O governo federal acaba de anunciar os investimentos para a agricultura no período 2012/2013. O chamado Plano Safra contará dessa vez com R$ 115,2 bilhões. O problema é que todo esse dinheiro não vai para os pequenos agricultores e nem para a produção de alimentos saudáveis. A realidade é denunciada por Cleber Folgado, coordenador nacional da Campanha Permanente Contra os Agrotóxicos e Pela Vida. Segundo ele, os pequenos agricultores têm ficado com apenas aproximadamente 14% de todo o crédito agrícola, embora sejam os responsáveis por levar quase a totalidade do alimento à mesa do brasileiro. Folgado pertence a uma família de pequenos agricultores no estado de Rondônia, onde cresceu vendo as contradições trazidas pela chamada Revolução Verde, que introduziu a utilização de agrotóxicos no campo pelas mãos do Estado brasileiro. Nesta entrevista, ele faz um balanço da Campanha e fala sobre os desafios da luta por um modelo agroecológico para o campo.
A Campanha permanente contra os agrotóxicos e pela vida reúne hoje mais de 50 entidades. Como foi formada essa convergência em torno do tema?
O debate dos agrotóxicos não é uma novidade dentro dos movimentos sociais e em especial dos movimentos do campo. Desde que existe veneno, existe resistência. Eu tenho 12 anos de militância e me lembro que nas primeiras reuniões do MPA [Movimento dos Pequenos Agricultores] que eu fui já se discutia a problemática dos agrotóxicos. Então, é um tema muito forte dentro das organizações, mas que no último período se intensificou em função das contradições colocadas.
Aquela história das intoxicações agudas, que a gente sempre via, são mais perceptíveis, trazia o debate sobre os agrotóxicos, mas não tão fortemente como agora, depois de tantos anos de uso. Agora é que têm se manifestado as intoxicações crônicas, e que trazem um problema de saúde pública muito mais forte, um impacto muito maior, e nesse contexto é que as organizações começaram a priorizar o debate em torno da problemática dos agrotóxicos. O MPA fez um encontro nacional em abril de 2010 que decidiu construir uma campanha contra os agrotóxicos internamente, mas aí o movimento propôs para o conjunto da Via Campesina, que não só aceitou a proposta como ampliou: ‘olha, isso aqui não pode ficar só na nossa mão, como é um problema de saúde pública, precisamos ampliar para todo o conjunto da sociedade’.
Então, foi realizado o seminário para construir a campanha ainda em 2010. Conseguimos juntar ambientalistas, estudantes, movimentos sociais do campo e da cidade, entidades ligadas ao próprio governo – como a Fiocruz, o Inca [Instituto Nacional de Câncer], a Anvisa -, que foram para o seminário e levaram dados e informações relacionadas à problemática. Nesse seminário começamos a definir que de fato era necessário construir uma campanha mais ampla, que pudesse juntar esse conjunto de organizações urbanas e rurais. Ali se definiu uma coordenação prévia e uma data para lançamento.
A campanha foi lançada no dia mundial da saúde…
Sim, lançamos a campanha no dia 7 de abril de 2011 e tínhamos essa perspectiva de trazer para o debate dois elementos centrais: garantir o processo de denúncia da problemática dos agrotóxicos em todos os sentidos, do ponto de vista da saúde, do ponto de vista ambiental, econômico, e além disso trazer também a reflexão de propostas concretas para podermos sair desse problema, trazer informações, tentar visibilizar o que já existe. Nesse sentido, foi se construindo como proposta alternativa uma agricultura com base na agroecologia.
Qual o balanço após mais de um ano de campanha?
O balanço é muito positivo, eu diria que depois do plebiscito contra a ALCA, a Campanha Permanente Contra os Agrotóxicos e Pela Vida tem sido o espaço de maior articulação das organizações urbanas e camponesas e inclusive entidades ligadas ao governo. Hoje nós temos organizações importantes que compõem a Campanha, por exemplo, as principais organizações camponesas: o MST [Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra], o MAB [Movimento dos Atingidos por Barragens], o MPA, o Movimento de Mulheres Camponesas, a Contag [Confederação Nacional dos Trabalhadores da Agricultura], pastorais como a CPT [Comisão Pastoral da Terra] e a PJR [Pastoral da Juventude Rural], Movimentos estudantis como a ABEEF [Associação Brasileira dos Estudantes de Engenharia Florestal], FEAB [Federação dos Estudantes de Agronomia do Brasil] e a ENEBIO [Entidade Nacional de Estudantes de Biologia].
