Por Patrícia Bonilha,
de Brasília (DF)
CIMI – A corrente campanha de desmonte da Fundação Nacional do Índio (Funai), realizada pelo próprio governo federal, teve seu ápice na última quarta-feira, 08, com a participação da ministra-chefe da Casa Civil, Gleisi Hoffmann, na audiência pública realizada pela Comissão de Agricultura, Pecuária, Abastecimento e Desenvolvimento Rural, na Câmara dos Deputados. Aplaudida pelos parlamentares ruralistas, ela correspondeu prontamente aos desejos da bancada e anunciou que até o final deste semestre será definido um novo marco regulatório para os processos de demarcações das terras indígenas.
Porém, antes que o marco seja oficializado, o Palácio do Planalto já suspendeu as demarcações de terras indígenas no estado do Paraná, com base em análises da Empresa Brasileira de Pesquisa Agropecuária (Embrapa) sobre estudos da Funai. A intenção vai além: relatórios do Ministério do Desenvolvimento Agrário (MDA), do Ministério da Agricultura, Pecuária e Abastecimento (Mapa) e do Ministério das Cidades também serão levados em consideração. Em outras ocasiões, o ministro da Justiça José Eduardo Cardozo indicou que tais mudanças ocorreriam.
Logo em sua fala de abertura, Gleisi afirmou que “a Funai é um órgão envolvido com os interesses indígenas”, e que, portanto, ela não é imparcial, colocando sob suspeição a competência da instituição para desenvolver as atribuições que estão sob a sua responsabilidade. A deixa da ministra para os ruralistas foi dada de forma bastante clara, e não podia ser mais perfeita. Mas ainda havia mais por vir.
Após inúmeras falas nervosas e contundentes em que a Funai, este órgão público do governo federal – é bom lembrar – foi chamada pelos deputados ruralistas de criminosa, vigarista, fraudulenta, incompetente, desonesta, dentre outros adjetivos, a ministra-chefe da Casa Civil afirmou que “a Funai não está preparada e não tem critérios claros para fazer a gestão de conflitos. Ela não tem a capacidade para fazer a mediação [entre índios e agricultores] pelo envolvimento que tem com os índios”. Era tudo o que os ruralistas queriam ouvir: falava contra a Funai a voz delegada pela Presidência da República.
Raposa no galinheiro
Neste sentido, além dos critérios antropológicos, o governo também quer ter acesso a dados “qualificados” sociais e econômicos das áreas em processos de demarcação. “Queremos um mapa cartográfico sobre a ocupação do território. Queremos saber qual a produtividade na área, por quanto tempo os produtores tomaram crédito do governo, há quanto tempo há presença indígena porque os processos estão mais tensos agora sobre áreas antropizadas”, declarou Gleisi, candidata virtual ao governo do Paraná nas eleições de 2014, primeiro estado a ter as demarcações suspensas.
A fala da ministra deixou inúmeras dúvidas. Se a Funai, o órgão indigenista governamental, com o seu histórico de atuação e quadro de profissionais especializados em questões indígenas, não é a instituição mais adequada para realizar os processos de demarcação, definidos, em última instância, pelo Ministério da Justiça, qual poderá ter? A Embrapa e o Mapa – com atuações direcionadas para o fortalecimento do agronegócio – têm legitimidade para isso? Se invasores, que expulsaram indígenas há décadas de suas terras tradicionais, tiverem qualquer tipo de produção nestas terras atualmente, isso impossibilita os índios de recuperarem seus territórios? Quem vai ser a instituição que vai analisar as contribuições de todos os órgãos e dar a palavra final sobre a demarcação da terra?
Segundo o Secretário Executivo do Conselho Indigenista Missionário (Cimi) Cleber Buzatto tudo indica que, se depender do governo Dilma, o presente chegará melhor que a encomenda para os fazendeiros. Em artigo publicado na última quinta-feira, 9, o indigenista afirma que o Palácio do Planalto fornece asas ao “modelo de democracia” dos latifundiários, onde direitos são violentados sem nenhuma reação governamental.
“Diante disso, aos povos indígenas não resta alternativa senão eles próprios fazerem a defesa de seus direitos. No atual contexto, diferentemente do que ocorreu no episódio do Código Florestal, quando a sociedade, mesmo contrária às mudanças, reagiu com certa timidez diante da violenta ofensiva do agronegócio, para manterem seus direitos, os povos indígenas precisarão de disposição para enfrentamentos mais contundentes, urgentes e permanentes em todos os níveis, desde a aldeia até o “centro” do poder, em Brasília”.
