Antropólogo analisa as mudanças na terra indígena Raposa Serra do Sol após a polêmica decisão do STF de retirar os fazendeiros da área em 2009. De olho no crescimento da população e da pecuária, lideranças locais já se preocupam com a sustentabilidade
Fotos: Guilherme Gomes – UNESP Ciência
São quase 11h e a aldeia Maturuca, situada na terra indígena Raposa Serra do Sol, em Roraima, está em clima de expectativa. Seus habitantes aguardam um ilustre visitante, que, esta manhã, está um pouco atrasado. O adiantado da hora faz os tuxauas – termo local para cacique – debaterem o cancelamento da grande dança de recepção que está programada. De repente um homem esguio, de bermuda e barba rala desce de um carro enlameado. É o visitante, que saúda os tuxauas e culpa as condições da estrada pelo atraso.
Segue-se um corre-corre e logo oitenta crianças e jovens da etnia Makuxi, vestidos de maneira tradicional, espalham-se pelo pátio da aldeia. Começam a dançar e a cantar a plenos pulmões. À medida que o visitante caminha por entre eles, é envolvido pelos dançarinos, que seguem seus passos. A canção de boas-vindas, entoada em língua macuxi, diz “você vem de longe/ as meninas te saúdam”.
O recém-chegado, recebido de forma tão vibrante, é o antropólogo Paulo José Brando Santilli. Professor da Faculdade de Ciências e Letras da Unesp em Araraquara, Santilli também coordena o Centro de Estudos Indígenas Miguel A. Menendéz. Seus estudos etnográficos na região, que começaram nos anos 1980, aproximaram-no das lideranças e o levaram a colaborar intensamente na luta pela criação da terra indígena Raposa Serra do Sol. O mesmo engajamento que lhe granjeou a estima dos indígenas tornou-o também persona non grata para as autoridades do Estado de Roraima. Após uma ausência de quase uma década, Santilli começou a fazer novamente visitas de campo à região em fins de 2012. Durante seis dias, em fevereiro passado, suas atividades foram acompanhadas pela reportagem de Unesp Ciência.
A Raposa Serra do Sol é habitada por cerca de 20 mil indígenas das etnias Makuxi, Uapixana, Ingarikó e Patamona. O processo de demarcação e homologação levou décadas, e foi maculado por perseguições, prisões, incêndios e assassinatos de nativos. De um lado estava o Conselho Indígena de Roraima (CIR), entidade que representava a maior parte dos indígenas.
Opondo-se a eles estavam garimpeiros e fazendeiros, estabelecidos na região desde meados do século 20, e que contavam com o apoio do governo estadual. No centro da disputa entre os grupos estava o modelo de demarcação a ser seguido para a criação da terra indígena.
Os fazendeiros defendiam uma demarcação “fatiada”. Nesse modelo, as propriedades rurais permaneceriam em suas mãos, sendo ladeadas por extensões descontínuas de terra indígena. Com o objetivo de reforçar sua posição, chegaram a patrocinar a criação de outra entidade indígena, que também se manifestava favoravelmente à demarcação fatiada. Já os indígenas do CIR solicitavam a criação do modelo contínuo, que implicava desativação das fazendas e saída de seus proprietários da região.
O enfrentamento entre os dois grupo ganhou repercussão internacional e perdurou até 2009. Nesse ano, numa decisão histórica que foi noticiada até no The New York Times, o Supremo Tribunal Federal determinou a instauração da terra indígena de acordo com o modelo contínuo, e estipulou a retirada de todos os não indígenas de uma área de 1.750.000 hectares.
Ao retomar o trabalho de campo na região, Santilli espera compreender melhor de que forma a vitória afetou o modo de vida das etnias que vivem ali e discutir com elas estratégias para lidar com os desafios que enfrentarão daqui para a frente.
Nosso giro acompanhando o antropólogo começou com uma viagem de cerca de 320 km entre Boa Vista, a capital do Estado, e o município de Uiramutã, um enclave não indígena incrustado no interior da Raposa Serra do Sol. Sua permanência, ratificada pelo STF, foi interpretada como uma concessão aos grupos apoiados pelo governo do Estado. O caminho para Uiramutã é feito cruzando-se várias estradas que também ficaram de fora da demarcação, permanecendo sob a responsabilidade do Estado e de municípios, embora estejam dentro da Raposa Serra do Sol.
