As causas das variadas formas de violência contra a mulher vão muito além da impunidade. É o que defende a advogada, professora de Direito Penal e Processual Penal e blogueira feminista, Camilla de Magalhães. Ela afirma que os altos índices de crimes contra a mulher em todo país devem-se, antes de tudo, a questões estruturantes da sociedade.
Para ela ‘é preciso quebrar os mitos e estereótipos que pairam sobre a violência de gênero’, como aqueles que culpabilizam a vítima pelo estupro sofrido. A advogada afirma que cabe, sobretudo às autoridades públicas, reconhecer seu grau de imersão na sociedade patriarcal para assim abandonar os preconceitos que norteiam suas percepções sobre a violência de gênero. Camilla Magalhães falou ao Observatório e Análises sobre os dados do Dossiê Mulher 2011, estudo divulgado pelo Instituto de Segurança Pública do Rio de Janeiro, que revelou que a violência contra a mulher no Estado ainda é alarmante. Confira a entrevista.
Observatório de Favelas: De acordo com os dados divulgados pelo Dossiê Mulher 2011, houve um aumento significativo no registro de estupros (25%, entre 2009 e 2010, os casos passaram de 4.120 para 4.589). Você acredita que a nova tipificação estabelecida pela Lei n.º 12.015/09, pode ser um dos fatores responsáveis por este aumento?
Camila Magalhães: Não me parece que a mudança na tipificação do crime – no que tange ao conteúdo da mudança – seja responsável pelo aumento dos números. A tipificação anterior tratava de situação idêntica, separada, contudo, em dois tipos penais (o estupro e o atentado violento ao pudor). A mudança veio para solucionar problemas teóricos e práticos existentes com a divisão anterior. Parece mais correto que, com a alteração, a informação acerca do crime em questão tomou novas proporções. Com os debates em torno da Lei 12015/09 e o alcance na população a esse respeito, mais atenção foi dada à matéria. E esse é um ponto importante nesse tema: informação de qualidade, bem trabalhada e direcionada, auxilia na prevenção e repressão dos crimes sexuais.
OF: Os índices do Mapa da Violência mostram que, entre 1998 e 2008, houve uma diminuição de 43,3% de casos de assassinato de mulheres na cidade do Rio de Janeiro. Porém, considerando as estatísticas dos 27 estados brasileiros, não se registra nenhuma queda nestes números há mais de uma década. Em 1998, eram 4,27 assassinatos para cada 100 mil mulheres. Em 2008, foram 4,27. Em sua opinião, quais são as razões para a não-diminuição destes números? Impunidade seria uma delas?
CM: A resposta para uma pergunta como essa vai muito além da questão da violência de gênero ou mesmo da impunidade. A análise de números relativos a ocorrências de crimes deve passar por uma abordagem crítica da criminologia, ou seja, das razões da criminalidade. Estudos nesse campo demonstram que o comportamento desviado ou criminoso é parte do sistema social e que apenas mudanças no sistema social podem modificar a realidade criminosa. Assim, não é a impunidade a responsável, em si, pela situação inalterada dos números de homicídios contra mulheres. Muito mais a estrutura social e a ausência de significativas alterações nessa estrutura ou sistema que fazem perpetrar essa realidade. Por razões como estas que insistimos tanto na importância de movimentos como o feminista. Sua luta pela mudança das mentalidades e da realidade social é justamente a luta pela mudança do sistema social. E é essa espécie de modificação que pode levar a redução ou alteração dos registros de crimes e violência.
OF: Por que muitas mulheres ainda têm medo de denunciar seus agressores? Você acredita que os profissionais e delegacias especializadas estão preparados para receber estas denúncias?
CM: Parece-me que, nesse ponto, ainda há muito que caminhar. Com a Lei Maria da Penha e as ações e políticas públicas contra a violência de gênero, muito já tem se alterado no quadro de atendimento às mulheres vítimas de violência. A criação de Delegacias especializadas no atendimento dessas mulheres é, certamente, um grande avanço. Mas isso não será suficiente, nem mesmo eficiente, sem que as autoridades públicas – delegados, juízes, promotores – estejam preparadas para tanto.
Por mais que autoridades sejam preparadas no campo teórico e jurídico, ainda é necessário dotá-las da necessária sensibilidade para lidar com tais casos. É preciso quebrar os mitos e estereótipos que pairam sobre a violência de gênero, doméstica e sexual. As autoridades públicas precisam reconhecer que elas também estão inseridas em uma sociedade patriarcal e machista e que, para melhor atenderem a mulher vítima de violência, devem abandonar esses preconceitos sociais e procurar aperfeiçoamento e aprofundamento nos estudos da violência de gênero.
