“As grandes empresas conseguiram, através do crescimento econômico, ganhar poder e influência política, e isso tem tornado difícil o movimento de pensar alternativas à produção do fumo”, assinala a secretária-executiva da Comissão Nacional para Implementação da Convenção-Quadro – Conicq.
Os países que realizaram estudos para verificar os ganhos com a fumicultura e os gastos para tratar doenças geradas pelo tabaco “constataram que o que se gasta com saúde é maior do que se arrecada com as vendas”, informa Tânia Cavalcante à IHU On-Line. Segundo ela, estudos da Aliança de Controle do Tabagismo e da Fiocruz demonstram que o sistema de saúde brasileiro gastou com apenas 15, das 50 doenças relacionadas ao tabaco, algo em torno de “21 bilhões de reais em 2011”.
Tânia esclarece que a “maioria da produção mundial de fumo se dá em países em desenvolvimento e em parceria com grandes companhias. As mesmas empresas que trabalham para expandir o consumo do cigarro com estratégias de marketing são as que atraem os pequenos agricultores, geralmente com situação econômica vulnerável, para a produção da fumicultura”. Somente no Brasil cerca de 200 mil famílias de pequenos agricultores estão “inseridos na cadeia produtiva do fumo”. A maioria delas, enfatiza, “quer deixar de plantar fumo, mas não pode, porque não tem alternativa”.
Na entrevista a seguir, concedida por e-mail à IHU On-Line, a secretária-executiva da Comissão Nacional para Implementação da Convenção-Quadro – Conicq comenta as iniciativas brasileiras elaboradas após a assinatura da Convenção-Quadro, em 2005, e assegura que apesar dos desafios, o tratado internacional tem sido eficiente para reduzir a produção e o consumo de tabaco no país. “Existe dentro do governo certa incoerência em algumas questões (…), mas hoje, por exemplo, o Ministério da Fazenda e a Receita Federal são grandes aliados da implementação da Convenção-Quadro”.
Tânia Cavalcante é médica e secretária-executiva da Conicq. Atuou como secretária-executiva da Comissão Nacional para Controle do Tabaco – CNTABACO durante as negociações da Convenção-Quadro da Organização Mundial da Saúde para Controle do Tabaco. Confira a entrevista.
IHU On-Line – Quais são os principais problemas de saúde relacionados ao tabagismo? Como essas doenças são abordadas pela área da saúde no Brasil?
Tânia Cavalcante – As principais doenças são as cardiovasculares, as doenças respiratórias crônicas, câncer e, além disso, uma série de outras doenças. Hoje existem mais de 150 doenças que têm uma relação maior ou menor com o tabagismo, doenças com as quais ele tem um efeito causal ou um efeito de agravar. Esse é o caso da a osteoporose e da saúde reprodutiva. O tabagismo também causa efeitos na gestação, e já se sabe que existe uma relação entre o tabagismo materno e o descolamento prematuro da placenta, o baixo peso de bebê ao nascer, abortos, e uma série de outros agravos. Também há uma relação do tabagismo com as doenças da infância, e isso se refere ao tabagismo passivo: crianças que são expostas à fumaça ambiental do tabaco em casa, nos locais de lazer, têm um risco maior de ter pneumonia, otite, problemas de retardo no desenvolvimento e amadurecimento da capacidade respiratória. Os bebês pequenos, filhos de mãe fumantes, têm maior risco de terem morte súbita infantil.
Sabemos que as doenças crônicas não transmissíveis são um grave problema no mundo. O conjunto dessas doenças não transmissíveis envolve as doenças cardiovasculares, as doenças respiratórias crônicas, como enfisema, bronquite, asma, diabetes, hipertensão e várias outras doenças que têm o tabagismo como principal fator de risco. Existe uma grande preocupação mundial com o crescimento das doenças crônicas não transmissíveis no mundo, porque morem cerca de 36 milhões de pessoas todos os anos devido a essas doenças. Essa situação é tão grave que a ONU, pela segunda vez, tratou de um tema de saúde, mencionando as doenças crônicas não transmissíveis. Esse tema foi abordado no ano passado em uma reunião que contou com presidentes de todo mundo para tratar dessa situação, que eles categorizaram como uma crise global. Por quê? Porque existe, além das perdas de vidas, um crescimento dessas doenças, que são consideradas um fator devastador da economia dos países.
