Leonardo Sakamoto
Sob qualquer ponto de vista, trabalho escravo contemporâneo é algo tão absurdo que ninguém, em são consciência, é capaz de defendê-lo publicamente.
Não é apenas um crime contra os direitos humanos. Também configura concorrência desleal e contribui para manchar o nome dos produtos brasileiros no exterior, dando de mão beijada razão para o erguimento de barreiras comerciais não-tarifárias sob justificativa social.
Mas se a defesa não é direta, pode vir de forma esperta. A senadora Kátia Abreu (PSD-TO), presidente da Confederação da Agricultura e Pecuária do Brasil, por exemplo, subiu na Tribuna do Senado, na última semana, para criticar o conceito de trabalho escravo contemporâneo adotado no país. Como sabemos, se mudarmos o conteúdo do que seja um crime, o criminoso pode virar santo da noite para o dia.
De acordo com o artigo 149 do Código Penal, são elementos que determinam trabalho análogo ao de escravo: condições degradantes de trabalho (aquelas que excluem o trabalhador de sua dignidade), jornada exaustiva (que impede o trabalhador de se recuperar fisicamente e ter uma vida social), cerceamento de liberdade/trabalho forçado (manter a pessoa no serviço através de fraudes, isolamento geográfico, ameaças e violências físicas e psicológicas) e servidão por dívida (fazer o trabalhador contrair ilegalmente um débito e prendê-lo a ele).
Varas, tribunais e cortes superiores utilizam a definição desse artigo. Em decisões da maioria dos ministros do Supremo Tribunal Federal, fica clara a compreensão de que eles entendem o que é esse crime – tanto que já receberam denúncias de deputados e senadores por esse crime. A Organização Internacional do Trabalho apoia a aplicação do conceito brasileiro. Gulnara Shahinian, relatora para formas contemporâneas de escravidão das Nações Unidas, afirmou que o mundo precisa copiar o exemplo do Brasil. Em entrevista à Folha de S.Paulo, disse que não concorda com a mudança no conceito de trabalho escravo . “Eu estou muito feliz com o fato de que a definição de escravidão no Código Penal brasileiro vai além de padrões trabalhistas.” E, no fim, pediu para o país ampliar ainda mais definição, atingindo outras formas de exploração.
Vira e mexe, há políticos que reclamam que fiscais do trabalho consideram como escravidão a pequena distância entre beliches, a espessura de colchões, a falta de copos descartáveis.
Isso não é verdade. Afinal de contas, qualquer fiscalização do governo é obrigada a aplicar multas por todos os problemas encontrados. Mas não são essas as autuações que configuram trabalho escravo. Quando ouço esse bla-bla-blá, faço uma rápida pesquisa junto ao Ministério do Trabalho e Emprego (o que está disponível a qualquer cidadão) e descubro dezenas de outras autuações que o empregador em questão recebeu. Sempre me surpreendo com as fotos da “espessura do colchão” e os depoimentos dos trabalhadores “sem copos plásticos”…
E quem pode ver de perto, sabe que isso não é história de auditor do trabalho desocupado. “Pensei que não existisse mais isso no Brasil.” A declaração do deputado federal Giovanni Queiroz (PDT-PA), um dos vice-presidentes da Frente Parlamentar da Agropecuária no Congresso Nacional, trata da situação de oito vítimas resgatadas pelo governo federal de condições análogas às de escravos, no Sudeste do Pará. “Vimos uma situação vergonhosa, constrangedora. Nunca vi nada tão ridículo”, descreveu ele, que acompanhou um resgate junto com outros membros da Comissão Parlamentar de Inquérito do Trabalho Escravo da Câmara dos Deputados no ano passado. De acordo com Queiroz, o proprietário não tinha “nenhuma desculpa” para tratar os empregados de tal maneira, pois a fazenda era de meio porte, inclusive com “curral bem feito”.
Ao afirmar que não há clareza sobre o conceito de trabalho escravo, simplesmente porque não concordam com ele, há pessoas que querem desestabilizar um dos raros processos em que o governo federal aprendeu a caminhar. Cerca de 46 mil foram libertados desde 1995, o que faz do combate à escravidão uma política de Estado e não de partido, muito menos de governo.
A “PEC do Trabalho Escravo”, proposta de emenda constitucional que prevê o confisco de propriedades flagradas com esse crime e sua destinação à reforma agrária e ao uso social urbano, está para ser votada no plenário do Senado. Se aprovada em dois turnos, passa a vigorar em todo o país, pois já foi aprovada na Câmara dos Deputados. Ela é considerada uma espécie de “Segunda Lei Áurea”, dado o impacto que sua aprovação causaria.
A bancada ruralista quer atrelar a sua aprovação ao afrouxamento do conceito. Praticamente condenar só quem usa pelourinho, chicote e grilhões, sendo que os tempos mudaram, a escravidão é outra e os mecanismos modernos de escravização adotados são sutis. Promovem, dessa forma, a “insegurança jurídica” no campo e na cidade, criando caos junto aos produtores que seguem a lei e sabem bem o que fazer e o que não fazer. O governo federal disse que isso não está em discussão. A ver.
Mas se ficar decidido que o crescimento econômico é mais importante que a dignidade das pessoas, podemos – em um esforço da nação – revogar também a primeira Lei Áurea. Que tal?
(Versão maior do texto veiculado na última edição do jornal Gazeta do Povo, do Paraná.)