Tudo muito bem articulado
O espetáculo protagonizado pela ministra da Casa Civil e pelos ruralistas já vinha sendo armado há bastante tempo. Há meses, o ministro da Justiça José Eduardo Cardozo faz declarações à imprensa indicando que para a atual gestão a Funai não deve ser o órgão com preponderância para definir a demarcação das terras indígenas, tal como determina a Constituição Federal. Mais recentemente, no dia 29 de abril, em Campo Grande (MS), a presidenta Dilma foi vaiada por ruralistas que protestavam contra a demarcação de terras indígenas. A partir daí uma avalanche de boatos têm sido diariamente estampados nas páginas dos jornais sobre a possível demissão da presidenta da Funai, Marta Maria do Amaral Azevedo.
Na última terça-feira, 7, com base em análise da Embrapa, a ministra Gleisi pediu ao Ministério da Justiça a suspensão de estudos da Funai para a demarcação de terras indígenas no Paraná. Este ato foi divulgado pela mídia como “uma intervenção de Dilma na Funai” e agradou bastante a ala ruralista um dia antes da ministra Gleisi ir “se explicar” no parlamento sobre a demarcação de terras indígenas neste governo, atendendo a convocação da bancada ruralista.
No entanto, a Embrapa soltou uma nota nesta sexta-feira, 9, afirmando que o órgão de pesquisas “não tem por atribuição opinar sobre aspectos antropológicos ou étnicos envolvendo a identificação, declaração ou demarcação de terras indígenas no Brasil. Essa é uma atribuição da Fundação Nacional do Índio – FUNAI, autarquia vinculada ao Ministério da Justiça”. Mesmo assim, a Embrapa está analisando processos de demarcação em outros três estados: Mato Grosso do Sul, Rio Grande do Sul e Santa Catarina, que poderão ser suspensos a qualquer momento. O assessor político da Articulação dos Povos Indígenas Brasileiros (Apib Paulino Montejo antevê as suspensões como ante-sala para um decreto que oficialize o flagrante desrespeito aos artigos 231 e 232 em curso.
Coincidência ou não, a ministra Gleisi, um dia após pedir a suspensão das demarcações no Paraná, compareceu à audiência pública dos ruralistas, com as “boas” notícias sobre a efetivação de um novo marco regulatório para as demarcações de terras indígenas até o mês de junho. Na prática significa, em um primeiro momento, o esvaziamento e desmonte completo da Funai.
A tragédia vai além
Municiados pelo fato de que membros do alto escalão do governo, além da própria presidenta Dilma, colocaram sob suspeita a própria Funai, os deputados ruralistas – todos homens, brancos, com mais de 50 anos e falas incrivelmente parecidas e defensoras dos interesses das elites – sentiram-se totalmente à vontade e apelaram para o princípio da isonomia constitucional, demandando que a suspensão dos processos de demarcação seja feita em todos os estados do Brasil.
“Esta audiência pública é um divisor de águas e tem como objetivo a suspensão de todas as demarcações. Não há alternativa”, afirmou de modo bastante nervoso o deputado Vilson Covatti (PP/SC), conhecido detrator dos povos indígenas e de seus aliados, imputando falsas acusações e respondendo a processos por tais atitudes em seu estado de origem.
A instalação da Comissão Especial sobre a PEC 215, que passa para o Legislativo a prerrogativa de definir as demarcações de terras indígenas, e a vigência da Portaria 303, que estende as condicionantes da demarcação da Terra Indígena Raposa Serra do Sol para todas as terras indígenas do Brasil, também foram temas recorrentes e exigências apresentadas pelos ruralistas. Em relação a esta Portaria, o Advogado Geral da União (AGU), ministro Luís Inácio Adams, também assumindo claramente de que lado está, afirmou que “quanto mais rápido for o julgamento dela, maior clareza e certeza teremos em relação às condicionantes, que estão absolutas corretas em seu mérito. O objetivo é dar repercussão geral e a segurança do precedente. E, a partir disso, todos os processos de demarcação não finalizados deverão ser revistos retroativamente a partir desse julgamento da Portaria”.
Não satisfeitos com a série de ataques orquestrados contra os povos indígenas, os parlamentares ruralistas ainda demandaram a instalação da Comissão Parlamentar de Inquérito (CPI) da Funai, proposta recebida com aplausos pela claque formada pelos latifundiários vindos do Paraná, Bahia, Mato Grosso e Mato Grosso do Sul. No total, segundo os próprios deputados, cerca de 1.100 representantes dos fazendeiros foram trazidos destes estados para pressionar o governo federal.
