O mérito e o preconceito

Por João Paulo

Ao sancionar a lei que reserva 50% das vagas das universidades públicas por critérios de cor, rede de ensino e renda familiar, a presidente Dilma Rousseff tocou num dos temas mais polêmicos da sociedade brasileira. Sem choro nem vela, as universidades terão quatro anos para se adaptarem à lei. A partir de agora, a metade das vagas fica para a concorrência geral, a outra será objeto da disputa de alunos da escola pública, negros, pardos e indígenas, conjugados ainda com o pertencimento a famílias de baixa renda. Os chamados “formadores de opinião”, imprensa incluída, chiaram. E continuam chiando.

A primeira reação foi a esperada: a recusa da medida, ancorada em defesa da meritocracia. Para a sociedade brasileira, que nunca foi igualitária e sempre se armou sobre privilégios, trata-se de inversão absoluta de princípios. Afinal, em matéria de educação, o valor das avaliações constitui historicamente o critério por excelência de julgamento: os melhores merecem tudo, os piores as consequências do seu fracasso. O duplo vínculo que se estabelece é o da consideração da educação como de provimento público (todos pagam imposto para a minoria frequentar as melhores escolas superiores), mas julgada por critérios competitivos individualistas.

O desafio posto ao país é conhecido: como democratizar o acesso à universidade e manter – se possível, aumentar – o nível do ensino do país? Sempre que se valoriza um lado, o outro parece adernar. Esse tem sido o argumento dos que defendem a competição como instrumento de seleção. Afinal, se os melhores alunos ocupam os postos mais destacados, a tendência natural é o aprimoramento da qualidade do ensino pela resposta mais eficaz aos estímulos definidos como prioritários. Por outro lado, sempre que se afrouxam as restrições de entrada, a tendência é nivelar por baixo, o que resulta no decréscimo da qualidade do ensino.

Para os defensores desse raciocínio, a meritocracia é um valor imbatível. No entanto, a história já ensinou que não é o caso: a concentração da avaliação dos processos educacionais apenas no mérito e na competição gera uma seleção que é antes social que propriamente intelectual. O mérito não é um conceito puro e limpo de ideologia, mas uma dessas palavras que só existe acompanhada: todo mérito é mérito para alguma coisa (o que lembra a noção de intencionalidade da fenomenologia de Husserl).

Quando se identifica em um aluno maior capacidade para responder a determinadas questões, que são de antemão destacadas como as mais importantes, o que se tem é apenas um processo de validação de esperanças. Os melhores alunos serão aqueles capazes de responder às expectativas que fazem parte do universo de parte da sociedade. Em outras palavras, o mérito é apenas a consequência de uma certa visão de mundo, que exige comportamentos que fazem parte de uma classe social. Não se trata de seleção de talentos, mas de discriminação social.

Corte e inclusão
É possível argumentar que, no caso do saber, valores universais precisam ser preservados. É verdade. Mas não se trata, em momento algum, de incapacidade para desenvolver esses conteúdos, apenas de sua inexistência no território vivencial de parte da sociedade. É nesse sentido que a educação é civilizadora e não pode ser tomada como uma ferramenta de corte. Se o ensino básico e médio têm falhado nesse processo, nem por isso se deve entregar a universidade apenas a parte da sociedade.

Não procede o arrazoado de que, no caso da universidade, trata-se de um ensino que exige base e é voltado para a formação profissional. Desde que a universidade tenha capacidade de educar – e não apenas treinar –, o aluno tem todas as possibilidades, de acordo com seu esforço (e não com os méritos preconcebidos como universais), em reverter uma expectativa de fracasso em sucesso educacional e, posteriormente, profissional. A favor desse papel civilizador da universidade estão todas as pesquisas com alunos que ingressaram por meio de cotas.

Os resultados são unânimes: a disparidade em matéria de notas no momento da entrada no sistema superior simplesmente some ao fim do processo. Ou seja, os alunos que entram na universidade por meio de cotas, com notas de corte sensivelmente mais baixas, ao se formarem exibem resultados iguais ou melhores (de acordo com algumas pesquisas) aos colegas melhor classificados no momento do ingresso pelo vestibular. Ou seja, a universidade cumpre o papel de reverter as injustiças.

Essa situação faz pensar, então, na outra ponta do problema: se a meritocracia é um mito, a democratização é uma realidade possível. Os adversários das cotas costumam dizer que tal atitude é contraproducente e atinge exatamente o setor mais carente de todo o sistema, o ensino básico. Se a entrada na universidade é facilitada, não haveria pressão para melhoria dos estágios anteriores. O argumento, além de canhestro, é de má-fé. Na verdade, não se trata da busca de mudanças, mas de eternização das disparidades, jogando sempre para um futuro sem data as ações de melhoria da educação nos níveis fundamental e médio. É sempre bonito falar que precisamos investir em educação, sobretudo quando nossos filhos não frequentam escolas públicas. É uma atitude no âmbito da danosa piedade católica e da filantropia.

Medo da diferença
O que, no entanto, parece atingir mais a classe média, defensora intransigente da meritocracia, é a perspectiva de conviver com a diferença, por um lado; e de ser penalizada em suas demandas e investimentos na educação dos filhos, por outro. A classe média que pagou para o filho estudar numa escola cara se sente traída. Não adianta falar em justiça social e democratização: ele não vê a justiça além de seu ninho. O fato de a inversão típica do sistema educacional (educação básica de qualidade na mão de particulares, educação superior de qualidade nas universidades públicas) ser caudatária de uma trajetória de injustiças não sensibiliza a classe média. “Por que justamente agora, na minha vez?”, parecem se perguntar estudantes das escolas particulares.

Outra crítica renitente é a que apela a fraudes que porventura possam se infiltrar com a instituição das cotas. São argumentos que apelam sempre para a exceção, para a mentira e para a esperteza, ou seja, para tudo que não significa educação. Seria o mesmo que acusar a meritocracia de fraudulenta porque há alunos que colam e compram provas. Não é o fato de um branco se autodeclarar negro que invalida o sistema. O grave é viver numa sociedade onde essa distinção serviu para alijar parte significativa da sociedade da fruição da riqueza social.

Por fim, o fato de se tratar de uma política com prazo de validade apela para a boa vontade de uma geração em se esforçar para criar um solo de justiça entre todos os brasileiros. A lei das cotas é um elemento de equidade: trata diferentemente os diferentes, tendo no horizonte uma ideia superior de igualdade.

A lei das cotas, agora única para todas as universidades públicas do país, vai aproximar a universidade do estudante brasileiro. O que é excelente. A consequência mais importante, além da inclusão de parte dos alunos fadados a permanecer na periferia social, é o refluxo na valorização da educação como elemento por excelência de cidadania. Enquanto parte da classe média enxergar no jovem de escola pública um inimigo, as cotas serão necessárias. Não se trata de entrar na universidade, mas de fazer parte da humanidade.

http://impresso.em.com.br/app/noticia/toda-semana/pensar/2012/09/01/interna_pensar,48884/o-merito-e-o-preconceito.shtml.

Enviada por José Carlos para Combate ao Racismo Ambiental.

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