Apesar da distância relativamente curta, a viagem levou cerca de 6 horas, devido principalmente ao péssimo estado das estradas e das pontes. Segundo Santilli, o governo do Estado reduziu ao mínimo a manutenção destas vias depois da retirada dos fazendeiros. Um sinal de que as paixões que animavam os dois lados da contenda ainda não arrefeceram totalmente, apesar da vitória de um deles Em certos trechos, a sensação que se tem é a de estar participando de um verdadeiro rally.
Discórdia familiar
Junto com o antropólogo viajava o tuxaua Orlando Pereira da Silva, veterano na luta pela terra. Entre irmãos, filhos, primos, sobrinhos e netos, a parentela de seu Orlando chega a quase 300 pessoas. A maior parte delas vive perto de Uiramutã. Assim como as estradas, também sua família ainda exibe sinais das décadas de enfrentamento que assolaram a região. Grande parte dela – inclusive o neto, que é o prefeito de Uiramutã – era contrária à demarcação contínua. Entre as causas para isso estaria o medo, fomentado pelos proprietários rurais, de que, sem os brancos por perto, os indígenas experimentassem uma forte carência, com diminuição de vestuário e até de comida. “Esse meu neto teve uma formação diferente [da minha], só estudou na escola dos brancos. Não conhece a realidade do movimento indígena”, avalia seu Orlando.
E as desavenças familiares ganharam outro combustível com as eleições municipais do ano passado. As máquinas partidárias interferiram no cotidiano da região. Houve vários casos de indígenas que foram trazidos dos pontos mais remotos da Raposa Serra do Sol para Uiramutã, a fim de serem registrados como eleitores pela primeira vez. Dentro de uma mesma família, candidatos de partidos diferentes disputaram votos e apoios, provocando brigas. “Eles ficaram estarrecidos com as disputas que aconteceram dentro de algumas famílias. Este ainda é um momento de curar as feridas”, explica Santilli.
A trajetória de vida de seu Orlando ajuda a ilustrar o longo percurso seguido pelos indígenas da região. Até meados do século 20, o preconceito era tão grande que muitas vezes os próprios índios costumavam referir-se a si mesmos com o termo genérico de caboclos. Como tantas crianças caboclas, Orlando foi encaminhado por sua família para trabalhar gratuitamente numa grande fazenda, em troca de utensílios como armas e ferramentas. “Como não tínhamos escolas, havia a ideia de que esse período nas fazendas serviria para dar alguma formação aos indígenas. Lá eles aprenderiam a trabalhar, a lidar com gado, talvez até a ler e escrever”, explica Santilli. Orlando não chegou a aprender a ler, em compensação tornou-se um exímio tocador de sanfona. Depois saiu da fazenda e ganhou o mundo. “Nessa época eu bebia, andava pelos garimpos, tocava nas festas… Ajudei a fazer bagunça”, lembra.
Com 18 anos de idade, Orlando foi eleito tuxaua. Teve apoio até dos brancos, que esperavam que, por conta de sua criação numa fazenda, o novo líder se mostrasse complacente com antigos males, como o alcoolismo (que grassava entre os índios) e a atuação descontrolada dos garimpeiros. Mas ele seguiu na direção oposta. Desde o início se manifestou favorável a controlar o garimpo, e procurou reforçar no povo o sentimento de comunidade. Chegou a orientar os indígenas para que não frequentassem mais as festas dos fazendeiros, onde era comum que passassem por humilhações. A partir de 1971, quando a militância indígena começou a se organizar para lutar pela terra, ele esteve na linha de frente do movimento. Sua militância o levou muitas vezes a Brasília, e fez com que recebesse ameaças de morte.
