A crise destila o seu veneno

Florença (Itália), a 13 de dezembro. Corpos dos dois senegaleses mortos pelo extremista de direita Gianluca Casseri.

O assassínio de dois senegaleses em Florença é a mais recente manifestação da escalada do sentimento de ódio na Europa. Com o massacre de Utøya, as reações veementes à crise grega e ao isolamento da Grã-Bretanha, bem como o recrudescimento da extrema-direita, esta tendência assume múltiplas formas, todas igualmente preocupantes.

Gianni Riotta

Existe alguma ligação entre a crise do euro, a impotência dos políticos e o assassínio de dois vendedores de rua senegaleses por um extremista de direita, ontem [13 de dezembro], em Florença?

À primeira vista, não. Por um lado, temos um continente rico, cuja economia os seus dirigentes não conseguem fazer arrancar de novo, após meio século de pujança. Por outro, temos um extremista neofascista, racista e armado. Mas se olharmos mais fundo, vemos como os piores venenos da nossa história estão a vir à superfície, depois dos abalos causados nas consciências pela atmosfera de recessão.

Assim que voltou para Londres, após o divórcio com a Europa, o primeiro-ministro britânico David Cameron foi manifestamente criticado pelos observadores da City que afirmava defender. Mas os deputados conservadores de Westminster aplaudiram-no, gritando: “Espírito de bulldog“, o mesmo que era tão caro a Winston Churchill.

Voltam os preconceitos mais nauseabundos

Em alguns meses de debate sobre o euro, assistimos ao brotar das ideias feitas mais nauseabundas do álbum de más memórias, que pensávamos fechado para sempre. Na Grécia, pedem-se “reparações de guerra pela ocupação alemã durante a Segunda Guerra Mundial” em troca do pagamento da dívida de Atenas. Os jornais alemães, com o Bild à cabeça, descrevem os gregos como um bando de preguiçosos e os italianos como debochados e gastadores.

Em resposta às críticas dos economistas de Berlim, sobre as contas públicas italianas, os sítios de Internet encheram-se de comentários anónimos que se limitam a um “German = SS“. O comportamento de Cameron suscitou evocações da “pérfida Albion”, tão querida a Mussolini. Ressentimento, ódio, racismo, desprezo pelos outros, intolerância: o tipo de ADN que se manifesta em tempos de crise, como sucedeu neste 13 de dezembro, em Florença.

Em 2003, na véspera da guerra no Iraque, os Estados Unidos e a Europa, aliados que, 15 anos antes, tinham vencido sem luta a Guerra Fria, dividiram-se e insultaram-se com inesperada veemência. Recorda-se? Os americanos são de Marte, os europeus de Vénus… idiotices que estragaram o ambiente, puseram em destaque um grande mal-estar e criaram uma distância que ainda não foi superada.

Na primavera de 2003, o Congresso dos Estados Unidos convidou quatro testemunhas europeias para uma audiência, para ultrapassar o fosso criado entre Washington e Bruxelas. Fui uma delas, bem como o atual ministro dos Negócios Estrangeiros polaco, Radek Sikorski. Afirmámos, na altura, que, no clima económico difícil do início do século, brincar com o fogo do populismo e do nacionalismo era perigoso..

Atacar “o outro” vai-se tornar habitual

E hoje, sérios observadores europeus, como Gideon Rachman e Wolf Martin, bem como o Prémio Nobel de Economia Paul Krugman, dizem ver, no ódio que cresce na internet e na recessão que as opções falhadas da chanceler Angela Merkel e do Presidente Nicolas Sarkozy estão a provocar, o início de uma época trágica, como a da década de 1930 na Europa, com o totalitarismo fascista em Itália, Espanha e Alemanha e as purgas estalinistas em Moscovo.

Krugman escreve que “a recessão […] está a criar uma enorme raiva […] contra o que muitos europeus reconhecem apenas como uma severa punição alemã. Qualquer pessoa que conheça a história da Europa só pode temer tal retorno da hostilidade.” O laureado do Nobel escreveu isto antes do assassínio de Florença, mas já mencionava os neonazis próximos do Partido da Liberdade da Áustria, a xenofobia dos Verdadeiros Finlandeses em Helsínquia, o grupo anticiganos e antissemita Jobbik e a tentação autoritária do Governo do Fidesz na Hungria. Podemos acrescentar os neofascistas de Inglaterra e França e os racistas italianos, que derramam sangue na muito civilizada Florença, capital da cultura europeia há meio milénio.

Krugman está a exagerar? Espero que sim. Ao contrário dos meus colegas anglo-saxões, não acho que a década de 1930 se vá repetir e que voltemos a ver camisas castanhas nas ruas: a história não avança mecanicamente; o Mal dá mostras de imaginação e capacidade de metamorfose. Contudo, penso que, perante os tempos de crise económica que temos pela frente, vai ser comum assistirmos a ataques como estes, invocações de supostas entidades ocultas, acusações europeias contra Londres e inglesas contra o continente, ataques contra os “outros” para “nos” defendermos.

Os dirigentes políticos que exploram esta epidemia para obter mais votos e os jornalistas que semeiam o ódio e populismo para vender mais um jornal ou uma foto preparam uma poção que pode causar muitos danos. Não é o medo do retorno ao passado autoritário que deve levar-nos a promover o bem-estar, o crescimento, o diálogo e a tolerância. É o medo dos demónios que estão para surgir, convocados pela intolerância: não vêm de farda verde-cinza, mas, no massacre de estudantes perto de Oslo e no assassínio de Florença, já mostraram a sua horrível face.

http://www.presseurop.eu/pt/content/article/1289561-crise-destila-o-seu-veneno

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