Marketing verde e o código de Claudentina como resistência discursiva
Por Marcelo Calazans1
Para a memória de Ricardo Carrere
O ano de 2011 foi eleito, pela ONU, o ano internacional das florestas. No horizonte da Rio+20 e das conferências do clima (África do Sul) e da biodiversidade (Índia), as florestas são tema de uma intensa campanha discursiva.
Evidenciando a importância das florestas para a vida do planeta, um conjunto articulado de enunciados de diversos autores, línguas e gêneros, buscam mobilizar a opinião pública internacional, Estados, corporações, organizações e indivíduos para a necessidade e urgência de proteger as florestas. A provisão de água, alimentos, madeira, fármacos etc; a regulação dos ciclos hidrológicos e climáticos; a decomposição e reprodução da vida – a defesa das florestas, como slogan de campanha, parece um signo perfeito: um significante com significado unívoco, quer dizer, sem polissemia, ambiguidades, dúvidas de interpretação; um sentido universal. Quem poderia ser contra a defesa das florestas? Trata-se de um tipo de campanha discursiva que busca construir um “nós” que é ao mesmo tempo emissor e destinatário da própria campanha. No jargão inglês, uma campanha win-win, quer dizer, “vencedor-vencedor”, todos ganham e ninguém perde.
À campanha da FAO e da ONU de defesa das florestas se somam, entre inúmeras outras, as iniciativas do Banco Mundial, Programa de Proteção das Florestas; British Petroleum, Nova Floresta: Brasil-Escócia; Petrobrás, os orquidários; Fibria; Veracel; Suzano; Vale do Rio Doce; Plantar etc. Além da iniciativa das indústrias de celulose e siderurgia verde, o manejo florestal sustentável, e de WWF, os plantios de nova geração. Formou-se inclusive um grupo internacional chamado Diálogo Florestal, reunindo empresas, sociedades científicas e certificadoras, além de organizações ambientalistas, com o objetivo de “identificar agendas comuns entre empresas e ambientalistas, para a promoção de ações efetivas associadas a produção florestal, de modo a ampliar a escala dos esforços de conservação e restauração do meio ambiente”2. Entre seus princípios, o Diálogo Florestal afirma a “integração de ativos das organizações ambientalistas e empresas”. O governo federal, através do Plano Nacional de Florestas, da política de mudanças climáticas e do Programa Nacional da Agricultura Familiar (Pronaf Florestal), além do BNDES, participa desse empenho florestal.
Qualquer busca pela internet explicita a enorme quantidade de links de proteção e promoção das florestas. O que não se explicita, nas primeiras buscas e nos títulos, é o que se entende, e se quer fazer entender, quando se enuncia: “floresta”. Uma pretensa obviedade do conceito, em geral, impede a pergunta: “afinal, o que é isto, uma floresta?”.
Para a FAO, quem informa o conceito que rege as conferências internacionais do clima e da biodiversidade, as florestas significam:
Terras que se estendem por mais de 0,5 hectares, dotadas de árvores de uma altura superior a 5 metros e uma cobertura de dosel superior a 10%, ou de árvores capazes de alcançar esta altura3.
No Protocolo de Kyoto e nos documentos internacionais sobre clima, seguindo o sentido da FAO, define-se a floresta que deve ser defendida e promovida, por exemplo, nos mecanismos de flexibilização das cotas de redução dos países do Norte, como o mdl (mecanismo de desenvolvimento limpo). Floresta é:
Superfície mínima de terras entre 0,05 e 1 ha, com uma cobertura de copas (ou uma densidade de população equivalente) que excede de 10 a 30% e com árvores que possam alcançar uma altura mínima dentre 2 e 5 metros em sua maturidade in situ. Uma floresta pode consistir em formações florestais densas, onde árvores de diversas alturas e o sub-bosque cobrem uma proporção considerável do terreno, ou ainda uma massa florestal clara. Se consideram florestas também as massas florestais naturais e todas as plantações jovens que ainda não alcançaram uma densidade de copas entre 10 e 30%, ou uma altura de árvores entre 2 e 5 metros, assim como as superfícies que normalmente formam parte da zona florestal mas que carecem temporariamente de população florestal em consequência da intervenção humana, por exemplo da exploração, ou de causas naturais, mas que se espera voltarão a converterem-se em floresta4.
Para Dona Claudentina, quilombola sexagenária da comunidade de Angelim, no Sapê do Norte do Espírito Santo, floresta é: “um lugar onde a gente ia colher frutos e sementes, cipós, madeira, plantas, raízes; caçar, pescar. Era também um lugar de fé”.
Claudentina fala “floresta” desde sua experiência com a Mata Atlântica capixaba, em um tempo passado, pois, a partir dos 20 anos de idade, viu sua floresta derrubada e substituída pelo manejo florestal da Aracruz-Fibria e da Bahia-Sul Suzano.