Hoje a nova geração vive uma realidade bem diferente. Benefícios como a aposentadoria rural e o bolsa família proporcionaram maior segurança financeira para que essas pessoas enviassem seus filhos à escola. Estas funcionam nas aldeias, e seu programa abrange também as línguas e tradições dos povos nativos. Formados nestas escolas, os filhos de Orlando falam de suas origens num tom celebrativo e militante. Seis deles atuam nos setores de saúde e educação indígenas, em postos e escolas espalhados pela Raposa Serra do Sol.
Filha de Orlando, a agente de saúde Leodora Pereira recebe Santilli no posto de saúde onde trabalha, nas vizinhanças de Uiramutã. Leodora enfatiza que muitos atendimentos envolvem remédios fitoterápicos produzidos a partir do conhecimento tradicional da etnia Makuxi. São tinturas, extratos, pomadas e garrafadas, usados de forma complementar à medicação alopática, que tratam desde micoses até inflamações uterinas. “Nós aperfeiçoamos os medicamentos tradicionais, eles agora têm data de validade. E agora temos enfermeiros e médicos indígenas, não dependemos de outras pessoas para nos atenderem”, comemora.
Uma das questões que interessam ao antropólogo é a maneira como os índios daqui se relacionam com o gado. Tradicionalmente, as etnias daquela região são exímias cultivadoras de mandioca, e complementam a dieta com caça e pesca. O gado bovino foi introduzido no século 18. Com o tempo os fazendeiros brancos consolidaram uma pecuária extensiva e de baixa produtividade, calcada no uso de vastas extensões de terra plana.
A partir dos anos 1970, a Igreja Católica começou a doar reses para as comunidades indígenas, como estratégia para apoiar a reivindicação da posse da terra. Com o tempo, a caça e a pesca foram escasseando, e os habitantes foram se tornando mais e mais acostumados à carne do gado. Hoje, as estimativas quanto ao total de animais chegam a 70 mil cabeças. Quatro anos atrás, antes da demarcação, o número era a metade, evidenciando uma tendência de crescimento rápido do rebanho. “Esse é um caso único de índios que estão se tornando pecuaristas”, afirma Santilli.
Em nossos deslocamentos pela Raposa Serra do Sol, vimos diversas pequenas estruturas cercadas, denominadas retiros. É neles que as reses são guardadas depois de passarem o dia alimentando-se nos pastos. A maior parte do rebanho pertence às aldeias, algo fácil de compreender, levando-se em conta que, nestas paragens, o conceito de propriedade privada não vai muito além da posse de objetos pessoais. Mas as criações particulares de gado existem, e estão encorpando. Já se encontram indígenas proprietários de centenas de cabeças, e que pagam a outros indígenas para que atuem como seus empregados.
Ao chegarmos à aldeia Maturuca – aquela onde uma grande recepção aguardava Santilli – pudemos conhecer um dos retiros de gado do Macuxi Inácio Brito. Professor aposentado, ele é apontado por diversos moradores da Raposa Serra do Sol como exemplo de homem bem-sucedido. Professor Inácio, como é conhecido, participou desde o início da organização da mobilização pela terra, tendo levado até um tiro na coxa durante um enfrentamento. Também foi um dos pioneiros na educação indígena no Estado. Hoje, ele possui um rebanho de cerca de 500 cabeças, guardadas em dois retiros e cuidadas por dois indígenas.
Inácio diz que nunca trabalhou em fazenda e recebeu de um avô um rebanho de pouco mais de uma dúzia de animais. Trabalhando em paralelo à carreira de professor, aprendeu a lidar com o gado simplesmente vendo o que os brancos faziam, e tentando copiar. “Só que no começo não tínhamos cavalos. Para reunir o gado, íamos a pé mesmo”, diz. Ao talento para a pecuária, somava-se a renda do salário de professor, que lhe permitiu adquirir animais de fazendeiros e de outros indígenas. “Fiz isso por orientação das lideranças indígenas. O gado foi uma ferramenta que nos ajudou a reocupar nossa terra”, diz.
Para Inácio, o crescimento acelerado do rebanho nos últimos anos pode gerar problemas. “Antes, fazendeiros e garimpeiros levavam nossas reses. O rebanho não crescia. Agora o número de comunidades está crescendo, e elas precisam de espaço para a lavoura. Estamos discutindo se deve haver um limite para o tamanho do rebanho que cada comunidade pode ter. Eu sou a favor”, afirma.
