Texto em Homenagem as Crioulas e os Crioulos de Conceição (quilombo vivenciado nas alegrias e tristezas).
No ano de 1975, Chico Buarque lançou o LP “Meus Caros Amigos”, obra com músicas de extrema relevância política, entre elas “O que será? (À Flor da Pele)”, da qual o dueto com o amigo Milton Nascimento ainda é citado como uma das mais belas parcerias da música brasileira. No mesmo LP, músicas relevantes, como Mulheres de Atenas, Olhos nos Olhos, Vai Trabalhar, Vagabundo e Passaredo.
Em uma das “tabelinhas” do LP com Francis Hime, Chico Buarque compôs “Meu Caro Amigo”, que em uma das suas estrofes assevera que a coisa tá preta: “Aqui na terra ‘tão jogando futebol/Tem muito samba, muito choro e rock’n’ roll/Uns dias chove, noutros dias bate sol/Mas o que eu quero é lhe dizer que a coisa aqui tá preta/Muita careta pra engolir a transação/E a gente tá engolindo cada sapo no caminho/E a gente vai se amando que, também, sem um carinho/Ninguém segura esse rojão.”
Nesse período histórico e político brasileiro, a Ditadura campeava sua enfurecida frente contra os grupos, partidos e movimento de esquerda, que em parte, entendiam que a única saída do processo ditatorial seria através da luta armada.
Os militares, com o Poder Executivo nas mãos, criavam tipos penais através de Atos Institucionais, possuidores das rédeas eleitorais; promoviam o controle do Poder Legislativo; de quebra, através de nomeações e influência política, determinavam o funcionamento do Poder Judiciário e do Ministério Público. Por fim, utilizavam da mídia escrita e televisiva para transmitir à população brasileira os atos de terrorismo, de subversão, de anti-patriotismo e heréticos, praticados principalmente por jovens de diversas camadas sociais. Mera coincidência com o processo eleitoral no âmbito nacional em 2010?
De toda sorte, outras formas de resistências organizavam suas bases de atuação teórica e intervenção prática, ou melhor, re-organizavam de maneira mais orgânica a materialidade e subjetividades nas insurgências constituídas e sufocadas no período colonial, imperial e da República Velha.
Articuladas pelo signo da identidade (étnica e/ou cultural), os povos originários e o movimento(s) negro(s) urbano entravam mais uma vez no cenário político nacional, posicionando-se enquanto primeiros movimentos sociais do Brasil, visto que as lutas dos indígenas e da população negra não eram/são prestigiadas na história oficial. Cotidianamente foram soterradas, e mesmo as vanguardas progressistas das esquerdas brasileiras não utilizavam os discursos, as práticas e/ou as potencialidades destes atores socais enquanto tentativa de compreensão de uma realidade brasileira diversificada. Esses silêncios políticos também aconteceram em relação ao movimento feminista e ao movimento LGBT (essa diversidade sequer era pautada). Ao que parece, essas linhas tênues estão sendo articuladas com algumas aproximações, estranhamentos e necessitando ampliar respeito à autonomia e diversidade das contribuições subversivas. De toda sorte, é notório que essas (re)leituras estão em prática e incomodam setores conservadores.
No tocante à movimentação política dos/as negros/as, um dos baluartes é o Professor Abdias Nascimento, um dos responsáveis para a retomada do tema/expressão quilombo e da identidade negra em uma perspectiva local-internacional. As propostas de Abdias Nascimento não são apenas de vigor social, cultural e econômica, mas também inauguram no Brasil uma perspectiva que se diferenciava das leituras tradicionais das esquerdas brasileiras.
Abdias Nascimento trouxe para o Brasil os debates enfrentados nos EUA, nos anos de 1960-1970, em torno das políticas de ações afirmativas, o pensamento de lideranças políticas e a postura dos Panteras Negras, assim como auxiliou a difundir o pan-africanismo enquanto perspectiva teórica e prática.
O professor ainda foi diretamente responsável pela criação da Fundação Cultural Palmares, lançou a discussão em torno do Quilombismo/ Estado Quilombista e da integração entre o Brasil e África. As repercussões de suas leituras e perspectivas foram marcantes para que a militância negra que associasse em torno dos quilombos a sua representação simbólica de resistência, emergindo o nome de Zumbi e de Palmares enquanto elo vivo de pertencimento de África no Brasil. Não por acaso, o dia 20 de novembro (hoje) é o Dia da Consciência Negra – morte de Zumbi.
