Martha M. Batalha, Revista Época
Quando eu era criança, tinha uma brincadeira chamada Dicionário. Era assim: a gente escolhia uma palavra e tentava adivinhar o significado. Tortura, por exemplo. Eu diria que Tortura é igual a tormento físico ou psicológico infringido a alguém.
Tortura é uma palavra fácil de descrever, mas não aqui nos Estados Unidos. Depois do 11 de setembro o Governo Bush autorizou a CIA a utilizar formas de tortura durante o interrogatório de prisioneiros, entre elas o afogamento simulado, quando uma pessoa é forçada a inspirar água. Só que, por ser uma instituição americana a utilizar o método, e como os Estados Unidos não podem violar a convenção de Genebra (que afirma que prisioneiros de guerra devem ser tratados de forma humanitária) o afogamento simulado deixou de ser tortura para se tornar, de acordo com o Governo Americano, um método de interrogação coercitivo (ou harsh interrogation method).
Esta mudança de significado gerou muita polêmica por aqui. Afinal o afogamento simulado (ou waterboarding) é considerado tortura desde os tempos da inquisição. O pior é que não foi apenas o governo que insistiu que o waterboarding não era tortura: os principais veículos de comunicação americanos deixaram de se referir a waterboarding como tortura depois do 11 de setembro. Agora jornais como o The New York Times, The Los Angeles Times e The Wall Street Journal também chamam waterboarding de método de interrogação coercitivo. Um estudo de Harvard afirma que entre 1930 e 2002 o NYtimes definiu waterboarding como tortura em 81.5% dos artigos. Entre 2002 e 2008 o mesmo jornal definiu waterboarding como tortura em apenas 1.4% dos artigos.
Segue uma lista de outros métodos de interrogação utilizados pela CIA, nenhum deles considerado tortura:
– Manter os prisioneiros em pé e sem roupa por longas horas em temperaturas inferiores a 10º C. Baldes de água fria são jogados sobre os prisioneiros de tempos em tempos.
– Manter os prisioneiros em pé, algemados e sem dormir por mais de 40 horas.
– Submeter os prisioneiros a longas horas escutando o álbum “Slim Shady” de Eminem e músicas infantis, como as de Barney e seus amigos.
Estas técnicas – entre outras utilizadas – foram autorizadas pelo Ministério da Justiça americano em 2002, em um comunicado que dizia que uma técnica coercitiva de interrogação só poderia ser chamada de tortura quando infringisse uma dor equivalente ao que uma pessoa sentiria se estivesse morrendo ou sofresse falência de órgãos.
Ah, bom. Então quer dizer que arrancar a unha com alicate pode? Queimadura de cigarro pode? Pau-de-arara pode? E quem é que sabe o que é uma dor equivalente a que sente uma pessoa quando morre? Quem foi que morreu e voltou pra contar como é esta dor? Ou será que Ministério da Justiça tem seus comunicados psicografados?
Não sou uma especialista no assunto. Com exceção das músicas infantis, que eu garanto cumprirem seu objetivo, desconheço os outros métodos descritos aqui. Mesmo assim considero estas técnicas tortura. Porque tortura é que nem suruba – algo muito fácil de identificar. Quem está envolvido em uma ou em outra sabe exatamente o que está fazendo. E imagino não ser difícil fazer os oficiais da CIA concordem comigo. Basta submeter as senhoras suas mães a seus métodos de interrogação para todos me dizerem em seguida que, de fato, estas seriam formas de tortura. Esta discussão é pertinente porque há algumas semanas o Governo americano tomou uma decisão bastante triste: a de não levar adiante a investigação dos dois únicos funcionários da CIA suspeitos de mortes de prisioneiros de guerra. De acordo com o ministro da Justiça dos Estados Unidos, Eric Holder, as provas eram insuficientes.
A primeira “prova insuficiente” é o afegão Gul Rahman. Em 2002, Gul Rahman foi capturado no Paquistão e levado para uma prisão ao norte de Kabul numa antiga fábrica de cimento. Relatórios afirmam que ele apanhou dos guardas e foi mantido algemado e nu junto a uma parede sob temperaturas baixíssimas. Morreu de frio durante a noite. O oficial da CIA responsável pela prisão e que mandou realizar os abusos foi promovido, de acordo com a Associated Press. A CIA não conseguiu provar que Gul Rahman era terrorista. Ele era apenas um suspeito.
A segunda “prova insuficiente” é o iraquiano Manadel al-Jamadi. Ele teve a cabeça coberta por um saco plástico e foi suspenso pelos pulsos algemados numa espécie de crucifixação enquanto era interrogado. Depois de algum tempo ele parou de respoder e o interrogador da CIA, Mark Swanner, achou que ele estava blefando. Até ser convencido por guardas de que havia matado o prisioneiro. Na última década cerca de dez mil pessoas foram detidas em prisões americanas pelo mundo, de acordo com estimativas de grupos de direitos humanos. Embora haja casos de abusos e mortes, apenas quatro deles puderam ser provados. Desdes quatro os últimos dois que permaneciam em aberto eram os de Manadel al-Jamadi e Gul Rahman.
O fim das investigações mostram que os Estados Unidos querem esquecer definitivamente todas as arbitrariedades cometidas depois do 11 de setembro. Se por um lado culpar duas pessoas pelas mortes de prisioneiros parece errado – é como dizer que o carrasco é responsável por todas as mortes da Revolução Francesa – por outro a impunidade abre precedentes para que a história se repita. Pra quem vive aqui e admira este país por todas as conquistas de liberdade de expressão e direitos humanos que ele deu ao mundo, esta é uma decisão muito, muito triste.
(Logo depois que eu escrevi este post saiu uma reportagem no New York Times sobre o que pensam os dois candidatos à presidencia dos Estados Unidos sobre as técnicas de interrogação utilizadas pela CIA. Para Obama, waterboarding é tortura, e portanto inadimissível. No início do seu mandato ele decretou que todos os interrogatórios deveriam seguir uma lista de táticas não abusivas aprovadas pelo exército. Para Mitt Romney, waterboard não é tortura, e deve ser utilizado quando necessário. Mitt Romney foi aconselhado por seus assessores a, se eleito, voltar a autorizar as técnicas de interrogação coercitivas. É nestas horas que eu tenho vontade de aceitar a cidadania americana só para poder votar na pessoa certa.)
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