Responsabilizar a vítima pelo estupro sofrido, em razão do seu comportamento, ou considerar a violência doméstica “coisa que se resolve entre quatro paredes” parecem ter ficado no passado. Parecem. Ainda são percebidos os reflexos de preconceitos como estes no atendimento à mulher que, assim, não tem confiança e segurança para representar contra seus agressores.
Fato é que o medo de denunciar não está somente nessa circunstância acima descrita. A mulher vítima da violência doméstica teme, por vezes, que representar contra o agressor possa levar a novas agressões ou a continuidade da violência. Por isso, medidas como o afastamento do lar ou a aproximação da ofendida, previstas pela Lei 11340 (art. 22) são fundamentais, por garantirem a segurança dessas mulheres.
OF: Existem órgãos especializados para acompanhar essas mulheres e oferecer apoio psicológico, jurídico e social?
CM: Muitas entidades e órgãos de apoio e proteção às mulheres vítimas de agressão foram criados após o advento da Lei Maria da Penha. Especialmente porque a lei em questão dispõe a respeito da necessária abordagem e tratamento interdisciplinar da violência doméstica. A lei andou, então, muito bem nesse ponto. O combate à violência doméstica não se faz apenas com a utilização do Direito Penal. Essa, na verdade, é a última solução.
A prevenção e o combate devem passar por políticas e ações sociais de conscientização e educação, com a clara finalidade de, mudando mentalidades, evitar a ocorrência dos atos criminosos. A ação contra a violência doméstica, então, deve ser um conjunto de atos que envolvam a educação, a prevenção, a conscientização social, o apoio e a proteção às vítimas e o processo e punição dos autores.
Assim, Juizados de Violência Doméstica e Familiar contra a Mulher foram criados em todo o país, como se percebe aqui .Há ainda a Central de Atendimento à Mulher – Disque 180 (serviço gratuito da Secretaria Especial de Políticas para as Mulheres, do Governo Federal, que orienta as vítimas de violência doméstica).
No Espírito Santo, onde resido, criou-se a Promotoria de Justiça de Defesa da Mulher, o Núcleo Especializado de Promoção e Defesa dos Direitos da Mulher (NUDEM), a Defensoria Pública do Estado do Espírito Santo e o Centro de Referência de Atendimento à Mulher, Centro de Atendimento às Vítimas de Violência e Discriminação Doméstica de Gênero, Racial e por Orientação Sexual (CAVVID) de Vitória e o Centro de Referência e Apoio à Mulher em Situação de Violência de Vila Velha (Cram-Vive), além de outros centros na Grande Vitória e no interior. No Rio, tenho conhecimento da existência do Cejuda – Central Judiciária de Abrigamento Provisório da Mulher Vítima de Violência Doméstica no Âmbito do Poder Judiciário do Estado do Rio de Janeiro.
OF: Apesar dos números pouco animadores, a lei Maria da Penha (11.340/2006) é um primeiro grande passo para a diminuição da violência contra a mulher?
CM: Não há dúvida de que a criação da Lei Maria da Penha seja um grande passo no combate à violência contra a mulher. Mais do que isso, os debates sobre a referida lei ajudam a colocar em destaque o tema da violência de gênero como um todo. Mesmo com números pouco animadores há várias razões que alimentam nossas esperanças. Desde sua criação, a Lei Maria da Penha ajudou milhares de mulheres a conhecerem e brigarem por seus direitos. Cientes de seus direitos e conhecedoras da condição de opressão e violência a que se viam submetidas até então, essas mulheres vão às Delegacias e ao Judiciário, munidas de nada mais do que as armas que lhe foram concedidas pela informação de que tratei no início.
Além disso, a preocupação da Lei com o atendimento multidisciplinar dos casos de violência ali previstos, mostra o foco na vítima e na especialidade da relação existente entre esta e o autor da violência. Muito mais do que buscar cegamente a punição do autor dos crimes, a Lei atenta para a necessidade de uma abordagem inter e multidisciplinar da violência e o apoio, a proteção e o atendimento psicológico, social, jurídico e de saúde.
E não só a Lei, mas também as políticas e ações da Secretaria de Políticas para as Mulheres (SPM) auxiliam no combate à violência de gênero, bem como os estudos e o ativismo dos grupos feministas, como a MMM e a SOF e a CFEMEA, fomentam e qualificam o debate e ajudam a promover ações de conscientização e luta contra a violência em questão. Muito há que ser feito ainda, certamente. Mas os resultados até aqui obtidos mostram que estamos todos – governo, poder judiciário, sociedade organizada e movimentos feministas – no caminho certo.
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