Santilli diz que o surgimento dos primeiros grandes rebanhos de propriedade de indígenas, assim como a contratação de alguns indígenas como empregados de outros, são novidades importantes. “Aqui, essa é uma nova forma de apropriação do trabalho. Mas, embora os rebanhos possam ser herdados, a terra necessária para criá-los não é”, pondera. Ou seja, ainda é cedo para avaliar se o processo poderá implicar no aparecimento de verdadeiras diferenças de classe.
O antropólogo também tem percebido um aumento nos relatos de pequenos conflitos envolvendo a posse de animais. São casos em que um indígena abate um animal pertencente a outro. Quando o dono fica sabendo, não raro recorre às autoridades locais, como os tuxauas ou as lideranças ligadas à CIR. “Estamos vendo estes problemas ocorrendo aqui na região”, conta Abel da Silva, coordenador da CIR responsável por uma área onde o rebanho ultrapassa as 20 mil cabeças de gado. “Por isso, estamos estabelecendo uma regra: aquele que abater a rês de outra pessoa deve devolver o dobro. Assim ninguém vai pegar o que é dos outros.”
Punição para a fofoca
Abel comenta que a necessidade de estabelecer regras para facilitar a convivência está na ordem do dia na Raposa Serra do Sol, tendo sido o tema de um encontro de tuxauas realizado em janeiro. Entre as propostas, chama a atenção a de criar uma penalidade para a fofoca. “Essa pode pegar muita gente”, reconhece. Ele conta também que já foram criadas penalidades internas para os casos em que houve mortes associadas a bebedeiras. “A pessoa fica dez anos afastada da aldeia, sem direito a visita dos pais ou da esposa, trabalhando pela comunidade e lendo a bíblia. Tem funcionado bem, a pessoa retorna mudada depois ao convívio”, conta.
O consumo de álcool, aliás, é listado por todos como uma das principais causas de preocupações depois da saída dos fazendeiros. No passado, para pôr fim ao alcoolismo endêmico que dividia as comunidades, muitas aldeias optaram por simplesmente proibir o consumo de cerveja e cachaça. Mas com a permissão para que não indígenas trafeguem pelas estradas e se estabeleçam em Uiramutã, o acesso à bebida é fácil, o que pode ser confirmado pelas latas de cerveja que se veem espalhadas nos caminhos. “A bebida é proibida, mas não tem quem respeite a proibição”, reconhece Orlando. Mais recentemente, a maconha começou a aparecer, vinda da Guiana, onde existem muitos adeptos do rastafarianismo. Atentos ao tema, os agentes de saúde já fazem palestras contra álcool e drogas nas aldeias.
Mas há hábitos que são mais difíceis de mudar. Tradicionalmente, os grupos desta região possuem suas próprias bebidas fermentadas. A mais fraca é denominada caxiri, parte integrante da dieta dos habitantes da região. Muitos começam a consumi-lo ainda de manhã. E quem se dispõe a circular pelas aldeias da Raposa Serra do Sol deve sepreparar para experimentar a bebida várias vezes ao dia.
A certa altura, visitamos uma roça, onde índios de cinco aldeias estavam trabalhando juntos para um deles, num arranjo tradicional de trabalho solidário. Como forma de agradecimento, o dono da roça oferece caxiri em fartas quantidades. Chegamos no campo precisamente no momento em que a bebida estava circulando entre todos.
Já o pajuaru é uma bebida bem mais forte, que algumas comunidades estão tentando eliminar. “O pajuaru está por trás de problemas como brigas, esfaqueamentos e pancadas”, diz Lidiane Pereira, que trabalha no movimento de mulheres da terra indígena.“É a bebida que mais ocasiona os episódios de violência doméstica que registramos aqui”, diz. Entretanto, o pajuaru ainda é bastante consumido.
