João Paulo*
A situação em Belo Horizonte merece muita reflexão. Parece que estamos atravessando a linha imaginária perigosa que separava a cidade em dois polos quase incomunicáveis. A violência não é de hoje, o que a torna mais preocupante é sua percepção pela classe média. Metáfora estranha que ao mesmo tempo anestesia e diagnostica, o Aglomerado da Serra pertence à cidade, mas é tomado como apêndice, uma área de exclusão tolerada. Quando a violência contra as pessoas se concentrava no interior de seu perímetro real e imaginário, parecia ser coisa de pobre, acerto de contas, lei da selva. Quando as pessoas, tomadas de indignação, reagiram à polícia e protestaram fora dos limites definidos, a situação de medo se estabeleceu. E é nesse caldo que estamos metidos até o pescoço.
Há questões reais, como a corrupção, o achaque, o arreglo. Nessa prática estão metidos criminosos e policiais, com a população funcionando como escudo, uma espécie de refém que só tem a perder. Em certo sentido, a situação se parece com a dos guetos durante a 2ª Guerra Mundial: os judeus eram impedidos de quase tudo que significasse uma vida digna. No entanto, parecia a eles que, seguindo as determinações da polícia, estariam preservados. Havia uma espécie de pacto, alimentado pelo medo, que parecia apontar sempre o outro como a vítima preferencial. Em nossa realidade, esse álibi imaginário passa pela noção de “honestidade”. O trabalhador, desde que se mantenha fora da linha de tiro, pode ficar tranquilo. A violência é sempre dos outros.
Essa mentira vem sendo desmascarada há muito tempo. As vítimas preferenciais de violência são quase sempre os negros, pobres e jovens que moram em aglomerados ou complexos (nunca em favelas). Viver, nessas condições, é estar mais propenso a sofrer abusos, revistas humilhantes, esculachos e, em muitos casos, ser executado. Quando a resposta vem, ordenada pelo justo instinto de indignação e revolta, costuma ser sentida pela população exterior ao conflito como excesso, invasão do espaço defeso da classe média. Os pobres, além de mais propensos à morte, precisam ser mais contidos em sua represália. Parte do medo que se espalhou em BH em razão dos crimes no aglomerado tem raiz nessa visão preconceituosa de divisão social.
Os depoimentos dos moradores das favelas, no entanto, mostram que o respeito às fronteiras só se dá em uma via. Pobres, pretos e aglomerados não podem ocupar as praças e ruas de sua cidade para protestar. No entanto, os policiais corruptos podem invadir as casas, chutar as portas, ameaçar e insuflar o terror todas as noites, exatamente para mostrar que não se trata de uma cidade partida (o que implicaria uma divisão igualitária), mas uma cidade hierarquizada verticalmente. De um lado vale a lei, de outro a força. No asfalto, os valores éticos e os direitos humanos; no morro, a lei da selva e o direito de matar. Renilson e Jefinho não foram vítimas de erro de cálculo, mas a consequência esperada da lógica de desumanização voluntária.
Há poucos meses, acompanhamos ações no Rio de Janeiro – com muita pirotecnia e comemoradas como o marco de um novo tempo. Bastaram algumas semanas para assistirmos ao castelo de cartas do tráfico se mostrar brincadeira de criança perto das casamatas das diversas polícias. A cena de traficantes, literalmente pés de chinelo, fugindo com armas na mão se tornou um deboche perto dos valores envolvidos em operações de corrupção policial e suborno que estouraram logo em seguida.
No entanto, o risco em meio à guerra de informação é perder a dimensão mais realista da crise que tem na violência urbana seu mais cruel produto. São necessárias muitas mudanças, cada uma delas envolvendo atores diferentes e estratégias próprias. Em primeiro lugar, é preciso melhorar as polícias, banir a corrupção, respeitar os direitos humanos, cumprir a lei. Em seguida, é fundamental agir para mudar a consciência das pessoas em relação ao problema, que não pode ser localizado como um quisto passível de ser contido pela exclusão social. Por fim, nada vai adiante sem que os mecanismos democráticos de pressão sejam de fato assumidos por conselhos livres e independentes.
É mais cômodo pensar que a violência vai ser resolvida com o desenvolvimento. Não vai. Não há relação orgânica entre pobreza e criminalidade. Esse é um dos maiores preconceitos, raciocínio daninho que penaliza as pessoas por sua localização social, como se houvesse um gene inscrito na pobreza que levaria a ações de banditismo. Todos sabemos que os maiores crimes, em termos de prejuízo para a sociedade, se dão nos altos escalões da política, do Judiciário e do meio empresarial. No entanto, a impunidade nesses estratos cria uma ética canalha: o crime não punido é reconhecido como esperteza.
O nosso contexto de violência se alimenta da falta de educação para a cidadania. Somos violentos porque somos ruins de política. É impressionante: todas as vezes em que se debate a questão racial no Brasil, os brancos garantem que não há racismo, enquanto a prática social o reforça a todo momento. Essa dissonância, no entanto, acaba sendo operativa, funciona para dar às consciências o álibi da culpa carpida em defeitos dos outros, de outros tempos, de outras latitudes. Nossa indigência em política não nos permite ver a responsabilidade de cada um em episódios como o do Aglomerado da Serra, que nos fazem sofrer quando os executados são trabalhadores, mas alimentam a lógica absurda do genocídio como solução final para nossos problemas de consciência. O “nazismo classe média” emerge nessas horas como uma das formas de sinceridade.
Não se pode desviar do caminho já indicado. A polícia precisa ser saneada e as leis cumpridas. O que vem em seguida pode ser mais trabalhoso, mas é igualmente necessário: precisamos dar substância à expressão direitos humanos. Não estamos sabendo fazer valer os direitos e esquecemos que homens não matam. No jogo de gato e rato, a classe média está fazendo o papel dos dois: a humanidade está do outro lado da fronteira.
Editor de Cultura – e-mail: [email protected]
ESTADO DE MINAS, 25-2-2011 – Caderno Pensar