Por outro lado, há a Abrasco [Associação Brasileira de Saúde Coletiva], que é uma organização que tem legitimidade do ponto de vista científico, tem esse reconhecimento da sociedade muito importante e que também se engajou fortemente dentro da campanha, e a Fiocruz, que desde o início faz parte da campanha e tem sido um apoio importante nessa construção. Do ponto de vista político foi um acerto porque conseguimos pautar na sociedade o tema.
Se formos observar o que tem sido colocado na mídia de informações relacionadas a agrotóxicos, em especial nos últimos sete meses, essa cobertura tem se intensificado muito, o que não acontecia anteriormente. Nós conseguimos também pautar o próprio governo, existem várias iniciativas para dentro do governo que são frutos da campanha. Por exemplo, nós ficamos debatendo com o governo e pedindo a construção de uma política de controle desse uso abusivo e também que era necessário banir alguns agrotóxicos. Exigimos a construção de um grupo de trabalho interministerial para tratar do tema, e a Dilma acatou, para construir um plano nacional de enfrentamento ao uso de agrotóxicos e seus impactos na saúde e no ambiente. Falta dar um canetaço nisso ainda, mas já fizeram uma primeira reunião.
Além disso, conseguimos construir uma subcomissão dentro da Comissão de Seguridade Social e Família da Câmara dos Deputados, que elaborou um relatório muito bom trazendo o problema, as soluções, abordando os aspectos legais e as brechas que temos nesse campo, e que inclusive está servindo como base para vários projetos de lei que têm sido apresentados. E o que eu pontuaria como maior conquista nossa é essa capacidade de articulação política entre as organizações, conseguimos construir três bandeiras que são unitárias da Campanha.
A primeira delas é o banimento dos agrotóxicos que já foram banidos em outros países. Temos uma lista de ingredientes ativos que já foram banidos em outros países e que as empresas lá sediadas continuam produzindo e comercializando em nosso país. É um absurdo, o Brasil está se tornando uma lixeira tóxica e essa bandeira construiu unidade entre as diversas forças e organizações que constroem a campanha. A segunda é o fim da pulverização aérea, que apesar de ser a única forma de pulverização que tem uma legislação específica para aplicação, é a mais insegura porque 70% da aplicação de agrotóxicos é deriva, ou seja, 20% vai para o ar, 50% para a terra, e apenas 30% para o destino mesmo do agrotóxico. É uma forma de aplicação extremamente atrasada, amplia os impactos negativos dos agrotóxicos. E uma terceira bandeira é o fim das isenções. As empresas têm vários subsídios, de isenções tributárias e fiscais. Existe o convênio 100/97, por exemplo, que é firmado entre o Ministério da Fazenda e as Secretarias de Fazenda dos estados, e por meio desse instrumento as empresas estão isentas de 60% de ICMS [Imposto sobre Circulação de Mercadorias e Serviços], podendo chegar a 100%.
Alguns estados já fizeram isso, como o Ceará, onde a isenção é de 100%. Então, as empresas vem para cá, causando impactos no meio ambiente, na saúde, na economia, porque foram mais de R$ 8 bilhões de faturamento no ano passado e essa grana não fica aqui, e quem acaba arcando e pagando pelos problemas sociais causados por isso é o governo. Ou seja, a sociedade acaba pagando duas vezes, paga com o preço da sua saúde e do ambiente que está sendo contaminado e acaba pagando para a recuperação disso.
O SUS é um exemplo de como a sociedade paga pelo problema. Acreditamos que precisa ter imposto sim e apoiamos que esse imposto seja revertido para o SUS, para podermos utilizá-lo na recuperação dos problemas que são causados em função da utilização de agrotóxicos. Então, conseguimos pautar o governo, colocar o tema na sociedade e pautar a mídia.
