Regulamentação da consulta prévia. Quais os riscos e quais as oportunidades da regulamentação?

Comissão Pró-Índio de São Paulo 

A iniciativa da regulamentação preocupa uma vez que o Estado Brasileiro tem um histórico de ignorar a consulta ou realizá-la por meio de procedimentos pouco adequados que não possibilitam um processo livre de construção de acordos conforme preconiza a Convenção 169 – fato é constatado pelos próprios peritos da OIT em seus informes. Assim tem-se o receio que a regulamentação possa trazer uma interpretação restritiva do direito a consulta livre, prévia e informada e dos seus efeitos de forma a facilitar a implementação de grandes projetos e obras.

Mas, por outro lado, uma norma adequada pode ser estratégica para fortalecer o exercício da autonomia das comunidades indígenas e quilombolas na gestão de seus territórios e ser um instrumento para abrir espaço ao diálogo e tentar influenciar as decisões sobre tais empreendimentos.

A Comissão Pró-Índio de São Paulo ouviu a opinião de diferentes atores envolvidos. Confira as entrevistas com o jurista Dalmo Dallari, o Procurador Felício Pontes Jr e as lideranças quilombolas José Carlos Galiza e Oriel Rodrigues. Confira a avaliação dos entrevistados pela CPI.

Felício PontesSem necessidade

O procurador da República Felício Pontes Jr atua no estado do Pará e moveu diversas ações contra a construção da Usina Hidrelétrica de Belo Monte, um dos argumentos usados nas ações é justamente o fato de não ter havido consulta prévia, livre e informada com os povos afetados diretamente pela obra.

“Não vejo necessidade de regulamentação da Convenção 169 da OIT. Os seus 44 artigos são suficientemente claros para que os países que a incorporaram possam realizar a consulta prévia aos povos tradicionais cada vez que um projeto ou medida os atinja diretamente.

Os detalhes que precisam ser definidos só podem ser feitos com a participação da comunidade afetada em cada caso concreto. E isso deve ser definido no Plano de Consulta, que é o instrumento que define como a consulta será realizada. Ele deve levar em consideração as características culturais de cada povo consultado e da medida ou projeto proposto.

Por exemplo, a forma como se dará a consulta na comunidade indígena Kayapó não será a mesma para comunidade quilombola do Trombetas, nem tampouco para Reserva Extrativista Tapajós/Arapiuns. Cada uma delas possui características culturais diferentes que necessariamente serão levadas em consideração no caso concreto.

Portanto, as regras gerais já foram definidas pela Convenção 169. Mais do que isso somente pode acontecer em cada caso concreto, através do plano de Consulta. Logo, a regulamentação é desnecessária. Não há qualquer vantagem na iniciativa do governo federal”.

GalizaAté que ponto a nossa opinião vai valer? 

José Carlos Galiza é coordenador da Malungu – Coordenação das Associações das Comunidades Remanescentes de Quilombos do Pará. Ele tem participado de vários encontros para tratar da consulta prévia.

O governo brasileiro decidiu regulamentar os procedimentos para consulta prévia prevista na Convenção 169 da OIT, qual a sua avaliação desta iniciativa?

A Convenção 169 é auto aplicável na minha opinião. Mas o governo vai regulamentar a consulta de qualquer maneira, portanto, devemos participar para que a regulamentação seja a melhor possível para nós.

É preciso que o processo seja transparente. Até que ponto a nossa opinião vai valer? Não está claro se teremos poder de veto, por exemplo. Eu acredito que a consulta pode ser justamente um momento para incluir isso e garantir que a vontade das comunidades seja ouvida e, mais ainda, acatada.

Estamos vendo no Pará projetos serem implementados sem a consulta aos povos tradicionais, então é uma contradição do governo enquanto propõe regulamentar, continua sem realizar nenhum tipo de consulta com as comunidades.

Foto: Enemat
Foto: Enemat

Risco: mera aparência de consulta

Dalmo Dallari é jurista e professor emérito da Faculdade de Direito da USP, reconhecido  no Brasil como um defensor dos direitos dos povos indígenas. Integra o Conselho Consultivo da Comissão Pró-Índio de São Paulo.