Comparadas à tese de Claudentina, as definições oficiais são claramente insuficientes e formais, quer dizer, não predicam do sujeito “floresta” nenhum conteúdo substantivo. São definições matemáticas, provenientes da engenharia florestal, que enquadram o termo floresta como uma “extensão de terra”, uma “superfície de área”, com determinadas características, também quantitativas, de árvores em diferentes estágios de crescimento. Que espécies de árvores são essas? A que usos estão associadas? A quem pertence a área? Há conflito ou ameaça? Também, no discurso oficial, não há nenhuma referência a outras formas de vida que habitam as florestas: fungos, vegetação não arbórea, animais, povos e ainda o rico universo imaterial da fé de Claudentina. Na fórmula oficial, o diálogo florestal se dá em um código muito específico e limitado, com pouca alternância qualitativa de sujeitos falantes, embora se pretenda um “diálogo” e universalidade.
Na análise de discurso (Kerbrat-Orecchioni, Barthes, Maingueneau), a maior parte dos enunciados tem, além de seu conteúdo explicito, um ou vários conteúdos implícitos, “que vêm se enxertar no precedente, e podem mesmo substituí-lo em seu favor, em caso de tropo implicativo, isto é, quando, no contexto, o conteúdo implícito sobrepuja o explícito”5. É o caso da definição oficial de floresta.
Uma importante chave de interpretação da gramática hegemônica: o conceito da FAO, que rege o diálogo florestal, deixa implícito que floresta pode ser também (ou principalmente) interpretada e co-enunciada como: plantação química, de apenas uma espécie de árvore, de rápido crescimento e em larga escala. Na definição oficial de floresta subjaz esse sentido, como tropos implicativo, drenando para as plantações industriais e compensatórias grande parte dos investimentos financeiros, das políticas públicas e privadas, da pesquisa científica.
Não teria o menor apelo simbólico uma campanha de proteção às monoculturas industriais e transgênicas de eucalipto, por exemplo. Também não teria forte apelo uma campanha de plantio, mesmo que de espécies nativas, se associada explicitamente a compensações por derramamentos de petróleo ou contaminação genética ou nuclear. Se no imaginário mass-mediano da sociedade civil a proteção da floresta soa como atividade voluntária, de defesa das matas e povos nativos, lugar de diversidade, de ciclos longos, sem agroquímicos, para usos comunitários locais e para o bem comum da sociedade civil. Na semiologia das corporações, floresta é depósito calculável de fibra, carbono e recursos naturais, ou espaço compensatório de um modelo de desenvolvimento insustentável e em expansão. O discurso implícito evita o choque semântico, encobre as condições sociais e ambientais de emergência dos discursos, e conduz o sentido do diálogo florestal através de uma gramática de poder, ancorada no léxico disciplinar das ciências florestais, e das corporações econômicas inseridas no agronegócio das árvores.
A aparente universalidade de sentido esconde uma acirrada disputa discursiva entorno do conceito de floresta. Não se trata de uma disputa apenas no mundo das ideias e das palavras, mas que define o sentido das políticas e o destino dos próprios territórios e povos florestais.
No Brasil, enquanto a forte bancada do agronegócio desmonta o código florestal no parlamento, as políticas têm por núcleo central a expansão da “base florestal” de eucalipto e pinus dos atuais 6,5 milhões para 12 milhões de hectares, fundamentalmente para abastecer as plantas celulósicas e siderúrgicas, instaladas no Espírito Santo, Minas Gerais, São Paulo, Bahia, e planejadas para Mato Grosso, Mato Grosso do Sul, Maranhão, Rio de Janeiro, Pará. O pretexto é múltiplo: “recuperar áreas degradadas”, na Bahia, “neutralizar o Carbono dos “mega-eventos” no RJ, “evitar o apagão florestal”, em SP, “criar um pólo florestal” no MA e PA”, “mecanismo de desenvolvimento limpo”, em MG, “poupança florestal” no RS. O sentido é mais linear: criar as condições simbólicas e sociais, financeiras, ambientais e jurídicas, de promoção dos plantios de eucalipto de rápido crescimento.
O Código Florestal, na medida em que interpreta floresta como “bem comum” e busca regular seu uso social e sua proteção, não permite a semântica da expansão ilimitada do agronegócio, da carne, da soja, da cana, do eucalipto. Por isso sua desconstrução discursiva e territorial, tais como nas reservas legais, nas áreas de preservação permanente, nos sistemas agroflorestais. O diálogo florestal impõe seu novo código: economia verde, agrocombustíveis de primeira e segunda geração, agricultura de baixo carbono, biologia sintética, transgenia, agroquímicos.
