“Convenção 169 da OIT: para existir Direito de Consulta é necessário existirem ainda populações a serem consultadas”

Tania Pacheco

O título acima é o de uma palestra que fiz em Salvador, durante a realização do I Congresso Internacional de Direito dos Povos e Comunidades Tradicionais, realizado em maio último, na UFBA. Acho que, muito mais que há dois meses, ele parece ser inteiramente pertinente aos dias atuais, quando a portaria da AGU veio se juntar à PEC 215 e a outros projetos no Congresso: ao iminente julgamento da ADI 3239 pelo STF; às ações da Marinha contra o Quilombo do Rio dos Macacos; aos Belo Monte, Porto do Açu, COMPERJ, Pecém etc.

Fala-se muito da Convenção 169 da OIT sem considerar que ela foi ratificada pelo Brasil em junho de 2002. Que, segundo o Supremo Tribunal Federal, ao ser ratificada ela passou a ter plena validade jurídica, situando-se entre uma lei comum e a própria Constituição, em termos de “poder”. Que, embora ela seja autoaplicável,o governo instalou em janeiro deste ano um grupo de trabalho com 22 ministérios para “finalmente regulamentá-la”.

Em abril, durante o seminário “Mudanças Climáticas, Meio Ambiente e Povos Indígenas: o direito à consulta prévia”, em Belém,  o Procurador Felício Pontes, do MPF no Pará, foi claro a esse respeito, aliás, ao dizer que a proposta do governo federal de regulamentar a 169 poderia vir a ser uma ameaça  às comunidades: “Há o risco de que haja uma restrição ao direito dos povos tradicionais e indígenas durante o processo de regulamentação e é preciso que a sociedade esteja atenta” (Terra Magazine, 26.04.2012).

De acordo com a reportagem, Felício Pontes citou o caso de algumas comunidades indígenas, sobretudo as de língua Tupi, que não têm o mesmo sistema de representação política que os povos de língua Gê ou as comunidades quilombolas. As formas de representação e de hierarquia desses grupos são diversificadas, e tentar estabelecer uma regra comum a todos seria um equívoco que colocaria em risco o princípio fundamental da Convenção 169.

Segundo ele, para que não haja “restrição de direitos”, as regras estabelecidas devem ser “amplas, flexíveis e sensíveis”, para que “as diferentes culturas tenham garantidas suas formas de expressão”. E reafirmou que o processo de regulamentação “não é essencial”, “uma vez que o Brasil é signatário da OIT, e que a Convenção 169 é autoaplicável”.

A pergunta óbvia é: por que, após dez anos sem de fato respeitar a Convenção – e Belo Monte é um verdadeiro atentado contra os direitos dos Povos Indígenas a serem informados e consultados – o Governo resolve gastar o tempo de representantes de 22 ministérios para “regulamentar” algo que é autoaplicável, como outros países da própria América Latina demonstraram muito bem?

Aparentemente, Felício Pontes estava sendo otimista em  suas inquietações. A “AGU 303” – que contraria radicalmente a Convenção 169 e a própria Constituição, inclusive no que toca a validar a 169 enquanto tratado internacional do qual o Brasil é signatário – talvez seja o resultado “ao contrário” da tal regulamentação. Pois é impossível acreditar que tantos atentados aos direitos dos Povos Indígenas (sem contar a manipulação e o desrespeito ao Supremo Tribunal Federal) estejam contidos numa só portaria.

Ante tal “AI-5 dos Povos Indígenas“, como a chamamos, ou “excrescência jurídica”, no dizer do CIMI, para que a sociedade brasileira possa continuar a acreditar no respeito do Governo Federal aos tratados internacionais que assina só há uma possibilidade: que a AGU 303 seja sumariamente anulada, e que o responsável pela sua divulgação seja também sumariamente demitido. Ou devemos crer que a Presidente Dilma Rousseff é leitora assídua de revistas e páginas de Opinião de certos jornais que afirmam que não há indígenas no Brasil?

Em tempo: para quem não conhece a Convenção 169 ou deseja tirar dúvidas a respeito, ela está disponível nesta página do site da OIT, disponível inclusive para ser baixada.

Deixe um comentário

O comentário deve ter seu nome e sobrenome. O e-mail é necessário, mas não será publicado.