O governo brasileiro decidiu regulamentar os procedimentos para consulta prévia prevista na Convenção 169 da OIT.  Na sua opinião quais são os riscos dessa iniciativa?

A iniciativa de regulamentar a consulta prévia em princípio é louvável, pois deverá ser mais um passo para dar efetividade à determinação da Convenção 169. Quanto aos riscos dessa iniciativa, eles, em princípio, não deverão existir, mas tendo em vista a forte influência do agronegócio em vários setores do governo federal, já tendo sido anunciadas iniciativas ministeriais direcionadas a restringir os direitos constitucionais das comunidades indígenas para beneficiar o agronegócio, há o risco de concretização desses abusos.

Numa síntese, pode-se dizer que o grande risco será a fixação de regras que criem a mera aparência de consulta prévia, perguntando sem esclarecer o verdadeiro alcance das medidas que se quer adotar ou sem dar meios e tempo para a obtenção de esclarecimentos prévios, ou ainda restringindo muito o universo dos consultados.

Por tudo isso, é necessário estarmos muito atentos, pedindo a publicação do projeto de regulamentação antes que ele seja imposto como fato consumado e estando preparados para reagir, inclusive por via judicial, se o regulamento for uma farsa de consulta prévia.

E quais são as oportunidades?

Se a regulamentação for estabelecida de maneira correta e objetiva será uma oportunidade de se dar efetividade a esse importante instrumento de garantia dos direitos indígenas, que é a consulta prévia para avaliação dos reais efeitos das medidas que se pretende adotar ou do projeto que se tem a intenção de executar. Em tal sentido o anúncio da intenção de regulamentar a consulta prévia é uma boa oportunidade para levar esclarecimentos às comunidades indígenas e aos seus defensores, para que não ocorram outras situações em que um grave prejuízo aos direitos dos índios só foi percebido e sentido depois de concretizado o malefício.

Quilombola ribeiraNecessidade de participação efetiva

Oriel Rodrigues de Moraes é membro Coordenação Nacional de Quilombos (Conaq) e liderança do Quilombo Ivaporunduva, na região do Vale do Ribeira, em São Paulo. Ele tem acompanhado de perto a questão.

O governo brasileiro decidiu regulamentar os procedimentos para consulta prévia prevista na Convenção 169 da OIT, qual a sua avaliação desta iniciativa?

O momento político que vivemos é complicado. A correlação de forças dentro do próprio governo está muito difícil, alguns ministérios estão a favor e a maioria está contra a regulamentação da consulta prévia desta forma em diálogo com as comunidades. Muitos preferem que seja contratada uma empresa para apresentar uma proposta e pronto.

Achamos muito importante que tenha consulta. Nós fizemos uma contraproposta com mais tempo para a realização da consulta.

O governo federal já realizou dois eventos relacionados à regulamentação da consulta, um em Goiás e outro em São Paulo, na região do Vale do Ribeira. Eu participei do evento em São Paulo e pude ver e criticar porque o processo não foi informativo, as pessoas não sabiam sobre o que estavam discutindo e até os facilitadores não tinham conhecimento aprofundado do tema.

Nós temos que garantir a participação efetiva das comunidades e com isso vamos tentar reverter e incluir o que consideramos de fato uma consulta.

Confira abaixo a Carta dos Quilombolas do Vale do Ribeira:

Como resultado do Seminário “Convenção OIT 169”, realizado pela  Secretaria Geral da Presidência, as comunidades quilombolas paulistas reunidas  em Registro nos dias 03 e 04 de maio de 2013, vem por meio deste  documento manifestar que não concordam com o modelo de consulta  apresentado no seminário, e por esse motivo, reorganizaram a metodologia do encontro para discutir dentro do movimento quilombola – e sem a participação dos gestores públicos presentes no evento – os encaminhamentos para a questão.