Aldeias em expansão
Além do rebanho bovino, também o número de aldeias tem crescido. Em 2006 eram menos de 170, hoje já são mais de 200. Santilli está impressionado como o espaço entre elas diminuiu. Nem bem deixamos uma para trás, já aparece outra no horizonte.Também salta aos olhos a grande quantidade de crianças. São comuns as famílias com oito, dez filhos. “Antes, a tendência era a redução da população, agora é o contrário”, constata o antropólogo. Um dos reflexos do crescimento rápido é o aparecimento de lixo abandonado nas estradas, bem como uma piora nas condições sanitárias de algumas aldeias. Isto tem ocasionado até uma incidência maior de moscas e carapanãs na região.
Um dos objetivos de Santilli nesta temporada de campo é questionar, junto com os indígenas, quais podem ser os caminhos para lidar com esse quadro de crescimento de uma forma ambientalmente sustentável. Com esse objetivo, o professor da Unesp tem feito palestras nas aldeias que visita. Nos cinco dias em que a reportagem o acompanhou, Santilli fez três destas intervenções. Nelas, falou sobre o crescimento que está havendo na Raposa Serra do Sol. Que é preciso pensar no futuro antes que o aumento da população leve à ocupação de todos os espaços, e que a criação de gado ocasione a destruição das ilhas de mata que ainda restam. “É preciso pensar de que maneira os rebanhos podem se relacionar com outros espécimes, com a disponibilidade de água, a construção de moradias e a necessidade de terra para a lavoura”, disse ele em um desses encontros, assistido por um público de estudantes.
Em pelo menos uma dessas palestras, deu para perceber que já há lideranças indígenas com essas preocupações. Foi no Centro Indígena de Formação e Cultura Raposa Serra do Sol, que funciona como escola técnica de agricultura e centro de formação de lideranças indígenas. “O crescimento populacional é um fator de grande impacto ambiental. Isso aumenta a necessidade de alimentos, de terra… Não queremos ver roubo, fome e violência em nossas comunidades. Também estamos começando a debater o planejamento familiar”, diz Edinho de Souza, um dos coordenadores do Centro. Segundo ele, os indígenas também estão preocupados com outras questões ambientais, como o aquecimento global.
Assistindo à palestra de Santilli na aldeia Caracanã está um espectador especial. Um jovem Macuxi de 17 anos chamado Paulo, nome escolhido por seus pais para homenagear o antropólogo da Unesp. O jovem Paulo diz que está concluindo o ensino médio e já sonha em ir à universidade, para se tornar advogado ou antropólogo. Santilli, que não vê o garoto desde que ele era criança, sorri com a novidade. “A maior parte dos indígenas que foram meus primeiros informantes não está mais por aqui. Para a nova geração, eu sou visto quase como um avô”, constata. A julgar pela maneira como o antropólogo foi recebido nas aldeias durante esta semana, uma coisa ficou clara: mesmo estando ausente da Raposa Serra do Sol por anos e vivendo a 3 mil quilômetros de distância, Santilli continua sendo considerado, pelos indígenas que vivem aqui, como parte da família.
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O julgamento de Macunaíma
Entre 1911 e 1913, o antropólogo alemão Theodor Koch-Grünberg realizou uma grande expedição que percorreu parte do estado de Roraima a Guiana e a Venezuela. A viagem resultou no livro de narrativas Mitos e lendas dos índios Taulipangue e Arekuná, de 1916. muitas delas tinham um personagem de nome Makunáima. Acompanhado de seus irmãos Ma´nápe e Jigué, Makunáima era apresentado como uma espécie de demiurgo capaz de criar ou transformar objetos e animais.
Com base nestes contos, Grünberg atribuía a Makunáima um caráter “malicioso e pérfido”. Em seu diário, o explorador desaprova a iniciativa de missionários ingleses na Guiana que traduziam a palavra “deus” por “Makunáima”, sem saber que o termo designava “seu herói maléfico”. Foi a partir da leitura do livro do antropólogo alemão que Mário de Andrade elaborou, em 1928, seu personagem macunaíma, descrito pelo epíteto de “o herói sem nenhum caráter”.
Ainda hoje os indígenas do norte de Roraima aprendem, desde a infância, os contos que fascinaram Koch-Grünberg. essas histórias muitas vezes estão correlacionadas a determinados lugares da paisagem. E, embora de etnias diferentes, muitos povos da região referem-se a si mesmos como “os filhos de Makunáima”.