De fato houve um aumento considerável do volume de informações sobre o tema na imprensa comercial, inclusive com um ‘Globo Repórter’ dedicado aos impactos dos agrotóxicos. Como vocês avaliaram esses materiais?
Sabemos que muitos dos grandes veículos de comunicação em nível nacional estão a serviço de um projeto e que esse projeto é o do agronegócio, que tem um vínculo, uma necessidade e uma relação direta com os agrotóxicos. Mas mesmo esses grandes veículos têm pautado e colocado o debate dos agrotóxicos, têm trazido informações, às vezes falsas, outras vezes informações que são coerentes com o debate. Mas a questão é que não conseguiram mais esconder que é um problema e têm trazido isso para o conjunto da sociedade.
Como essa campanha se articula com a bandeira pela reforma agrária?
Tem um vínculo muito direto. Os agrotóxicos na realidade são restos de armas químicas que, com o fim da Segunda Guerra Mundial, foram adaptadas para a agricultura naquela época com a desculpa de acabar com a fome no mundo. Isso ganhou o nome bonito de Revolução Verde com a promessa de diminuir o esforço do trabalho manual na agricultura a partir da utilização de tecnologias e ao mesmo tempo garantir aumento da produtividade. Esse era o grande argumento utilizado naquela época, mas com o passar dos anos, esses dois elementos acabaram não sendo tão verdadeiros assim, apesar de que foi implementada tecnologia no campo, mas não resolveu o problema da fome e nem o esforço do trabalho no campo, que continua sendo pesado.
No último período, a Revolução Verde passa por um processo de transformação e recebe o nome de agronegócio. O agronegócio na prática é a aliança entre o capital financeiro transnacional, representado pelos bancos, as transnacionais Bunge, Bayer, Monsanto, Dow [Chemical], entre outras, essas grandes empresas que atuam no campo da produção de sementes, agrotóxicos, medicamentos, e os grandes proprietários de terras. Então, o agronegócio é uma aliança desses três setores e com uma parceria dos meios de comunicação, que por sua vez assumem o papel de trabalhar ideologicamente esses elementos dizendo para a sociedade que esse é o único modelo possível e que é extremamente viável.
Os agrotóxicos são pilares fundamentais da produção do agronegócio; sem agrotóxicos o agronegócio não consegue produzir, porque é uma produção baseada na monocultura, que, por si só, já causa um desequilíbrio ambiental, faz com que aumente a população de alguns insetos e aí o agronegócio precisa de veneno para matar essas populações. Além disso, esse modelo se baseia na utilização de maquinários pesados, para produção em larga escala, voltada para exportação. Então, para garantir essa lógica de produção, precisam produzir muito, em grandes quantidades, grandes extensões de terra e, para garantir o controle, isso só pode ser feito com utilização de agrotóxicos. Agrava a situação o fato de que no último período a estrutura do modelo capitalista está sofrendo uma crise, e para resolver essa crise o que os grandes capitalistas do mundo têm feito? Intensificado um processo de superexploração dos bens da natureza, realizando a apropriação privada das riquezas naturais dos países, da água, de todo o conjunto da biodiversidade, madeira, terra, território, minérios, enfim, se apropriando disso para poder garantir a reversão em mercadorias e conseguir manter as suas taxas de lucro.
E como responder a esse discurso de que o agronegócio é o mais produtivo? Porque essa é uma ideia bastante presente no senso comum.
Isso é uma mentira, inclusive do ponto de vista econômico o agronegócio é dependente. O PIB do agronegócio gira em torno de R$ 150 bilhões, sendo que desse valor R$ 130 bilhões são adquiridos na forma de créditos e outros investimentos. Isso demonstra a dependência do agronegócio em relação ao Estado. A pequena agricultura, por outro lado, pega muito menos recursos e consegue produzir muito mais, inclusive do ponto de vista econômico. Temos cerca de 4,2 milhões de famílias camponesas no Brasil, que pegam 14% do crédito, ocupam 24% das terras, porém produzem 70% da comida que chega até a mesa dos brasileiros, além de serem responsáveis por um terço das exportações agropecuárias. Isso demonstra o processo de conflito direto entre as empresas representantes do agronegócio e as famílias camponesas; trata-se da luta de classes no campo.