Prevenção
A presidente Dilma esteve na reunião e reafirmou o compromisso do Estado brasileiro com a implementação da Convenção-Quadro para controlar o tabaco. A Convenção-Quadro é o primeiro tratado internacional de saúde pública que foi negociado sob os auspícios da Organização Mundial de Saúde – OMS. Esse tratado converge de uma série de medidas intersetoriais para reduzir a epidemia do tabagismo no mundo: algumas medidas são de governabilidade do setor de saúde, mas boa parte delas depende da ação de outros setores do governo que não a área saúde. Por exemplo, aumentar os preços dos impostos sobre o tabaco, de forma que pressione o aumento dos preços do cigarro – essa é uma das medidas consideradas “custo-efetivas” para reduzir o tabagismo; proibir a propaganda de cigarros, as atividades de promoção ao tabaco, colocar advertências sanitárias nas embalagens, para informar a população sobre a real dimensão do risco à saúde; além de estimular os fumantes a deixarem de fumar.
Existem também outras ações, como apoiar o fumante para que ele deixe de fumar, conscientizar a sociedade, capacitar profissionais de saúde para que possam abordar de forma adequada o fumante na sua cessação do tabagismo, além de alternativas à produção do fumo. Isso porque, ao mesmo tempo em que a Convenção-Quadro busca reduzir o consumo globalmente, ela igualmente se preocupa com o outro lado da moeda: o produtor que depende do fumo. A maioria da produção mundial de fumo se dá em países em desenvolvimento e em parceria com grandes companhias. As mesmas empresas que trabalham para expandir o consumo do cigarro com estratégias de marketing são as que atraem os pequenos agricultores, geralmente com situação econômica vulnerável, para a produção da fumicultura, com o discurso de que essa produção vai trazer riqueza e bem-estar para ele e sua família.
IHU On-Line – É possível estimar qual é o custo dessas doenças sob a perspectiva da economia e da epidemiologia?
Tânia Cavalcante – A maior parte dos países que fizeram esse tipo de estudo constatou que o que se gasta com saúde é maior do que se arrecada com as vendas. Recentemente a Aliança de Controle do Tabagismo – uma organização não governamental que atua na defesa da implementação da Convenção-Quadro no Brasil –, em conjunto com a Fiocruz, realizou um estudo em que mensurou o quanto o sistema de saúde gastou com apenas 15 das 50 doenças relacionadas ao tabaco. A estimativa foi de 21 bilhões de reais em 2011.
Coincidentemente, neste ano a arrecadação a partir do setor do fumo foi de 6 bilhões de reais, ou seja, se gasta muito mais do que se arrecada, apesar de alguns dizerem que produzir fumo gera emprego, traz desenvolvimento para o país. Esses dados refutam totalmente essa ideia equivocada, que já vem sendo estudada com bastante consistência pelo Banco Mundial. Este banco já estimou que, para cada dólar arrecadado, os governos gastam um dólar e meio para o tratamento das doenças relacionadas ao tabaco.
IHU On-Line – Considerando os riscos do tabagismo para a saúde, por que ainda se investe tanto na fumicultura? Trata-se apenas de uma questão econômica e de lucratividade?
Tânia Cavalcante – A fumicultura se instala na região Sul em meados do século passado, e desde então foi sempre um processo capitaneado por grandes empresas transnacionais. Essas grandes empresas reconheceram que, no Brasil, existe clima apropriado, terra fértil e, principalmente, mão de obra barata e disciplinada. As empresas encontraram um grande filão no Brasil e desenvolveram uma cadeia produtiva que é considerada exemplar mundialmente em termos de organização e logística.
Ao se especializarem na fumicultura, muitas famílias perderam o conhecimento agrícola de lidar com a terra, então passaram a se especializar nessa produção. Obviamente que as grandes empresas, uma vez instaladas, conseguiram, através do crescimento econômico, ganhar poder e influência política, e isso tem tornado difícil o movimento de pensar alternativas à produção do fumo. Hoje a nossa grande preocupação é o fato de o país ter 200 mil famílias de pequenos agricultores inseridos na cadeia produtiva do fumo. Estudos mostram que a maioria das famílias quer deixar de plantar fumo, mas não pode, porque não tem alternativa. Essa foi uma das razões pela qual o Brasil ratificou a Convenção-Quando.
