Estudiosos tentam limpar racismo da obra de Lobato, diz escritora

"Lobato foi racista, e se está sendo apontado conteúdo racista na obra dele, esse é um dado importante", afirma escritora Ana Cláudia Barros

Em meio às discussões desencadeadas após o parecer do Conselho Nacional de Educação (CNE), que identificou racismo na obra Caçadas de Pedrinho, a escritora Ana Maria Gonçalves se deu conta, “estupefata”, do “umbiguismo em torno dos comentários e das matérias sobre o tema”. “Ninguém foi capaz de perceber que o parecer era para melhorar a qualidade de vida e evitar expor ao racismo as crianças negras matriculadas no ensino público fundamental e médio”, argumenta. Foi a partir daí, diz Ana, que surgiu o interesse em se debruçar sobre o tema.

A escritora denuncia o que chama de “processo interessante de ‘limpar’ a memória de Lobato”.

– Acho bom que essas cartas sejam publicadas (em referência ao material divulgado pela Bravo!). Nem os principais estudiosos da obra de Lobato nem os seus biógrafos tocam no assunto, que deveria ser de conhecimento de qualquer pesquisador sério sobre a obra e a vida do autor – afirma, emendando categórica:

– Lobato foi racista, e se está sendo apontado conteúdo racista na obra dele, esse é um dado importante que deve ser conhecido de todos e levado em conta por quem quer opinar sobre o assunto. Quem acha que o parecer (do CNE) foi um exagero, talvez nunca tenha pensado em racismo, nunca tenha de fato lido Lobato, mas apenas visto os seriados de TV, ou acreditado na imprensa que insistia em ver censura e banimento onde nunca existiram.

Sobre as alegações de que o autor do Sítio do Picapau Amarelo era um “homem de seu tempo”, Ana Maria Gonçalves rebate:

– Ser racista podia ser “normal” na época, mas não era obrigatório, visto que havia muitas pessoas que pensavam diferente, e muitas ideias já circulando, desde muito antes, sem a contaminação do racismo científico. Da mesma maneira que ser homofóbico hoje em dia não é obrigatório, embora muitos ainda o sejam, por ignorância ou motivos religiosos. Lobato escolheu ser racista, escolheu ser admirador da obra de (Joseph Arthur de) Gobineau, (Gustave) Le Bon, Ernest Renan, Hyppolite Taine, Renato Kehl e companhia – diz, listando uma sucessão de exemplos, pinçados da obra do escritor, em que identifica traços de racismo.

Na avaliação dela, as obras de Monteiro Lobato “envelheceram muito mal, em vários aspectos”.

– Toda essa defesa de Lobato foi feita por gente saudosa da infância, das leituras de Lobato e das histórias que assistiu na TV e que, provavelmente, não tem filhos estudando em escolas públicas. E o mais interessante é que alguns escritores de literatura infanto-juvenil, que hoje assinaram cartas em defesa de Lobato, também viam esses mesmos problemas. Em 2002, Ziraldo disse que os livros de Lobato estão cheios de preconceitos, e que para ele (Lobato), Tia Nastácia era uma negra beiçola e retardada, gozada pelos outros personagens. Em 2009, a Ana Maria Machado disse que os livros de Lobato possuem ilustrações horrorosas e são pouco atraentes para as crianças de hoje; os próprios netos só se interessam se ela mesma os lê para eles. Em 2010, a Ruth Rocha diz que são de difícil compreensão para as crianças, que enfrentam problemas de alfabetização. Livros cheios de preconceitos, com ilustrações horrorosas, pouco atraentes e de difícil compreensão são indicados para inspirar debates produtivos sobre racismo com crianças a partir de 9, 10 anos de idade? Nem mesmo os adultos estão levando esse debate a sério, fugindo para o campo da acusação de censura e abuso do politicamente correto, sem ter a menor ideia da contextualização, de quem foi Lobato, do que ele pretendia com sua literatura. Nem mesmo o Ministro da Educação consegue ver racismo onde ele claramente está, como disse em uma declaração à época em que a história foi parar na mídia.

Incisiva, a autora de Um defeito de cor se posiciona contrária à permanência das obras do escritor na lista dos livros distribuídos gratuitamente pelo Programa Nacional Biblioteca da Escola, “sob a tutela do Estado e adquirido com dinheiro público”.

– A adoção em escolas de livros com conteúdo racista fere tanto o Estatuto da Criança e do Adolescente e a Lei 10.639/03, sou contra. Como os livros continuarão fazendo parte de acervos de bibliotecas e sendo vendidos em livrarias, que sejam providenciados pelos pais, que decidirão quando e como apresentar Monteiro Lobato aos filhos. Como já acontece no caso de pais com filhos em escolas particulares. Da maneira que está, pais de crianças negras em escolas públicas não têm escolha. Eles são obrigados a aceitar que seus filhos sejam expostos a livros com conteúdo racista em um ambiente que nem sempre está preparado para lidar com situações de racismo, e ainda pagam a conta, através de impostos. Se é para discutir racismo em sala de aula, há obras muito mais apropriadas e, sobretudo, respeitosas, como os divulgados pela UNICEF na campanha lançada no Dia Nacional do Livro Infantil, em 18 de abril – data que, aliás, homenageia o nascimento de Monteiro Lobato.

“Carta aberta”

Em fevereiro deste ano, Ana Maria Gonçalves divulgou uma “Carta aberta ao Ziraldo”, na qual criticou o desenhista e escritor, que havia ilustrado a camiseta de um bloco carnavalesco do Rio de Janeiro com a figura de Lobato abraçado a uma mulata.

“Esperava que fosse o seu senso de humor falando mais alto do que a ignorância dos fatos, e por breves momentos até me senti vingada. Vingada contra o racismo do eugenista Monteiro Lobato”, afirmou, rechaçando, em seguida, a declaração de Ziraldo de que “racismo sem ódio não é racismo”.

http://www.jb.com.br/cultura/noticias/2011/05/11/estudiosos-tentam-limpar-racismo-da-obra-de-lobato-diz-escritora/

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