Por outro lado, 50 indígenas estiveram na audiência. Com o plenário tomado pelos ruralistas, que ultrapassavam em muito o número de 50 representantes acordado com a presidência da Câmara, os indígenas demonstraram força e coragem. De forma altiva, deixaram seu recado – apesar da censura imposta pelos ruralistas. Após cerca de duas horas, com gritos de “aqui é casa de ruralista e não de índio”, contra as manifestações preconceituosas dos deputados e da claque ruralista. Segundo Fernando Giacobo, presidente da Comissão de Agricultura e Pecuária, que presidia a audiência, os índios não podiam se manifestar. No entanto, ele não deu o mesmo tratamento aos ruralistas, que se manifestavam com aplausos após cada fala dos ruralistas. Assim como a presidente Dilma Russeff, os latifundiários não gostam de serem contrariados.
Os pequenos usados pelos grandes
O deputado Dionilso Marcon (PT-RS) alertou para a necessidade de explicitar o jogo armado pela bancada ruralista que, segundo ele, nunca se manifesta em nenhuma ação concreta para ajudar os índios que estão em situação de miséria. “O que me entristece é ver os pequenos agricultores e os quilombolas sendo colocados contra os índios. Os coronéis se escondem e estão usando os pequenos para atingir os seus objetivos”, afirmou. Ele também defende que a regularização fundiária precisa ser considerada. “São 196 proprietários que detém 336 mil hectares de terra. Destes, alguns são brasileiros. Muitas são multinacionais estrangeiras defendidas por estes que aqui se posicionam contra os índios”, concluiu.
Já o deputado Ivan Valente (PSOL-SP) afirmou que para discutir questões indígenas importantes, como a PEC 215, era “fundamental que caciques indígenas estivessem na mesa, já que os caciques do agronegócio, como a senadora Kátia Abreu (PSD/TO) e o deputado Homero Pereira (PSD/MT), compuseram a mesa da audiência”. Ele também chamou a PEC 215 de excrescência, que tanto a sociedade como o governo precisam se opor. Assim como Marcon, Valente destacou a importância de separar os interesses dos pequenos agricultores e os dos latifundiários.
“A Funai virou a Geni. Os índios não são responsáveis pelos problemas que estão ocorrendo. Eles são vítimas. Há 100 milhões de hectares na mão de proprietários particulares, e mesmo assim, não se discute a reforma agrária e o sistema fundiário. As soluções são complexas e não podem ser encaminhadas somente para beneficiar o agronegócio, sojeiros e madeireiros ”, afirmou Valente. Em relação à CPI da Funai, ele afirmou que até a assinaria desde que ela analisasse as atrocidades e violências cometidas contra os povos indígenas relatadas pelo recém descoberto Relatório Figueiredo, realizado pela ditadura militar em 1967. “Dois mil indígenas Waimiri-Atroari desapareceram na Amazônia”, exemplificou.
Durante a audiência, vários deputados afirmaram que os índios são bancados por organizações internacionais e movimentos irresponsáveis, alegando que eles atuam assim porque não querem que o Brasil se desenvolva e que chegam, inclusive, a importar índios de outros países, como Paraguai e Bolívia. No entanto, apesar da contundência das denúncias, elas ficaram no vazio porque nenhum deles nomeou sequer o nome de uma dessas organizações e movimentos.
No lugar errado, na hora errada? Ou muito pelo contrário…
O deputado Sarney Filho (PV/MA) fez a última fala da audiência e afirmou que quem deveria estar naquela sessão respondendo às questões relativas à Funai era o ministro da Justiça, José Eduardo Cardozo, já que esta instituição indigenista é vinculada ao seu ministério. “Com todo respeito, ministra, a Casa Civil não tem nenhuma atribuição constitucional para discutir as questões indígenas”, declarou ele, que defendeu o quadro qualificado da Funai e a sua atuação. “O Congresso quer promover um retrocesso na legislação. Trata-se de uma manobra para não se criar mais nenhuma terra indígena”, concluiu ele.
A participação da ministra-chefe da Casa Civil na audiência convocada pelos ruralistas, o conteúdo de sua fala, assim como a decisão de suspender as demarcações indígenas no Paraná são medidas consideradas pelo movimento indígena como um ato político único, importante para agradar os ruralistas já que ela é a provável candidata do PT ao governo paranaense. Segundo matéria da Folha de S. Paulo, edição de 10 de maio, assinada pelo repórter Aguirre Talento, “quando se candidatou ao Senado, em 2010, Gleisi recebeu R$ 390 mil de empresas ligadas ao agronegócio”. Pelo andar dos tratores, o apoio poderá ser bem maior no ano que vem.
Desde a demarcação da Raposa Serra do Sol, que foi contestada até o Supremo Tribunal federal (STF) decidir a favor de sua demarcação em 2009, os ruralistas têm tentado alternativas para rever a situação das terras indígenas. O presidente da Frente Parlamentar Agropecuária, deputado Moreira Mendes (PSD-RO), disse que, depois da discussão do novo Código Florestal, este será o próximo embate legislativo do setor.