Uma das condições para que o Congresso Nacional apoiasse a ratificação da Convenção-Quadro pelo Brasil foi a criação de um programa de diversificação em áreas que produzem fumo. Esse programa não proíbe ninguém de plantar fumo, porque a Convenção não tem esse objetivo. Ela busca salvaguardar as pessoas que dependem da produção do fumo, esperando a redução da produção e do consumo. Nesse sentido é que atua o programa de diversificação, coordenado pelo Ministério do Desenvolvimento Agrário. Trata-se de um programa alinhado à política de desenvolvimento rural do governo, capitaneado pelo Ministério do Desenvolvimento Agrário, que tem como foco principal diversificar a produção agrícola, para que fiquem menos vulneráveis às oscilações do mercado. No caso da fumicultura, a Convenção-Quadro anda a passos largos mundialmente. São 175 países acelerando o passo para implementar as suas medidas.
Já temos sinais de vários países que vêm reduzindo o tabagismo. Isso certamente vai impactar os pequenos fumicultores do Brasil, já que 85% da produção nacional é exportada. O Brasil já vem reduzindo o consumo interno há algum tempo. Então, é preciso que se pare de dizer que plantar fumo é bom para o país, porque não é.
IHU On-Line – Quais são as alternativas para os agricultores que hoje se dedicam à plantação de fumo?
Tânia Cavalcante – A filosofia desse programa é de que não existe um produto mágico. Em nível mundial existe um grupo de trabalho dedicado a estudar essa questão no intuito de orientar os países produtores quanto à implementação de novos produtos.
A visão é de que é preciso analisar localmente as plantações. Mais do que isso, é preciso ter uma organização para que as novas produções venham a ser dadas comoalternativas ao fumo, para que tenham um escoamento, uma logística de comércio. É preciso que o agricultor seja também recapacitado para lidar com outros tipos de produção, buscando autonomia na gestão de sua terra, porque hoje ele é tutelado pelas grandes empresas de fumo, e não tem liberdade em termos de gerenciamento. Faz parte desse processo de alternativas ao fumo uma série de elementos: a questão da garantia da comercialização, da capacitação do agricultor, do resgate de sua autonomia.
No município de Dom Feliciano, no Rio Grande do Sul, o prefeito decidiu implementar esse programa, e existem vários exemplos de que é possível mudar a produção com uma rentabilidade tão grande ou até maior do que a do fumo. As produções de uva, pepino e leite estão sendo observadas como alternativas à fumicultura.
IHU On-Line – Quais são hoje as principais políticas para prevenir e evitar o consumo de tabaco no Brasil?
Tânia Cavalcante – No Brasil já têm grandes ações como a proibição da propaganda, que até os anos 2000 era ainda permitida. Aliás, a partir de 2000 ela foi totalmente proibida nos grandes meios de comunicação. Em 2011, conseguimos avançar mais ainda, e proibimos totalmente a propaganda, inclusive nos pontos internos de venda. Essa é uma grande conquista nacional, porque sabemos que a propaganda faz a diferença em termos de captar novos consumidores. Também conseguimos proibir o patrocínio de eventos culturais e esportivos por marcas de cigarros, inclusive de Fórmula 1. Há também aquelas advertências com fotos nas embalagens. Dados do IBGE mostram que 65% dos fumantes brasileiros se sentem mais motivados a deixarem de fumar quando veem as fotos nas embalagens de cigarros.
