do site da Quarta Feira editora
“Não conciliar o inconciliável”
Essa máxima de Tolstói é repetida, com algumas variações, em diferentes momentos de sua obra política. A afirmação é tão mais impactante quanto maior for o compromisso do leitor em buscar a coerência entre seu pensamento e sua ação, tentando modificar, obviamente, a segunda. Esse conceito, caro às nossas consciências, tem sido resumido hoje em dia na palavra integridade. A necessária busca pela integridade, pela coerência entre suas convicções e sua forma de transformá-las em ações transformadoras no mundo em que você vive tem um nome: política (mesmo quando você pensa que está sendo “apolítico”). A grande força do pensamento de Tolstói, está em retornar ao óbvio e apontar que essa coerência pessoal não pode nunca conciliar o inconciliável.
As contradições mais profundas, porém, parecem ser as que ignoramos com maior facilidade. À sua época, Tolstói questionava se era possível conciliar a lei do amor com o serviço militar obrigatório. Hoje, convivemos com as mesmas contradições que Tolstói nos apontava e nos questionamos espiritual e politicamente: é possível conciliar a lei do amor e a Polícia Militar? É possível conciliar um sistema realmente democrático com uma polícia de estrutura militar?
Martin Luther King, leitor de Tolstói e de Gandhi, nos ensinou que uma das grandes armas da ação não violenta é evidenciar o mal cotidiano, trazer à luz a opressão que ocorre no beco, trazer para a rua a violência que é diária na favela. Em meio a tantas interpretações sobre as manifestações brasileiras, em meio à diversidade de atores disputando pautas, espaço e até mesmo a própria memória e significado dos movimentos, as contradições de nosso tempo vêm à tona.
A proposta de resgatar o pensamento de Tolstói para discutir a desmilitarização da polícia no Brasil nesse momento não é criar um debate acadêmico sobre o tema. Pelo contrário, Tolstói é um tapa na cara, é o chato, o irredutível que nos aparece como um alerta para que retornemos ao óbvio. Retornar a Tolstói é questionar, por exemplo, a validade das mudanças na legislação em uma realidade na qual o PM não precisa se submeter às leis civis, na qual a lei da Maré não é a mesma do Leblon. O retorno a Tolstói não é uma tentativa de diminuir os ganhos democráticos que temos conquistado, mas um apelo, através das palavras de um mestre da literatura, ao questionamento das contradições fundamentais, essas que a mídia dependente e nossos preconceitos sustentam como se fossem necessárias. Resgatar Tolstói é recolocar com seriedade tanto existencial quanto política a questão: será que não estamos conciliando o inconciliável?