Em busca da Atenção Diferenciada na Saúde Indígena

Paulo Daniel Moraes*

A crise que atravessa a assistência à saúde das populações indígenas no país e que parece não ter fim levou a Sexta Câmara do Ministério Público Federal (MPF) a realizar no final do ano passado o chamado Dia D da Saúde Indígena, como uma forma de ‘chamar a atenção da sociedade e firmar uma postura de atuação coordenada do MPF diante do triste quadro da saúde indígena no Brasil’. O atual órgão gestor do Subsistema de Atenção à Saúde Indígena (SASI-SUS), que deveria dar as respostas a este quadro, é a Secretaria Especial de Saúde Indígena (SESAI), criada no ano de 2010 em atendimento a uma forte mobilização nacional do movimento indígena motivada pelas notórias deficiências e incompatibilidades que a Fundação Nacional de Saúde (FUNASA) vinha tendo para exercer este papel.

A própria criação do Subsistema de Atenção à Saúde Indígena (SASI-SUS) atendeu a uma crescente mobilização dos povos indígenas e seus aliados iniciada na Segunda Conferência Nacional de Saúde Indígena em 1993, que levou o Ministério Público Federal a interpelar o governo diante de sua omissão provocando a aprovação da chamada Lei Arouca no ano de 1999. Tanto a Lei Arouca como a Política Nacional de Atenção à Saúde Indígena aprovada pelo Ministério da Saúde no ano de 2002 foram baseadas inteiramente nas resoluções e no modelo de atenção diferenciada preconizado pela Segunda Conferência Nacional de Saúde Indígena, que foi protagonizada pelo movimento indígena pegando de surpresa os gestores da saúde indígena na época.

Em 2012 mais uma vez o movimento indígena se levantou para reivindicar a convocação imediata da Quinta Conferência Nacional de Saúde Indígena, devido à morosidade do governo federal em promover a implementação efetiva da Política Nacional de Atenção à Saúde Indígena. O tema da conferência aprovado após muita resistência dos gestores da SESAI é “Subsistema de Saúde Indígena e SUS: Direito, Acesso, Diversidade e Atenção Diferenciada”. Alguns dos princípios desta Atenção Diferenciada à Saúde Indígena, estabelecidos ao longo das quatro conferências anteriores, e que deverão pautar as discussões nas etapas locais, distritais e nacional da Quinta Conferência, são discutidos a seguir.

– Modelo de Gestão e Autonomia dos Distritos Sanitários Indígenas:

A autonomia administrativa e financeira dos Distritos Sanitários Indígenas é o principal fundamento do modelo de gestão propugnado nas conferências, e deve contemplar além dos aspectos meramente administrativos, questões como a democratização e descentralização das decisões, o fortalecimento do controle social e da gestão participativa, a realização de investimentos permanentes na formação dos profissionais indígenas, e a valorização da Medicina Tradicional Indígena. Os diversos órgãos que têm se sucedido na gestão da saúde indígena no país sempre se caracterizaram por uma cultura institucional autoritária, burocrática e tecnicista, permeada pelas ingerências constantes de grupos políticos anti-indígenas e pelos repetidos escândalos de corrupção.

Toda a expectativa gerada com a criação da SESAI pelo Ministério da Saúde tem sido frustrada pela postura autoritária e centralizadora deste órgão, que impossibilita a construção de uma verdadeira autonomia dos distritos, e subtrai dos povos indígenas o seu direito à gestão participativa e à autodeterminação no campo da saúde. A Declaração sobre os Direitos dos Povos indígenas da ONU afirma que “os povos indígenas têm direito à autonomia e autogestão nas questões relacionadas com seus assuntos internos e locais, assim como dispor dos meios para financiar suas atividades de forma autônoma.” A saúde é um dos maiores bens das populações indígenas, e um modelo de gestão justo, democrático e culturalmente adaptado deveria respeitar este princípio fundamental.