Outra grande conquista foi a instalação da Agência Nacional de Vigilância Sanitária – Anvisa no Brasil, em 1999. Ela surgiu com a missão de regular os produtos do tabaco, e a partir daí tivemos importantes conquistas. Entre algumas dessas conquistas está a proibição dos termos “light”, “ultralight” nos cigarros. Entre as conquistas mais recentes, está a proibição dos aditivos que dão sabores aos cigarros, conquistada depois de dois anos de intenso debate, em que a indústria do tabaco criava uma ação de desinformação, tentando jogar os fumicultores contra a Anvisa. Essa é uma medida importantíssima, porque ajuda a prevenir a iniciação entre jovens. Obviamente a resistência foi enorme, porque a normativa fere um dos pilares da lucratividade desse setor, que é a sua capacidade de captar novos consumidores entre os adolescentes. Outra medida importante é o tratamento para deixar de fumar, que vem sendo implantado desde 2004 na rede do Sistema Único de Saúde – SUS. É uma resposta que o governo precisa dar àqueles fumantes que vêm sendo pressionados pelas novas leis e pelas famílias para deixarem de fumar.
O Brasil também tem uma lei que proíbe as pessoas de fumarem em ambientes coletivos. Essa lei ainda precisa ser regulamentada por um decreto presidencial que vai definir os parâmetros para a fiscalização dessa proibição. Então, estamos aguardando isso para que a rede de vigilância sanitária possa fiscalizar essa medida o mais breve possível.
IHU On-Line – Segundo notícias da imprensa, o BNDES emprestou 336 milhões de reais à agroindústria do fumo nos últimos cinco anos, e somente 22,4 milhões de reais para ajudar pequenos fumicultores a diversificar as culturas agrícolas. Como compreender esses dados e o incentivo público em empresas que produzem produtos que geram diversos problemas de saúde?
Tânia Cavalcante – Existe dentro do governo certa incoerência em algumas questões, e essa é uma delas. Mas hoje, por exemplo, o Ministério da Fazenda e a Receita Federal são grandes aliados na implementação da Convenção-Quadro. O artigo 6º da Convenção é de responsabilidade do Ministério da Fazenda, e no ano passado a presidente Dilma decidiu encaminhar uma medida provisória para o governo, a Medida Provisória n. 540, que desonera alguns setores produtivos, com o objetivo de enfrentamento da crise econômica, e que transferia parte dessa desoneração para o setor de fumo. Então, houve um aumento de impostos sobre a fumicultura, que impactou também no aumento do preço dos cigarros.
Entretanto, a dificuldade de realizar acordos com outros setores do Estado não é um problema somente do Brasil; isso acontece no mundo inteiro. Faltam ajustes finos, no sentido de termos mais recursos para promover alternativas ao fumo.
IHU On-Line – A que atribui o alto consumo de cigarros? É possível traçar um perfil dos usuários?
Tânia Cavalcante – Hoje o tabagismo no Brasil se concentra na população de menor renda e menor escolaridade, e na população rural a concentração também é maior. E provavelmente essa situação reflete talvez a forma de não equidade das ações, em termos de não conseguir alcançar essas populações nas ações nacionais. Estamos procurando caminhos que nos ajudem a chegar nessas populações para protegê-las da interferência das ações de marketing e das ações que são usadas de forma bastante capilar pelas empresas de tabaco para seduzir as pessoas. Hoje, 80% do consumo de produtos do tabaco acontecem nos países em desenvolvimento, o que reflete exatamente a vulnerabilidade que essas populações têm quando não existem políticas.
IHU On-Line – Deseja acrescentar algo?
Tânia Cavalcante – Esqueci-me de mencionar a redução do tabagismo entre as mulheres. Havia uma prevalência do tabagismo de 32% em 1989, considerando a população acima de 15 anos. O último dado internacional é de 2008, e demonstra que esse percentual caiu para 17,2%. Houve sim uma redução tanto entre homens como entre mulheres, mas o que se observa mais recentemente no fator de risco e doenças crônicas, através de dados do Vigitel – um sistema de vigilância por telefone, coordenado pelo Ministério da Saúde –, é que houve uma estagnação dessa queda entre mulheres, enquanto entre os homens a queda continua.
Outro aspecto importante de relatar é que essa queda do tabagismo no Brasil já se reflete na queda das doenças crônicas não transmissíveis e das mortes por doenças crônicas não transmissíveis. Houve uma redução, entre 1996 e 2007, de 20%. Foi uma redução significativa.
—
http://www.adital.com.br/site/noticia.asp?boletim=1&lang=PT&cod=70840