A questão racial põe em xeque a universidade e o que ela representa quanto ao saber hegemônico. De um lado, questiona o saber acadêmico e demanda o reconhecimento de outros saberes também legítimos, mas excluídos e/ou estigmatizados pelo campus. De outro, pressiona pela democratização do acesso e revela o ilusionismo da ideologia meritocrática e dos mecanismos pretensamente democráticos para decidir quem tem o direito de freqüentá-la.
A universidade está diante da necessidade de repensar o seu papel e relação com a sociedade. Isso produz insegurança, especialmente na classe média. A resistência às medidas que democratizam a universidade, não apenas no que diz respeito ao ingresso mas também em relação ao seu funcionamento interno – por exemplo os concursos para docentes –, é um dos efeitos visíveis. É a própria idéia de que no Brasil vivemos sob a democracia racial que se encontra na berlinda.
No movimento desencadeado pela adoção de políticas afirmativas, incluindo as cotas raciais, há um claro desafio à hegemonia e à hierarquização dos saberes. Se a polêmica em relação às cotas aponta necessidades imediatas, a sua essência é o questionamento de uma educação colonizada, branca, machista, eurocêntrica e desligitimadora dos saberes não aceitos pelos cânones. Os negros e pobres são rechaçados não apenas porque tiram as vagas da classe média, mas também porque são caracterizados como ignorantes, cujo saber e cultura não merecem reconhecimento, e são considerados incapazes de assimilar a cultura oficial, pretensamente erudita e científica. A acusação de que as cotas colocam em risco a qualidade do ensino universitário é sintomático desta forma de pensar.
A universidade é influenciada pelo racismo presente em nossa sociedade, afinal ela não é uma ilha isolada ou uma espécie de paraíso da racionalidade (a razão e a ciência não são imunes ao racismo e já houve épocas que o legitimaram). Contudo, a acusação de racista é algo que não deve ser usado indiscriminadamente, sob o risco da sua banalização e da injustiça contra o oponente. É puro sectarismo declarar que esta ou aquela instituição e/ou indivíduo é racista simplesmente porque se posiciona contrário às cotas. O mundo não se divide entre cotistas e não-cotistas e a adoção de cotas raciais não é consensual nem mesmo entre os negros e os seus movimentos.
Se de um lado é possível identificar sectarismo entre os defensores das cotas raciais, por outro, muitos dos seus críticos levantam a acusação de racismo invertido. Para estes, os afro-descedentes estimulam o racismo ao insistirem em suas reivindicações. Numa argumentação simplista, a defesa da cota racial provocaria o ódio do branco na medida em que este se vê ameaçado de perder a sua vaga na universidade e, efetivamente, ao perdê-la. O(a) branco(a) reagiria emocionalmente por se sentir prejudicado e processaria o(a) negro(a). Só Freud explica! Se o ódio surge nestas circunstâncias, apenas comprova o racismo envergonhado, latente e imerso na alma de tal indivíduo. Observe-se ainda que a ameaça de processo indica condições econômicas e, portanto, é um indício de um certo estrato da sociedade que se considera lesada em seus direitos de ocupar o campus.
O racismo na sociedade brasileira, e conseqüentemente também presente na universidade, ainda que disfarçado sob os auspícios da ideologia do mérito e da racionalidade científica, não será suprimido apenas pela adoção das cotas raciais. Ele está introjetado, ainda que latente, até mesmos em muitas das cabeças pensantes do campus. Se ele aflora em momentos como este, é a prova de que permanece como um traço cultural e social da nossa formação histórica.