As comunidades reunidas discutiram e chegaram às seguintes considerações:

1) Que o modelo de consulta pretendida por este Seminário não foi conduzido de forma legítima, pois as comunidades não foram previamente informadas sobre o teor do evento. Neste sentido, afirmamos que consideramos este seminário um evento informativo e não consultivo, tal como foi conduzido pelos organizadores.

2) Que os gestores públicos responsáveis pela regulamentação da Convenção criem uma agenda de encontros e/ou oficinas com as comunidades quilombolas para que, munidas de informação, as comunidades possam colaborar efetivamente para a construção das diretrizes da Convenção 169.

3) O processo de consulta à comunidade tem que ocorrer antes e ao longo do processo de estudo de viabilidade e implantação de empreendimentos (tanto públicos como particulares) e de atos administrativos e/ou legislativos que possam vir a trazer danos diretos ou indiretos aos direitos quilombolas e seus territórios.

4) O processo de consulta tem que garantir a participação das comunidades, envolver o Ministério Publico Federal, a Defensoria Publica e as associação das comunidade através de uma assembléia geral. Não se pode consultar apenas alguns membros da comunidade.

5) Que as consultas realizadas nas comunidades sigam o princípio do consentimento livre prévio informado, e disponibilizem acompanhamento de assessoria jurídica e técnica às comunidades sobre os processos que forem foco da consulta.

6) Que fique claro que o direito de consulta prévia não é uma audiência Pública. É necessário que o Estado realize a consulta através de um procedimento que possibilite ampla participação e respeite o tempo de cada comunidade para que ela realmente formem uma opinião sobre o tema.

7) Que na realização do processo de consulta, o Estado forneça às comunidades meios necessários para participação, respeitando o modo tradicional das comunidades. Se, por exemplo, a realização da consulta envolver a construção de uma obra que traga impactos diretos e indiretos nas comunidades, o Estado tem que dar à comunidade informações e tempo para estudar os projetos e, se necessário, dar suporte técnico para que a comunidade consiga entender plenamente os impactos da obra, com mecanismos adaptados às realidades locais e com envolvimento dos órgãos de direito, como o Ministério Público Federal.

8) Que a regulamentação da Convenção crie um mecanismo de resolução de conflitos, com participação paritária entre comunidades quilombolas, Estado, MPF e DPU para fiscalizar violações no cumprimento do direito de consulta prévia.

9) Que seja apresentado e informado às comunidades sobre os grupos de trabalho de discussão da OIT, e quem são os grupos interministeriais.

10) Que o direito de consulta não vem sendo respeitado pelo Estado brasileiro, apesar das recomendações da OIT, e da necessidade de agilizar a titulação dos territórios através não somente de ações judiciais, mas também por atos administrativos, como em outros estados brasileiros.

11) Que as comunidades quilombolas paulistas não aceitam os empreendimento de mineração, de barramento de rios, criação de mais unidades de conservação, duplicação de ferrovias, e que o governo chame para a consulta antes da concessão de obras para terceiros.

12) Que o governo trate a questão da regulamentação com transparência e compromisso político com as comunidades quilombolas, e que situações como esta, de seminários de caráter informativo, não sejam tratadas pelos órgãos de governo como processo consultivo. 13) Que este encontro seja o primeiro de uma agenda propositiva de debates com gestores públicos com vistas à regulamentação da Convenção 169 da OIT.

Assinam as comunidades quilombolas abaixo:

Abobral Margem Esquerda, André Lopes, Biguazinho, Bombas, Brotas, Caçandoca, Cafundó, Cambury, Cangume, Capivari, Carmo, Caxambu, Cedro, Fazenda Picinguaba, Fazenda Pilar, Fazendinha dos Pretos, Galvão, Ilhas, Ivaporunduva, Jaó, José Joaquim Camargo, Mandira, Maria Rosa, Morro Seco, Nhunguara, Pedra Preta e Paraíso, Pedro Cubas, Pedro Cubas de Cima, Peropava, Pilões, Piririca, Poça, Porcinos, Porto Velho, Praia Grande, Reginaldo, Retiro, Ribeirão Grande e Terra Seca, São Pedro, Sapatu, Sertão de Itamambuca.

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