Luiz Silva Cuti
O autor do Poema Sujo, no qual compara um urubu a um negro de fraque, deve estar estranhando (estranheza é a palavra que ele emprega) que o negro não é uma simples ideia desprezível, mas um imenso número de pessoas, cuja maior parte, hoje, não come carniça, e que aqueles ainda submetidos à miséria mais miserável jamais quiseram fazer o trabalho daquela ave, e que se a “a vasta maioria dos escravos nem se quer aprendia a ler”, como diz ele, não é porque não queria. Era proibida. Há vários dispositivos legais e normas que comprovam isso. Havia uma vontade contrária. Há e sempre houve um querer coletivo negro de revolta contra a opressão racista.
Quanto a existir ou não literatura negro-brasileira, deixemos de hipocrisia. No mundo da cultura só existe o que uma vontade coletiva, ou mesmo individual, diz que sim e consegue vencer aqueles que dizem não. Foi assim com a própria literatura brasileira e os tantos ismos que por aqui deixaram seus rastros. Características, traços estilísticos, vocabulário etc, que demarcam a possibilidade de se rotular um corpus literário, no tocante à produção literária negra, já vem sendo estudados. Basta lembrar três antologias de ensaios: Poéticas afro-brasileiras, de 2002, com 259 páginas; A mente afro-brasileira (em três idiomas), de 2007, com 577 páginas; Um tigre na floresta dos signos, de 2010, com 748 páginas, além de outras reuniões de textos, estudos, dissertações e teses. Por outro lado, se Cruz e Sousa e Machado de Assis, como argumenta Gullar “foram herdeiros de tendências literárias européias”, e, portanto, “não se pode afirmar que faziam literatura negra”, o que dizer de Lépold Senghor e Aimé Césaire, principais criadores do Movimento da Negritude, embora herdeiros da tradição literária francesa? A literatura não é só resultado de si mesma. Só uma perspectiva genética tacanha desconheceria outras influências do texto literário, tais como a experiência existencial do autor, sua formação política e ideológica, o contexto social, entre tantas mais. Nenhum escritor é obrigado a reproduzir suas influências.
A maneira como o tal poeta cita o samba, a dança, o carnaval, o futebol é aquela que simplesmente aponta o “lugar do negro” que o branco racista determinou, um lugar que serviu de “contribuição” para que os brancos ganhassem dinheiro, não só produzindo sua arte a partir do aprendizado com os negros, mas também explorando compositores diretamente e calando-os na sua autoafirmação étnica. Basta inventariar quantos grandes compositores negros morreram na miséria. A essa realidade o poeta chama de: “nossa civilização mestiça”. Mas, pelo visto, a literatura, sendo a menina dos olhos da cultura, deve ser defendida da invasão dos negros. O escritor e crítico Afrânio Peixoto, lá no passado, deixou a expressão bombástica sobre a literatura ser “o sorriso da sociedade”. Gullar não pensa isso, com certeza, mas em seus pobres argumentos está a ruminar que a literatura não pode ser negra. Talvez sinta que a negrura pode sujá-la, postura bem ainda dentro do diapasão modernista que abordou o negro pelo viés da folclorização.
A esquerda caolha e daltônica brasileira sempre se negou a encarar o racismo existente em nosso país. Por isso andou e anda de braços e abraços com a direita mais reacionária quando se trata de enfrentar o assunto. Para ela, a mesma ilusão dos eugenistas, tipo Monteiro Lobato, se apresenta como verdade: o negro vai (e deve) desaparecer no processo de miscigenação. Para alguns cristinhos ressuscitados dos porões da ditadura militar e seus seguidores sobreviveria e sobreviverá apenas o operariado branco. Concebem isso completamente esquecidos de que a cor da pele e traços fenotípicos estão inseridos do mundo simbólico, o mundo da cultura. No seu inconsciente, o embranquecimento era líquido e certo, solução de um “problema”. Hoje, é provável que os menos estúpidos já tenham se deparado com as estatísticas e ficado perplexos. Gullar, pelos seus argumentos, se coloca como um representante da encarquilhada maneira de encarar o Brasil sem a participação crítica do negro. E, como é de praxe, entre os encastelados no cânone literário brasileiro, incluindo os críticos, não ler e não gostar é a regra. Em se tratando de produção do povo negro, empinam e entortam ainda mais o nariz. Devem se sentir humilhados só de pensar em ler o que um negro brasileiro escreveu e, no fundo, um terrível medo de verem denunciado o seu analfabetismo relativo a um grave problema nacional: o racismo, ou serem levados a cuspir no túmulo de seus avós.
Gullar diz ser “tolice ou má-fé” se pensar um grande público afrodescendente como respaldo da produção literária negra. Será que ele algum dia teve em seu horizonte de expectativa o leitor negro? Certamente não, como a maioria dos escritores brancos. Isso, sim, é tolice, má-fé e, cá entre nós, uma sutil forma de genocídio cultural, próxima daquela obsessão de se matar personagens negros. E não adianta nesse quesito invocar um parente mulato como, em outros termos, fez o imbecil parlamentar racista Bulsonaro.
