telefônicos, quebra de sigilo bancário e invasão de privacidade. Além do pessoal próprio, utilizou consultorias privadas.
Em abril de 2010, a “atualização do prontuário do jornalista Lúcio Flávio de Farias Pinto” custou 10 reais à Vale. Não sei o que esse prontuário contém, mas já há um mau indício: colocaram um “s” excedente no meu sobrenome Faria.
Uma empresa do porte da Vale precisa ter o seu setor de inteligência. Ele cuida de informações e contrainformações para melhor atender a corporação na sua guerra de mercado, que envolve espionagem. Boicote e sabotagem, e nas relações com o mundo externo.
Mas desde que um ex-integrante desse serviço, o gerente de inteligência André Almeida, demitido em março deste ano por justa causa, repassou documentos que permitiram à revista Veja revelar os intestinos da mineradora, a questão é saber se a Vale atua dentro de limites legais ou os extrapola e viola, agindo como se fora uma entidade pública, com direito de exercer o poder de polícia.
Quando o Serviço Nacional de Informações, concebido pelo general Golbery do Couto e Silva, foi criado, logo depois do golpe militar de 1964, que derrubou o presidente João Goulart, Carlos Lacerda observou com maldade certeira que o SNI não funcionava às segundas-feiras. Nesse dia poucos jornais circulavam – e não os mais importantes. Os arapongas de então não podiam se armar de cola, papel e recortes de jornais para preparar seus relatórios e informes. Não havia o que cortar e colar.
Lacerda já estava avinagrado com seus ex-colegas de golpe, preocupado com a perspectiva de jamais se candidatar a presidente da república, a maior das suas aspirações, mas boa parte do trabalho de inteligência é feito assim mesmo, através de análises de informações correntes, sobretudo da imprensa.
Por sua própria razão de ser, o Estado vai muito além desse ponto, com seus agentes nas ruas, infiltrações e informantes, exercendo o poder de polícia que a sociedade lhe delega formalmente. Mas uma empresa privada pode agir assim? O regime democrático é compatível com esse procedimento?
A leitura de vários dos documentos vazados pelo informante da revista Veja não surpreende. Os arapongas da Vale também se baseiam em material da imprensa. Mas outros documentos dão a nítida sensação de que são produzidos por órgãos oficiais, não com o propósito legítimo de bem informar as autoridades públicas.
Estão contaminados pelo interesse de bisbilhotar, de invadir a privacidade alheia e de colocar etiquetas que definem e julgam os personagens visados, atribuindo-lhe carga de ilicitude e ilegalidade. Não é uma observação olímpica: o olhar discrimina o que vê como inimigos, merecedores, portanto, de punição. E assim eles são tratados.
A relação dos entes que estão sob a mira da inteligência da Vale compreende o MAB (que defende os atingidos por barragens), MST, Instituto Políticas Alternativas para o Cone Sul, Fase, Rede Brasileira de Justiça Ambiental, Instituto Rosa Luxemburgo, Forum Carajás, Campanha Justiça nos Trilhos, Conlutas, Movimento dos Atingidos pela Vale, CUT e Assembleia Popular, dentre outros.
A Vale não se restringe a acompanhar a movimentação dessas entidades: manda espiões se infiltrarem em suas atividades, com a missão de gravar, fotografar e anotar o que acontece. Foi assim que agiu em relação ao 1º Encontro dos Atingidos pela Vale, que acompanhou o lançamento da Caravana Minas, no Rio de Janeiro, em 2010.
Os líderes, identificados, foram acompanhados pelo olheiro, que também esteve ao lado dos participantes do encontro quando eles fizeram uma manifestação diante do condomínio de luxo em que morava o então presidente da Vale, Roger Agnelli, na rua mais famosa de Ipanema, a Vieira Souto.
As despesas com esse serviço custaram à Vale, em abril de 2010, 184 mil reais. Parte desse dinheiro foi gasto na inspeção de andares da sede da empresa, no Rio de Janeiro. O escritório Norte absorveu R$ 25 mil. Uma equipe básica II precisou de R$ 859 para cobrir o seminário “O Maranhão de volta ao século XIX: grandes projetos e seus impactos socioambientais”, em São Luiz. Um informante quilombola em Barcarena saiu por quase R$ 4,4 mil. Naturalmente, esse informante é um espião. Já os dois que atuam em Carajás e Parauapebas têm carteira assinada, cada um deles recebendo R$3,7 mil..
Um ano depois, em abril de 2011, o mesmo serviço pulou para R$ 230 mil, com itens semelhantes. Mas a presença na região norte, entre Pará e Maranhão, se tornou ainda mais forte: além do informante quilombola de Barcarena e dos dois agentes de Carajás/Parauapebas, surgiu um “colaborador e agente” em Marabá (a R$3,4 mil) e uma rede em Açailândia (R$ 1,6 mil).
Ao que tudo indica, o frenesi pela espionagem, interna e externa, abrangendo tanto aqueles considerados inimigos da empresa quanto seus funcionários, dirigentes e até acionistas, foi uma das marcas da gestão de uma década de Agnelli. Em março de 2012 as despesas do setor diminuíram ligeiramente, para R$ 224 mil, embora mantendo a mesma estrutura e reajustando os rendimentos das equipes.
Em setembro caíram mais, para R$ 197 mil. Talvez, quem sabe, desinflem para um patamar saudável – e, mais do que isso, legal. Mas para isso certamente é preciso iluminar as dependências sombrias da antiga Companhia Vale do Rio Doce, que permanece estatal nas suas estranhas impenetráveis.
Para dar consequência às denúncias, o MST e a Justiça nos Trilhos entregaram um pedido formal de investigação a várias instituições públicas. Mais recentemente, outra grande empresa, o consórcio que arrematou a hidrelétrica de Belo Monte, no Xingu, a maior obra em andamento no país, também foi flagrado em atividade de espionagem junto a grupos que se opõem à obra.
Esses dois são os exemplos mais graves. Quantos, porém, existem no desconhecimento público? A crescente promiscuidade entre os aparatos de segurança do governo e os das grandes corporações econômicas parece ser crescente, talvez tão acentuado quanto no período da ditadura, embora sem os mesmos objetivos, já que não há a repressão política aberta, estatizada.
Mas há uma circulação de pessoas entre os dois níveis de poder, desempenhando funções semelhantes ou, em muitas situações, numa distinção que inexiste, embora formalmente devessem ser separadas. O setor de segurança pública fornece quadros para a inteligência corporativa e vice-versa. Essa circulação é perigosa. As dependências desse aparato devem ser iluminadas e higienizadas.
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*Lúcio Flávio Pinto, 62, é jornalista desde 1966. Editor do “Jornal Pessoal”, publicação quinzenal que circula em Belém do Pará desde 1987.