Na fala de Claudentina, o Código Florestal não é uma letra morta. Ao contrário, permite transmitir para as gerações mais jovens (<40 anos), pós-eucalipto, o sentido da mata ciliar ao longo dos córregos e nascentes, hoje não mais existentes. Permite falar da lagoa do Murici, onde ia pescar em Angelim, totalmente coberta e seca, depois de 40 anos de manejo dos eucaliptos da Aracruz-Fibria. O código permite, enfim, a memória discursiva de um território criminosamente devastado pelo agronegócio. Através dele, Claudentina é testemunha de incalculável dívida social e ambiental do agronegócio com os povos florestais e com a sociedade brasileira. A memória de Claudentina não é apenas retroativa, mas elemento central de um discurso de resistência, que se volta para a reconquista e reconversão territorial. A memória discursiva é também desde onde se podem emergir os discursos projetivos, as hipóteses e enunciados da transição pós-eucalipto, necessária para os quilombolas do século XXI.
Paralisados no desmonte federal do INCRA, e na catatonia estadual do IDAF (Instituto de Desenvolvimento Agropecuário e Florestal), os processos de regularização territorial no Sapê do Norte do Espírito Santo pouco avançam e, em alguns casos, retrocedem, como em Angelim, cujo relatório de identificação vai ser refeito pela terceira vez. Quase uma década de Era Lula-Dilma ,e a questão territorial dos quilombos no Sapê do Norte passa à margem das pautas dos governos. Apenas uma (Serraria-São Cristóvão), das 32 comunidades teve seu relatório definitivamente publicado em Diário Oficial da União.
No mesmo parlamento de desmonte do Código Florestal, cresce o lobby do agronegócio para a desconstrução do artigo 68 da Constituição Federal, do decreto 4887/2003 e da adesão brasileira à Convenção 169 da OIT. As grandes corporações integradas ao agronegócio buscam desregular a proteção jurídica das comunidades quilombolas, conquistada a partir da constituição de 1988 – depois de um século da abolição formal (1888), ocorrida 38 anos depois da Lei de Terras (1850).
Claudentina, seus irmãos e irmãs trazem à memória narrativas de/sobre seus antepassados de Angelim, que remonta ao século XVIII, tal como em documento elaborado pela comunidade, em cobrança da dívida ambiental junto à Fibria-Aracruz.
O Barão de Trancoso era dono das terras onde está localizada parte da comunidade de Angelim 1. Ele utilizava escravos emprestados do Barão de Timbuí, que era seu primo e um sesmeiero. Nesta época, as culturas desenvolvidas na comunidade eram café, mandioca e gado. Descendentes do Barão de Trancoso, hoje, compõem o núcleo Guimarães. O canoeiro do fazendeiro, chamado Adão, teve vários filhos, dentre eles o Sr. Bento e o neto Sr. Eugênio, cujos descendentes formam os núcleos Batistas e Silvares. Aqueles que habitavam nas terras do Barão de Timbui adquiriram o direito de posse das terras. Mas as famílias que habitavam nas terras ocupadas pelo Barão de Trancoso não acessaram o mesmo direito.
Em todo Sapê do Norte, estima-se que viviam algo entre 12 e 15 mil famílias quilombolas, nos anos pré-eucalipto. Dessas, apenas 1.200 resistem em 2011 nas comunidades. De cada 100 famílias, 90 migraram para as periferias urbanas da região. Por outro lado, no mesmo período, os eucaliptais se expandiram por todo o Sapê e a Aracruz-Fibria se tornou a maior produtora de celulose de eucalipto do planeta.
O discurso da resistência quilombola denuncia a falsa universalidade das estratégias win-win, como pacto entre vencedores, como grau zero da história e da memória. Seguindo a famosa tese de Rubião – “aos vencedores as batatas”, parece que não houve batatas para todos. O código de Claudentina explicita que nem todos venceram, denuncia a injustiça ambiental, e através de uma arqueologia da memória discursiva, busca ressignificar floresta e território como bem comum. A formação discursiva da resistência busca referências espaciais e temporais para os quilombos do século XXI. Neste sentido, o Sapê do Norte e o próprio termo “quilombola” é também uma construção narrativa da resistência que se projeta para o futuro, contra a historiografia racista oficial.
No código de Claudentina, a reconquista das terras, a reconversão da monocultura para floresta, as oportunidades de fixação dos jovens nos quilombos, a transmissão do saber tradicional da Mata Atlântica, a recuperação das nascentes, córregos e lagoas, trazem o embrião de uma reescrita territorial.
Floresta: substantivo feminino. “Um lugar onde agente irá colher frutos e sementes, cipós, madeira, plantas, raízes; caçar, pescar. Será também um lugar de fé”.
Notas:
1. FASE-ES/Rede Deserto Verde. Rede Latino Americana contra Monocultivos de Árvores.
2. Cf. DIÁLOGO FLORESTAL. www.dialogoflorestal.org.br.
3. FAO. Evaluación de los recursos forestales mundiales 2010, Anexo 2. Términos y definiciones utilizados em FRA 2010.
4. Decisão 11/CP-7. Anexo 1 (a) adoptada em Marrakech.
5. Catherine KERBRAT-ORECCHIONI, 1986.