– Modelo Assistencial e Diálogo Intercultural em Saúde:

O modelo de assistência empregado na atenção à saúde das populações indígenas no Brasil tem como referência o sistema biomédico, criado nos chamados países desenvolvidos e difundido em todo o mundo, que se baseia no poder médico, está centralizado nos hospitais, e é dependente de alta tecnologia. O modelo assistencial proposto pela Organização Mundial de Saúde (OMS) na Conferência de Alma Ata em 1978 tendo como principal estratégia a Atenção Primária à Saúde, encontra-se hoje sufocado, funcionando apenas como porta de entrada para um sistema cada vez mais caro, sofisticado e distante da realidade e da cultura da população indígena.

A assistência à saúde indígena prestada hoje na maioria dos distritos privilegia a atuação das Equipes Multidisciplinares de Saúde, sem uma formação indigenista e antropológica adequada, que acabam encaminhando a maioria dos pacientes indígenas para os serviços de atendimento nas cidades, provocando a superlotação das Casas de Saúde Indígena (CASAI). O modelo preconizado nas conferências baseia-se na reciprocidade entre as comunidades indígenas e os agentes de intervenção, seja na troca de experiências como no poder de decisão; na busca da eficácia simbólica, através da compreensão ampla do universo indígena e da aproximação entre medicina e cultura; e na visão Integral da saúde, abrangendo os determinantes históricos, sociais e ambientais da saúde, de uma forma global e criativa.

– Formação e Valorização dos Profissionais Indígenas de Saúde:

Os programas de capacitação de Agentes Indígenas de Saúde estão paralisados desde a criação da SESAI na grande maioria dos distritos; o mesmo acontece em relação aos Agentes Indígenas de Microscopia (fundamentais para o controle da Malária na Amazônia), Agentes Indígenas de Endemias, Agentes Indígenas de Saúde Bucal, e aos Técnicos de Enfermagem, de Laboratório, e de Higiene Dental indígenas. Os processos de reconhecimento e regularização profissional destes profissionais indígenas foram esquecidos, assim como a promessa de um Processo Seletivo Diferenciado para a sua contratação. A importante categoria dos motoristas indígenas indicados pelas comunidades também foi substituída na maioria dos distritos por ‘motoristas profissionais’, sem nenhuma interlocução com as comunidades.

A prioridade estabelecida nas conferências para a atuação dos profissionais indígenas de saúde, que deveriam ser o elo fundamental de um sistema baseado na comunicação intercultural, na autogestão e na Medicina Tradicional Indígena, foi colocada em último plano, considerada por muitos gestores como inviável e ineficaz. É preciso retomar com urgência o Programa de Educação Profissional Básica para Agentes Indígenas de Saúde, uma das maiores conquistas do SASI-SUS, construído por técnicos de reconhecida capacidade do Ministério da Saúde, de instituições formadoras e de organizações indígenas, e que se encontra paralisado e desvalorizado pelos atuais responsáveis na SESAI.

– Controle Social e Autêntica Gestão Participativa:

Historicamente, os setores que controlam a política no país sempre encontram formas de virar as conquistas dos povos indígenas contra eles próprios. Isto tem acontecido com o SASI-SUS, concebido originalmente como uma forma de fortalecer a autonomia dos povos indígenas na área da saúde, e que está sendo usado hoje como um instrumento para promover a dominação e a divisão entre suas lideranças e comunidades. Os combalidos conselhos locais e distritais de saúde muitas vezes são usados para a legitimação de políticas que já vêm prontas, e que se revelam nocivas aos seus verdadeiros interesses. Assim foi imposta a Portaria 2656, que instituiu na prática a municipalização da saúde indígena na maioria dos distritos, e assim está sendo conduzido o processo de autonomia dos distritos, controlado pelos mesmos dirigentes que levaram a crise da saúde indígena até o patamar em que se encontra.