Surpreendentemente, esses povos ignoram a existência do Macunaíma de Mário de Andrade . O antropólogo Paulo Santilli, da Unesp em Araraquara, vem proporcionando aos filhos de Makunáima um encontro com o Macunaíma de Mário. Tem levado uma cópia em DVD do filme homônimo, dirigido em 1969 por Joaquim Pedro de Andrade, tido como uma das poucas manifestações tropicalistas no cinema.
A primeira exibição foi em janeiro, na aldeia Andorinhas. A plateia sentou-se no chão, enquanto o filme era exibido num laptop colocado numa cadeira. A maior parte da audiência tinha um domínio apenas razoável do português, mas isso não parece ter prejudicado a força da obra. “Era impressionante como eles riam durante o filme, mesmo entendendo pouco o português”, diz Santilli. O maior impacto ocorreu no começo da projeção, no momento do nascimento de macunaíma, interpretado por Grande Otelo. “Ao verem um Macunaíma preto, eles soltaram um ‘oh’ de espanto“, recorda o antropólogo. O impacto emocional não significou aprovação. “O filme está errado”, disse Luciane Samuel, moradora da aldeia Andorinhas. “Eu acho que o Paulo Santilli deveria conversar com meu avô, que sabe contar direito as histórias de Makunáima”.
A segunda exibição aconteceu em fevereiro, num auditório da Universidade Federal de Roraima, e foi mais polêmica. O evento foi organizado com o apoio do Núcleo Insikiran de Formação Superior indígena, e contou com uma mesa debatedora formada por quatro indígenas. As reações variaram. Vice-coordenador do conselho indígena de Roraima (CIR), o Macuxi Ivaldo André reafirmou que “a gente tem na alma essa força do Makunáima” e pouco falou do que viu. Dílson Ingaricó se propôs a fazer “uma análise crítica do filme” e queixou-se da ausência de atos heroicos por parte do protagonista. Disse que, entre os índios Ingaricó, o personagem Jigué é ainda mais importante que o de Makunáima. Mas nem por isso deixou de defendê-lo. “Ninguém ouviu falar que o Makunáima fosse mulherengo, como mostra o filme”, afirmou. Telmo Paulino, também Macuxi, disse que o filme tinha “altos e baixos” e era “uma provocação que mexia com a história de um povo”. Em sua fala, Paulo Santilli procurou contextualizar o longa-metragem explicando como dialogava com elementos da realidade política brasileira dos anos 1970, e sugeriu a criação de um acervo na UFRR que abrigasse as diversas representações artísticas e etnográficas associadas ao herói.
Por mais que os indígenas de Roraima estranhem a figura de Macunaíma, ela teve um papel importante no processo que resultou na demarcação contínua da raposa Serra do Sol. Em 2009, o Supremo tribunal federal debruçou-se sobre o processo. Santilli foi o autor do laudo técnico da Funai que resultou na demarcação das dimensões atuais da terra indígena e foi a Brasília para conversar com os onze juízes encarregados do caso. O antropólogo argumentou que não reconhecer o direito destes povos à terra equivaleria a despojá-los do direito de possuírem suas respectivas identidades étnicas. E como negar isso aos grupos cujas tradições tanto contribuíram para a discussão da identidade nacional brasileira? “Esse argumento revelou-se decisivo para convencer os juízes”, diz Santilli. A menção a Macunaíma foi parar até no voto do relator da ação, o ministro Carlos Ayres Britto. O placar final foi de 10 x 1, a favor da demarcação contínua.
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Compartilhada por Henyo Barretto.
Boa Noite!
Gostei muito do texto, e, principalmente do trabalho do Prof. Paulo Santili ao voltar na Terra Raposa Serra do Sol e possibilitar que a gente tome contato com o que está acontecendo por lá, bem como apoiar os makuxi nesse momento histórico de sua existência. Aprendi muito lendo o artigo. Aprendi sobre o papel importante da escola para eles, da saúde, dos processos rurais, da política e da regulamentação das relações sociais.
Gratidão amigos
Um forte abraço