Apesar de os impactos pela utilização de agrotóxicos por parte do agronegócio serem muito maiores, ainda há agricultores familiares que também fazem uso desses venenos, por que isso acontece?
É importante entender porque os camponeses ainda utilizam agrotóxicos. Se olharmos as décadas de 60 e 70, vamos perceber que o Estado brasileiro construiu um processo de imposição do pacote tecnológico da Revolução Verde. Para terem acesso ao crédito, os camponeses eram obrigados a comprar os venenos, se não, não teriam dinheiro para poder investir na produção. E agrotóxico constrói um ciclo vicioso: os agrotóxicos são biocidas, então vão acabar com a vida que está ali.
Se você passa veneno para matar um tipo de planta, de imediato você causa um desequilíbrio ambiental e à medida que você vai causando desequilíbrio ambiental, aumenta a necessidade de veneno para controlar outras ditas pragas que vão aparecendo. Ao mesmo tempo, a terra que é viva vai morrendo, então aumenta também a necessidade de fertilizantes químicos – que por sua vez não alimentam a terra e sim as plantas. Isso vai criando uma dependência e sair desse processo não é simples.
Por exemplo, eu sou de uma família de pequenos agricultores que não utilizava veneno e me lembro que, na minha infância, eu ia com o meu pai na reunião da Emater [Associação de Assistência Técnica e Extensão Rural], que ensinava como usar o veneno, dizendo que aumentaria a produção e diminuiria o esforço. A promessa era essa: ‘imagina, uma área que você teria que carpir o dia inteirinho, agora em 20 minutos você passa o veneno e está resolvido’. Essa ideia de diminuição do esforço no campo e aumento da produtividade seduziu e, casada com o processo de imposição pelo governo, criou no campesinato brasileiro esse ciclo vicioso de utilização de agrotóxicos. No entanto, é preciso lembrar que quem mais utiliza agrotóxicos no Brasil são os grandes latifundiários.
O último Censo Agropecuário do IBGE aponta que, das pequenas propriedades, cerca de 30% delas declararam que utilizam agrotóxicos e, das grandes propriedades, 80% declaram o mesmo. Só a soja é responsável por 51% dos agrotóxicos aplicados no país, e quem mais produz soja é o agronegócio voltado para a exportação. O impacto causado pela utilização de veneno pelo agronegócio é muito mais degradante, muito maior do que a utilização pelos pequenos agricultores. Mas aí alguém pode dizer: ‘mas não é tudo veneno?’ É, mas vamos usar um exemplo claro: hoje, o agronegócio pulveriza de avião, e como eu já falei, apenas 30% do veneno atinge o objetivo destinado, o restante vai por quilômetros e quilômetros.
O pequeno agricultor passa no máximo de tratorzinho, em geral o que mais tem são as bombas costais, que causam problemas enormes para a sua saúde e da sua família. Como é caro fazer as pulverizações aéreas, as grandes fazendas têm criado os chamados coquetéis, para fazerem apenas uma pulverização e jogarem vários venenos de uma única vez. Criaram uma coisa nova e por isso a Anvisa acaba não conseguindo ter noção dos impactos: quando libera o registro de um agrotóxico ele é destinado para uma determinada cultura, deve ser pulverizado em determinada planta ou inseto, em uma determinada quantidade.
Quando se faz os coquetéis, se coloca um agrotóxico que é para ser herbicida, outro que é inseticida e cria algo totalmente novo, do qual somos incapazes de estimar os problemas e impactos dessas misturas. Tenho feito vários giros pelo Brasil afora e temos visto isso. Então, sem sombra de dúvida, os impactos causados pelo agronegócio são muito maiores do que as formas de produção camponesas.
Como tem avançado a transição de uma agricultura que utiliza agrotóxicos para a agroecologia?
Há muitas experiências de superação desse modelo em todo o país. O debate da agroecologia conseguiu ganhar um espaço na sociedade nos últimos 30 anos. Alguns camponeses fazem por ideologia, mas outros têm feito o processo de conversão por necessidade. Adoeceu uma pessoa na família, se intoxicou com agrotóxicos, não pode nem sentir o cheiro, e por conta disso precisaram retomar formas antigas de produção. A agroecologia é nada mais nada menos do que retomar esse conhecimento empírico produzido ao longo da história da agricultura dos camponeses, associando a técnicas inovadoras do último período, casando o conhecimento empírico com o conhecimento científico e potencializando o processo produtivo.