O movimento indígena deve exercer o seu legítimo direito de decisão e autodeterminação na saúde, através de suas formas próprias de organização social. A saúde deve estar a serviço da autonomia dos povos indígenas, fortalecendo sua resistência, organização e protagonismo na execução das políticas que lhes digam respeito. Os povos indígenas têm hoje o enorme desafio de criar novos instrumentos de resistência no rumo da tão almejada autonomia, não só na saúde, mas em todos os aspectos envolvidos no seu projeto de futuro. Este foi o lema adotado pelas lideranças indígenas na construção do modelo pioneiro de autogestão implementado por muitos anos no Distrito Sanitário Indígena do Leste de Roraima: “A Saúde Indígena se conquista através da participação e da organização”.

– Informes Gerais sobre a 5ª Conferência Nacional de Saúde Indígena:

A 5ª Conferência Nacional de Saúde Indígena foi convocada através de portaria do Ministro da Saúde e deve ser realizada ao longo do ano de 2013. O calendário aprovado prevê a realização das etapas locais de janeiro a junho, das etapas distritais de julho a outubro, e da etapa nacional nos dias 26 a 30 de novembro de 2013 em Brasília. Foi aprovada também a realização de Encontros Macrorregionais de Saúde (Norte, Nordeste, Sul, Sudeste e Centroeste), como previsto na Política Nacional de Saúde Indígena, a serem realizados no dia 26 de novembro em Brasília antecedendo a abertura da conferência, mas devendo ser realizados em ‘espaços próprios e com autonomia de condução pelas lideranças indígenas das regiões’.

O número total de delegados eleitos nas etapas distritais para a Conferência Nacional em Brasília será de 1.320 pessoas, dos quais metade serão usuários indígenas e o restante dividido igualmente entre os segmentos dos trabalhadores na saúde e dos prestadores de serviço. As delegações estão divididas proporcionalmente às populações dos distritos, variando de 16 delegados nos distritos pequenos como Altamira ou Araguaia, até 136 delegados no maior distrito que é o Mato Grosso do Sul. É importante observar que no segmento dos trabalhadores devem estar incluídos os trabalhadores indígenas. Serve como alerta a manipulação promovida pela Funasa na quarta conferência, comprometendo a paridade indígena, desvirtuando a legitimidade das decisões e definindo o rumo das principais votações

O processo de realização das etapas locais e distritais deve ser coordenado pelos Conselhos Distritais de Saúde Indígena (CONDISI), que em muitas regiões estão esvaziados e desestruturados. Por isto é importante a participação das bases organizadas do movimento indígena, integrando as comissões organizadoras e as equipes de apoio, e ajudando na construção dos regimentos internos e na realização das conferências. É importante também estar atentos para o risco de atrasos na liberação dos recursos previstos no orçamento provocando o esvaziamento destas etapas fundamentais para os objetivos da conferência, como aconteceu nos eventos anteriores.

O segmento dos gestores e prestadores de serviços não pode ficar restrito somente às instituições que integram o cadastro do SUS, como pretendem alguns membros da SESAI e do Conselho Nacional de Saúde, mas deve incluir todos os segmentos do movimento indígena que tiveram um papel determinante na criação do SASI-SUS e que prestam efetivos serviços de saúde, como apoio ao controle social, formação e educação em saúde, segurança alimentar, saúde do meio ambiente, e fortalecimento da Medicina Tradicional Indígena. Estes aspectos pouco valorizados pela atual gestão da saúde indígena são componentes essenciais da Política Nacional de Atenção a Saúde Indígena, conquistada com muita luta pelo movimento indígena e que ainda está vigente no país.

É hora de participar e trabalhar para que esta 5ª Conferência Nacional de Saúde Indígena possa representar mais um passo na árdua caminhada em busca da Atenção Diferenciada na Saúde Indígena, respondendo aos legítimos anseios, interesses, e direitos dos povos indígenas consagrados na Constituição Brasileira e nos diversos documentos aprovados por órgãos internacionais.

Boa Vista – RR, 14 de fevereiro de 2013.

*Paulo Daniel Moraes, representante do CIMI na Comissão Intersetorial de Saúde Indígena (CISI).

http://www.cimi.org.br/site/pt-br/?system=news&conteudo_id=6720&action=read

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