O surgimento do Movimento Negro Unificado é um dos componentes históricos, no Brasil dos anos de 1970, importantíssimo para a (re)construção da identidade negra. Por justiça histórica, é importante sinalizar a Frente Negra Brasileira (1930), grupos de mobilização da Bahia (Ilê Ayê, Oludum e outros), escolas de samba no Rio de Janeiro, as nações de maracatu em Pernambuco, os grupos literários e os trabalhos acadêmicos realizados pela Escola Paulista de Sociologia entre os anos de 1950-1960, que também são inexoravelmente parte desse caldo cultural, acadêmico e político.
Importante destacar que pouco (apesar de uma melhora significativa nos últimos dez anos) se discute seriamente no Brasil tais nuances. Sempre essas temáticas estão contidas em uma dimensão econômica, conjuntural, estrutural, ideológica, que se apresenta diante da realidade enquanto maior e objetiva, diante do menor e meramente subjetivo. Óbvio que a dicotomia não é tão direta, nem se exclui o componente classe nessas relações. O que é necessário apresentar são as confluências e contradições de algumas assertivas deterministas de ambos os lados.
A academia ajuda sobremaneira em manter essa posição subalterna dos temas identitários, seja por puritanismo/ingenuidade (quando à discussão recai sobre as cotas é senso comum a aprovação destas para os “pobres” e não para os/as negros/as, indígenas e outros segmentos, que são em grande maioria componentes desta camada social excluída ou incluída em um modelo predatório de produção, consumo e sustentabilidade), modismos e/ou por tentativa de manter um espaço autoritário de construção do saber, sempre visceralmente ligada às tradições européias, onde a pretensão de estabelecer qualificações, conceitos, elementos e significados não conseguem apreender a diversidade e vigor do pensamento sul-sul. Desta forma, são desqualificadas teorias, reflexões e ações; são “denunciados” por não formar grupos não uniformes; apontados enquanto “rachados”, apolitizados, barganhadores por mero uso simbólico do poder nas estruturas governamentais etc.
Por falta de um maior discernimento das perspectivas alavancadas pelos movimentos culturais ou étnicos, pouco se demonstra que um impulso significativo para a viabilidade política e social do movimento negro foi o entendimento da questão de gênero dentro das suas singularidades. Milhares de mulheres negras atuam/atuaram em espaços políticos em virtude desta visão amplificada dos processos de formação de identidade. As nossas líderes de Conceição das Crioulas são a materialização desse vigor. A discussão de gênero ganhou muito mais destaque dentro da militância negra (vice-versa) do que em outros movimentos sociais (sindicatos, partidos e de luta pela reforma agrária).
Voltando ao Professor Abdias Nascimento, é imprescindível citar que o mesmo foi Deputado Federal e Senador, exerceu docência em Universidades brasileiras, americanas e européias, assim como foi um dos principais criadores do Teatro Experimental do Negro, que tinha como foco a representação do negro em processos de resistência social e afirmação étnica/racial, abordando, principalmente, os apenados do Estado de São Paulo.
A preocupação do Professor Abdias sempre foi pautada na urgência do passado em processos que possibilitassem a reconstrução de uma memória negra no presente, ou seja: “é urgente a necessidade do negro brasileiro recuperar memória, sistematicamente agredida pela estrutura de dominação ocidental – européia há quase 500 anos”(NASCIMENTO,1994).
As contribuições de Abdias Nascimento são designadas por uma categoria de análise-ação “pan-africanista nascimentista”, através do qual o pensamento global pan-africano toma outras dimensões em terras brasileiras e caribenhas.
Enfim, somos mais “sabedores” e “saboreadores” da vida e obra de Chico Buarque do que de vários artistas e compositores negros/as de samba que influenciaram diretamente as formas de composição dos expoentes da MPB nos anos de 1920-1980. Nas narrativas dos movimentos sociais brasileiros, o movimento negro, feminista e dos indígenas ainda são categorizados enquanto novos movimentos (até pejorativamente de pós-modernos). Chico Buarque cravou em Meu Caro Amigo a expressão “a coisa aqui tá preta”. A associação é sempre direta ao período da ditadura militar ou algo negativo no cotidiano. Porém, podemos interpretar “a coisa aqui tá preta” e nos posicionar vivenciadores de um momento muito rico na constituição da luta pela igualdade racial no Brasil. Conhecedores mais de Sartre, Foucault, Marx, Weber, Comte ou Maquiavel do que … pois é, a coisa ainda tem que ficar preta!
Estamos na luta pela igualdade racial no Brasil,temos uma longa a percorrer para todas nossas reivindicações sejam atendidas.
Clara Duran
Professora Universitária