Temos conseguido ganhar espaço inclusive dentro do governo [federal], tanto é que o governo agora está prestes a lançar a Política Nacional de Agroecologia e Produção Orgânica, numa construção até com grande participação da sociedade civil e dos movimentos organizados. Claro que é uma política que na nossa avaliação ainda é muito frágil, tendo em vista o potencial produtivo que o Brasil tem de produção de alimentos saudáveis, pois as experiências que a gente tem já provam em quantidade e qualidade que a agroecologia é viável. Essa é uma frase que inclusive está no relatório da ONU para o direito humano à alimentação, o relator Olivier de Schutter coloca exatamente isso.
O relatório foi lançado em dezembro de 2010 e apresenta várias experiências da agroecologia, com a reflexão central de que essa prática é capaz de produzir em quantidade e qualidade para alimentar o mundo. Então, esse discurso furado que muita gente faz de que a agroecologia é aquela coisa feita em vasos, aquela coisinha romântica – alguns até romantizam – mas a agroecologia não é isso.
As experiências que temos apontado são no sentido de mudar o modelo de produção adotado hoje porque vamos ter de pensar numa produção voltada para a pequena agricultura, porque é impossível pensar a agroecologia em larga escala, tem que ser em pequena escala para atender os mercados locais em potencial, tem que haver uma mudança da matriz tecnológica adaptando a essa pequena produção.
Além disso, mudar também a matriz de consumo no conjunto da sociedade: a população precisa exigir alimentos saudáveis e a agroecologia já está dando conta de suprir grande parte dessa demanda, mas assim como nas décadas de 60 e 70, quando o Estado construiu condições para imposição dos venenos, hoje ele tem a obrigação de dar condições para que esses camponeses e camponesas possam entrar num processo de transição para a agroecologia, e assim conseguir fazer um planejamento de curto, médio e longo prazos para a produção brasileira. O Brasil tem, de fato, o potencial de ser o maior produtor de alimentos do mundo, mas não queremos ser produtores de qualquer alimento, queremos ser os maiores produtores de alimentos saudáveis para a população.
Outra dificuldade para o cultivo agroecológico é o desenvolvimento e preservação das sementes pelos próprios agricultores. Há iniciativas de bancos de sementes crioulas, mas ao mesmo tempo uma expansão cada vez maior do mercado de sementes patenteadas e também sementes transgênicas. Como a Campanha tem entrado neste tema?
Sobre esse tema temos trazido uma reflexão no campo da soberania. O Victor Pelaez, professor da Universidade Federal do Paraná, junto com a Anvisa, fez recentemente um estudo importante sobre o mercado de agrotóxicos, que mostra que algumas empresas estão deslocando os seus investimentos dos venenos para as sementes, porque eles sabem que, controlando as sementes, acaba-se controlando o processo produtivo, uma vez que o agricultor precisa da semente para plantar.
Por outro lado, o que temos de legislação hoje no Brasil relacionado a sementes, sementes crioulas e o reconhecimento disto é uma legislação muito falha. Temos dificuldades também na comercialização, então há muitos problemas para os camponeses que estão produzindo as suas sementes. Mas nós temos trazido a reflexão sobre a importância e o significado de que as sementes estejam sob o controle popular, porque se ela cai no controle das empresas, a gente perde soberania. Ter o controle de sementes, para eles, é ganhar poder.
No último período as empresas têm avançado também na produção de sementes transgênicas, então, com esses organismos geneticamente modificados se ganha com patente e com o controle do espaço territorial de produção, porque acaba que a empresa é que vai determinar se vai plantar ou não vai plantar – já que está sob o controle dela liberar ou não a semente.
O debate da semente é extremamente estratégico, não é secundário, e temos reforçado isso dentro da Campanha. A gente tem dito que a Campanha traz uma reflexão sobre a soberania em diversos aspectos. Um é o da soberania ambiental – porque hoje os olhos do mundo estão voltados em especial para a Amazônia, esse grande espaço de biodiversidade sobre o qual existe um interesse de apropriação do capital.