Antonio Cândido, em entrevista publicada na revista Ethnos Brasil, em março de 2002, com o título “Racismo: crime ontológico”, fazendo sua autocrítica relativa à sua omissão, por muito tempo, do debate sobre a questão racial, argumenta que o “nó do problema” estaria “no aspecto ontológico”, e prosseguindo: “está no drama, para o negro, de ter de aceitar uma outra identidade, renegando a sua para ser incorporado ao grupo branco.” Façamos um acréscimo ao que disse o consagrado mestre. A questão racial é um problema ontológico no Brasil porque diz respeito também ao ser branco, pois o debate sobre o problema enfrenta a ilusão da superioridade congênita do branco, que o racismo insiste em manter cristalizada na produção intelectual brasileira. Ele, o branco, tem o drama de ser forçado a aceitar uma outra identidade que não aquela de superioridade congênita que o racismo lhe assegurou, de ser obrigado pelo debate a experimentar a perda da empáfia da branquitude, descer do salto alto. Aliás, o sociólogo Guerreiro Ramos nos legou um ensaio elucidativo do assunto, intitulado “A patologia social do branco brasileiro”.
A produção intelectual não é tão somente uma exclusividade de brancos racistas, apesar de certa hegemonia ainda presente. Além de brancos conscientes da história do país, negros escrevem, publicam livros e falam não só de si, mas também dos brancos, dos mestiços e de todos os demais brasileiros. Quem não leu e não gostou dessa produção, em especial a do campo literário, já não está fazendo tanta diferença. A crítica binária, baseada no Bem X Mal, está enfraquecida. Um dos propósitos de seus defensores quando pensam negros escrevendo é o de tirar o entusiasmo dos filhos e dos netos daqueles que por muitos séculos lhes serviram a mesa e lhes limparam o chão e mesmo daqueles que ainda o fazem. A vontade coletiva negra está em expansão e não é só no campo literário. Assim, quando o poeta Ferreira Gullar diz que falar em literatura negra não tem cabimento, é de ser fazer a célebre pergunta: “Não tem cabimento para quem, cara-pálida?” A sua descrença no que chama de “descriminação” na literatura, crendo que ela não “vá muito longe” e gera “confusão” é o simples reflexo da baixa expectativa de êxito que a maioria dos brancos tem em relação aos negros, resultado dos preconceitos inconfessáveis, passados de geração para geração, para minar qualquer ímpeto de autodeterminação da população negra.
Para Aristóteles havia os gregos e o resto (os bárbaros). O branco brasileiro precisa superar este complexo helênico de pensar que no Brasil há os brancos e o resto (mestiços e negros). Tal postura é uma das responsáveis pelo descompasso da classe dirigente em face da real população. Certamente, essa é a razão de Lima Barreto, o maior crítico do bovarismo brasileiro, ainda ser muito pouco ensinado em nossas escolas. O daltonismo de Ferreira Gullar, advindo de um tempo de utopia socialista, hoje é pura cegueira. Traços físicos que caracterizam historicamente os negros não são só traços físicos, como quer o articulista, mas representações simbólicas, por isso perfeitamente suscetíveis de gerar literatura com especificidades. Se o poeta não concebe negros possuidores de consciência crítica no país e as históricas particularidades de sua gente, devia fazer a sua autocrítica e não insistir na cegueira.
Negros ou urubus? Ferreira Gullar defende que a intelectualidade é exclusividade branca
Na verdade os dados oficiais brasileiros ainda comprovam uma grandiosa diferença em relação as diversas areas de trabalho e outros em numeros entre brancos e negros, os meios de comunicação, tv também reforçam o preconceito . Comecemos a observar nossas atitudes e veremos que de fato não vivemos em um país com oportunidade e com a mesma qualidade para todos. De fato em nosso Brasil nunca houve democracia racial pois se assim vosse estariamos hoje com negros que em muitos estados são a maioria em condições de ascensão como as outras etnias. E porque chamar de literatura negra? podemos começar a refletir a partir dai…
Isso é absurdo. O texto do Ferreira não fala nada disso. Esse Luiz Cuti está mentindo. Ele argumenta que a cultura negra é a raiz mais forte da cultura brasileira. Ele não fala nada que seja racismo. Sua hipótese, no entanto, é de que os escritores brasileiros que eram negros não faziam literatura “negra” e sim européia. Está com toda a razão. A influencia de nossa literatura está no modernismo europeu, não nos escravos que vieram da África. Não é racismo falar isso
Otimo, texto.
Sugiro que possam tod@s guardar para uso nos processo de formação nas bases, pois isso pode também nos tirar de outras cegueiras.
Diosmar Filho