Outro é a soberania alimentar, que é diferente de segurança alimentar porque este segundo conceito é usado pela a ONU para designar a quantidade de alimento para saciar a fome. Nós estamos falando que não pode ser alimento a qualquer custo, é preciso levar em consideração as condições de vida daqueles que produzem e consomem e a qualidade do alimento em harmonia com o meio ambiente. Então, a soberania alimentar traz a discussão sobre como estes alimentos estão sendo produzidos.
E a terceira é a soberania genética, inclusive no último período existe uma construção para transformar a Embrapa em Embrapa S/A, ou seja, um processo de privatização da empresa, que é pública. Se esse processo continuar, as multinacionais é que vão acabar dominando a Embrapa, que tem o maior banco de germoplasma do mundo, um patrimônio genético extremamente importante e que a gente corre o risco de as empresas botarem a mão. E se botarem a mão sabemos que é para avançar nas pesquisas, transformar em patentes, depois em mercadoria e continuar mantendo as suas taxas de lucro. Temos levantado essa bola dentro da Campanha de que precisamos de uma Embrapa 100% pública, sob controle dos trabalhadores e voltada para a pesquisa pública que atenda a pequena agricultura.
No ano passado foram R$ 170 milhões utilizados pela Embrapa em pesquisas e, desse montante, apenas 4% foi usado para a pequena agricultura. São recursos públicos de uma empresa pública trabalhando para interesses privados, e essa discussão tem uma relação direta com a soberania nacional.
Há uma série de outras lutas também protagonizadas por camponeses e povos tradicionais na defesa da soberania sobre os territórios, como a resistência à Usina Hidrelétrica de Belo Monte e também outras batalhas a nível nacional como a recente oposição às modificações propostas ao Código Florestal. A Cúpula dos Povos pretendeu ser também um espaço de confluência dessas lutas. Como a campanha se articula com essas outras bandeiras?
A Campanha entra no debate sobre o modelo de sociedade e o modelo de produção a partir dos agrotóxicos, mas não fica nisso. Onde conseguimos convergir com o conjunto de lutas? Entrando pela porta da problemática causada pelos agrotóxicos, acabamos discutindo o problema colocado para toda a sociedade – que é o modelo de sociedade capitalista que a gente vive e a forma de produzir no campo em nível mundial, que também é essa forma capitalista de produção, sob domínio e controle das empresas transnacionais. Dessa forma, acabamos conseguindo manter um diálogo com esse conjunto de atores sociais que está fazendo luta pelo mundo afora. Belo Monte, por exemplo, e todas essas grandes obras estão sendo feitas para atender interesses das empresas.
No caso de Belo Monte, há um interesse privado de apropriação da água. O Brasil é um dos países que mais exporta água no mundo, mas como exportamos água? Levamos para fora em garrafinhas? Não, as empresas vêm para cá para trabalharem em atividades que necessitam muita água para produção. Ao invés de produzirem em seus países de origem, que em geral não têm muita água, vem para cá, produzem aqui, utilizam água e depois exportam a fruta, o eucalipto, a carne, vários outros produtos. Então é uma forma de exportação de água que vai de forma secundarizada.
As grandes obras têm relação com esse papel que o Estado brasileiro acaba cumprindo de dar condições para que o modelo de sociedade capitalista siga se desenvolvendo, siga se apropriando daquilo que é de interesse público. Queremos dialogar com o povo, temos de debater a partir dos problemas reais, das contradições e ir elevando o nível de consciência da sociedade. Não são poucas pessoas que vão fazer as transformações, são as grandes massas.
Hoje, o agrotóxico é um problema de saúde pública que a sociedade está sentindo, e este problema acaba apontando para discutir também o modelo de sociedade e de produção. Precisamos avançar para construir processos de luta mais contínuos e orquestrados em nível internacional: assim como o capital não tem pátria, a luta dos povos também não pode ter pátria. Temos de fazer uma luta global, internacional, casando processos de luta, para que a gente possa parar a Dow lá na Europa e ter impacto aqui no Brasil.
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